Remanescentes - A Fazenda Amaldiçoada escrita por Eddie Stoff


Capítulo 17
Vamos à caça do coelho Andy




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Eu acabei ficando muito bom em atacar bonecos de treino. Ferdinand estava a três passos de distância dando dicas de como golpear. Até que ele era um bom instrutor, não era tão rigoroso quanto a Graci parecia ser. Ele gritava bem menos. Eu não era o melhor duelista dali, mas segundo ele o meu progresso estava razoavelmente dentro do esperado para o primeiro dia. Ferdinand explicou que os reflexos de batalha vão aparecendo quanto mais instigados somos a luta, seja contra bonecos de treino, contra uns aos outros ou contra monstros.

 Entre uma pausa e outra, Ferdinand arranjou uma compressa de gelo para colocar nas minhas costelas. A dor não era tão grande, quase não sentia mais, mas o gelo serviu para acelerar o processo de cura. Aproveitou e pegou uma pra si, pressionando onde eu havia acertado o golpe nele.

Em um dos golpes causados contra o boneco, acabei empregando força extra que nem sabia que tinha e acabei cortando um dos braços dele. Alguns alunos que estavam de frente para mim pararam o treinamento e caíram na gargalhada. A cena era engraçada: eu estava “lutando” contra um boneco sem um dos braços. Até Ferdinand entrou na onda e também riu.

— Acho que isso encerra o treinamento de hoje, Tampinha — disse Ferdinand, após diversas tentativas de conter o riso.

— Finalmente. Não aguentava mais maltratar meu grande amigo: boneco de treino — comentei.

O grandão ficou rindo enquanto olhava para o boneco todo machucado.

— Ah, claro. Mas acho que amigos não arrancam o braço do outro.

— Foi um leve deslize.

— Olhe para ele, não acho que o boneco diria que foi um “leve deslize”.

— É, eu acho que não. Por sorte, bonecos de treino não falam. — E mudei de assunto: — Ei, posso te perguntar algo?

— Claro. Manda — disse o grandão.

— É meio pessoal…

Ferdinand considerou se eu poderia perguntar, mas assentiu, indicando que eu continuasse.

— O que há entre você e a Candence? — A pergunta fez o garoto cuspir toda a água que tinha acabado de pegar.

— Por quê? Ela mandou você perguntar? — Ferdinand estava paralisado. — Por que você quer saber?

— Calma, grandão. — Foi difícil segurar o riso com o medo escancarado dele. — Ela não pediu nada. Sei que vocês têