Remanescentes - A Fazenda Amaldiçoada escrita por Eddie Stoff


Capítulo 3
Sonhos são reais se você acreditar neles




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 Viu? Eu disse que eu não era problemático por querer. O que aprendemos hoje? Não me deixe ficar muito nervoso, ou posso acabar explodindo coisas involuntariamente.

  Hoje é dia seis de julho, um dia antes da voltar às aulas. Não sei bem o que esperar de um lugar chamado "Colégio Castelo Branco". Talvez fosse o lugar onde princesas e príncipes vêm estudar quando não estão ocupados demais importunando os empregados nos seus castelos de verdade ou viajando ao redor do mundo e cheio das joias caras. Porém, havia prometido ao meu pai que iria tentar me comportar e não ser expulso, de novo. Ainda lembro quando fui com meu pai fazer a matrícula na escola nova, durante todo o trajeto ele me encarava e dizia:

— Adrian, tente ficar comportado, tá bom? Basta ficar quietinho e deixar que eu cuido disso, ok?

  Por sorte, eu não precisei dizer nada, meu pai resolveu tudo. Graças as minhas notas, que surpreendemente eram boas — Posso me esforçar quando quero, o problema é que perco o foco facilmente na hora da aula e, de repente, estou no mundo da lua. Desculpe a piada de astrônomo. Muito ruim, por sinal— eles me aceitaram, mesmo quando leram a ficha da outra escola. O diretor, o Sr. Perry, não parecia ter ficado surpreso com o motivo da minha expulsão, disse apenas que tal comportamento não seria aceito naquela instituição e que todos têm o direito a uma segunda chance.

  O dia estava sendo um completo saco. Sem meus pertences para mexer na internet ou ficar jogando meus jogos de tiro, não tinha muita coisa para fazer, além de ficar contemplando o teto e suas fissuras nos cantos. Entretanto, está enganado quem acha que fiquei quatro meses sem estudar. Meu pai garantiu que eu ia continuar estudando, mesmo que fosse em casa. Por isso, ele contratou um professor particular, o Sr. Turner, para me dar aulas todos os dias. Os quatro meses de aula com o Sr. Turner não foram os melhores, não que ele fosse um mau professor, pelo contrário, ele era bom. Bom até demais para dar aulas particulares. O nome dele não é "Sr. Turner" — Veja só que surpresa HAHA —, seu primeiro nome era Antony.

  Engana-se quem acha que estudar em casa é melhor que ir para a sala de aula, interagir com os colegas e fazer provas. Eu tinha tudo isso em casa, menos os colegas. O Sr. Turner ensinava o básico das disciplinas, só para que eu não ficasse atrasado quando voltasse a frequentar o colégio. Ele sempre passava diversos trabalhos e como eu tentava ser o melhor filho que podia, eu fazia todos. As provas eram feitas no final de cada mês, reunindo os conteúdos vistos e dividindo em cadernos separados: matemática, ciência, linguagem e educação física — Era cem por cento teoria sobre educação física, imagine a chatice —. Por algum milagre, eu tirava notas boas e uma vez ou outra o Sr. Turner me dava uma folga nos trabalhos.

  Hoje, especificamente, eu estava sozinho em casa, o que poderia ser assustador quando a noite cai, porque a casa é um pouco grande demais para três pessoas — Lembre-se disso, explico logo mais —. A casa tem o primeiro andar e o térreo. O primeiro andar é onde fica os quartos do meu pai e o meu; uma sala de estar e o escritório dele que é explicitamente proibido entrar a não ser que seja para limpar. 

Meu pai, Albert, havia saído para trabalhar como fazia todos os dias. Ele tem o melhor emprego do mundo, pelo menos pra mim: Astrônomo no Planetário Pérola Lunar – de novo, eu não escolhi o nome. Só que tudo não é um mar de pérolas — Desculpe a piadinha —, desde que me entendo por gente nós temos viajado bastante de cidade em cidade para acompanhar o ciclo da lua e o que isso interfere nas condições das marés, climáticas e nos horários. Ou seja, está afetando quando o Sol deve se pôr e quando a Lua deve aparecer lá no céu, os horários estão uma bagunça, o dia ficou mais longo – cerca de alguns minutos. Atualmente, estamos morando na cidade de Sempre Noite – o que é irônico, pois não é sempre noite. O fundador da cidade, Bartolomeu Sguriân, chegou à região durante o período que era inverno; o sol mal aparecia durante o dia, então ele teve a brilhante ideia de batizar a cidade com esse nome — após o incidente na escola High Tower e por questão do trabalho do meu pai tivemos que nos mudar para cá. E a nossa mãe, Marie, havia saído para fazer algumas compras e ainda não tinha voltado.

  Você deve estar se perguntando quem é Marie? Eu disse que explicaria.

  Como você sabe, eu não conheci minha mãe. Ela foi embora quando eu era um bebê. Meu pai é um homem ocupado, ainda mais naquela época (Acredite, até meus três anos de idade eu raramente via meu pai, só quando eu ficava acordado até tarde esperando ele chegar e, ainda assim, eu pegava no sono. Ou quando ele tinha alguma folga o que era quase nunca), por isso ele contratou a Marie, para cuidar de mim até eu ter idade suficiente para lidar sozinho com as coisas.

  Porém, o tempo foi passando e ela conquistou a confiança e o carinho do meu pai, que acabou a deixando ficar até quando sentisse vontade de ir embora, coisa que não vai acontecer tão cedo, de acordo com ela. Desde então, ela mora com a gente fazendo nossa vida mais feliz e harmoniosa do que jamais fora e mais organizada. Sério, a Marie não tolera nenhuma bagunça na casa, seja no meu quarto ou no do meu pai. (Vocês precisavam ver quando ela viu a toalha em cima da cama dele, nunca vi meu pai ficar tão envergonhado e nervoso.) É, ela é uma mãezona, não só pra mim, mas, para ele também.

  Marie tem sessenta e quatro anos e é cheia de vitalidade. Faz quase todos os tipos de atividade física possível e, nesse meio tempo, tenta convencer meu pai e eu para que façamos também. Graças a isso, sua aparência não entrega sua idade: ela tem a pele clara com um leve bronzeado, o cabelo é de um louro bem claro com alguns fios brancos. Os olhos eram de um azul que de alguma forma transmitia alegria só de olhar pra você. Ela tinha por volta de um metro e sessenta de altura o que é um empecilho para pegar coisas altas, mas não para me dar uns cascudos ou uns puxões de orelha no meu pai — E estou falando no sentido literal, ela puxa mesmo a orelha dele se vir algo errado —.

   Como eu ainda estava de castigo, fiz a coisa mais sensata que pude: fui dormir. Foi uma daquelas decisões que parece ser boa no momento, mas que depois você percebe que foi muito ruim. Para começar, eu tive um pesadelo (Mais um, na verdade) bem esquisito do qual fazia um tempo que eu não tinha.

  Era basicamente o mesmo que eu tive antes: algum lugar muito escuro. Estava perdido, desorientado, confuso e ao mesmo tempo o lugar me parecia ser bastante familiar. Talvez fosse porque já tenha sonhado umas vinte vezes com essa paisagem. Não era só isso, tinha algo a mais. Uma sensação de que já estive ali, mas não lembrava. 

O lugar era enorme, no céu — ou eu acho que aquilo era o céu — tons em laranja e vermelho. O ar era ruim de se respirar, como se tivessem colocado pó de vidro e espalhado por todo canto. Ficava difícil para inspirar e toda vez que fazia isso meus pulmões pareciam pegar fogo, e se já não fosse o bastante, o vento era quente. À esquerda, havia quilômetros e quilômetros de cadeias montanhosas, o que me fez lembrar a Sr.ª. Allen explicando aquilo. Antes de chegar às montanhas, havia uma planície com o solo árido e seco, não havia nada, nenhuma planta sequer. À direita, havia, olha só, mais montanhas.

E então, quando me levantei para começar a caminhada, senti dores nas mãos, havia pedaços de vidro nas palmas das minhas mãos. O sangue corria entre meus dedos, tive vontade de gritar, mas lembrei que era apenas um sonho. Um sonho bem real na verdade. Contive um grito de dor e comecei a retirar os cacos de vidro das mãos, a cada caquinho tirado era como estar arrancando um dedo. A dor estava ficando insuportável. Quando finalmente consegui tirar todos, limpei as mãos na camisa e olhei para ver estrago que os malditos cacos tinham feito e... Nada. Não tinha um corte sequer nas minhas mãos. Estavam intactas como se não tivesse me cortado. É apenas um sonho, disse para mim mesmo e continuei andando.

  De tempos em tempos, eu olhava para a minha mão, para tentar descobrir como milagrosamente elas haviam sido curadas, quanto mais eu pensava nisso mais eu me convencia de que era apenas um sonho, exceto pela dor. Eu a senti como se fosse real. Entretanto, como era apenas um sonho, não me preocupei tanto, coisas estranhas aconteciam o tempo todo neles. Teve uma vez que sonhei que era o Aquaman e que montava em um cavalo-marinho gigante colorido.

  Eu devo ter andado por, sei lá, uns quinze minutos, e a paisagem continuava a mesma: montanhas de ambos os lados, o solo seco, mas só que agora o vento estava mais forte – mas ainda continuava quente e batia com certa violência no meu rosto fazendo com que eu o protegesse os olhos com o braço para que eu conseguisse enxergar aonde estava indo. Vez ou outra podia jurar que tinha escutado alguma coisa, urros, talvez. Mas, aparentemente, eu estava sozinho em algum lugar imenso e sem sinal de vida inteligente, a não ser, claro, eu — Não que eu seja muito inteligente. Bom, você entendeu.

  Após mais caminhada, acabei perdendo a noção de tempo, isso é, se o tempo passasse no sonho da mesma forma que na vida real. Avistei mais à frente o que parecia ser uma cabana. De longe não parecia ser grande coisa, a construção parecia ser bem antiga e de madeira. O vento foi ficando mais intenso, sentia meu rosto sendo cortado pelos micro pedaços de vidro que tinha no ar. A velocidade do vento foi aumentando, o chão barroso mais parecia se “desprender”, lançando blocos de terra aos céus. O único jeito de escapar daquela ventania toda foi correr até aquela cabana um pouco suspeita.

  Bom, eu estava certo sobre o lugar: não era muita coisa. Por fora era feita de madeira já desgastada, e o vento que a açoitava a fazia ranger. Até que abri a porta e fiquei surpreso. Por dentro não parecia nada com a vista de fora. A pintura nas paredes estava irretocável em tons de amarelo queimado. Os móveis pareciam ser feitos de mogno. Haviam quadros que representavam coisas bem desconexas com tudo que já tinha visto. Eram criaturas com chifres, pessoas empunhando espadas, lanças, escudos. E outras dezenas de coisas nas paredes. No porta-chapéus – obviamente havia um chapéu coco preto, ao melhor estilo Chaplin e um casaco preto.

  Mesmo lá dentro, conseguia ouvir o barulho do vento soprando bem alto. E, bom, era melhor ficar lá enquanto a ventania não cessava. Só que, de repente, ouvi a porta atrás de mim abrir, tentei me esconder, mas não havia lugar, mesmo detrás do sofá ainda seria visto facilmente. Então, fiz a coisa mais estúpida que veio na minha cabeça:

— Oi. Bela casa que você tem aqui. A propósito, não me mate, por favor. – Eu disse com as pernas tremendo.

  Por um momento, ficamos apenas nos encarando em silêncio, enquanto o vento uivava lá fora. O morador... A moradora — demorei um pouco para saber que era uma mulher, porque ela estava usando um pano no rosto e uma capa de chuva cor azul escuro que era grande demais para ela; até que tirou o pano e pude ver seu rosto — parecia surpresa ao me ver, talvez ela não recebesse muitas visitas de pré-adolescentes enquanto o “mundo” está se acabando numa ventania monstruosa. Torci para que ela tivesse piedade de mim, e não me expulsasse, ou coisa pior. Só que lembrei que aquilo tudo era um sonho, ela não podia me machucar de verdade.

  A mulher veio até minha direção e abaixei a cabeça quase batendo no chão, achei que estava frito naquele momento, mas ela passou por mim e foi até o porta-chapéus, onde jogou o casaco que estava usando. E, então se virou pra mim e pude vê-la melhor – Se era para ser morto, que seja olhando o meu... a minha assassina. Ela tinha os olhos escuros, apenas um pontinho brilhante no meio — parecia como uma noite escura de inverno em que não há muitas estrelas e você só vê apenas umas lá no céu que parece estar ali só para você. Ela tinha essa beleza “apagada”, fazendo com que a atenção fosse concentrada em seus olhos peculiares.

— Adrian. – Disse a mulher. Sua voz soou como música para meus ouvidos, por um momento esqueci que ela poderia me matar se quisesse, bastava me expulsar e eu estaria exposto no tornado. – Não esperava estar com você tão cedo.

  Eu estava numa espécie de transe, é a única explicação que posso pensar (sou facilmente manipulável pela minha cabeça). Vê-la foi como se alguma coisa na minha cabeça acendesse uma memória de algum momento da minha vida que por muito tempo havia esquecido. Demorei dois segundos a mais para compreender o que ela tinha dito e tudo que saiu foi:

— Dããbãã.

  A mulher riu delicadamente.

— Tudo bem, minha criança. Você está impressionado. Vamos mudar isso – Com um estalar de dedos eu voltei ao normal. Sem mais delírios ou encantamentos por ela – Assim está melhor.

— Ah, desculpe por isso. Não sei o que aconteceu. Geralmente não fico falando coisas sem sentido para... Mulheres estranhas que aparentemente me conhecem sem eu nunca tê-las visto antes.

  A mulher me examinou de cima a baixo. E, então, deu de ombros.

— Não importa agora. Venha, sente – Apontou para o sofá – Aposto que você deve ter algumas questões pertinentes.

— Algumas é eufemismo. – Eu disse.

— Você aceita alguma coisa? Um café? Água? Pizza de frango e queijo? Bolinhos? Biscoito?

  Peeeera! Como ela sabia que eu gosto de pizza de frango e queijo? Só duas pessoas sabem disso: Meu pai e o melhor pizzaiolo do mundo: Lue Stewart.

  Além disso, por que ela estava sendo legal com uma pessoa que ela acabara de conhecer?

— É água seria bom. – Respondi.

— Ótimo. – Em um passe de mágica apareceu uma jarra com água gelada e copos.

  Coloquei um pouco de água e bebi talvez um pouco rápido demais, pois saiu congelando tudo por dentro. Beber um pouco d'água pareceu acalmar meus nervos.

— Bom, temos coisas a tratar. – Disse a mulher com o tom mais sério, deixando a cordialidade de lado. – Você está correndo risco de vida.

  Ela estalou os dedos e apareceram pedaços de bolo em cima da mesa, pegou um e o levou a boca. Olhou para mim e disse:

— Então, quer um pedaço de bolo? Está delicioso.


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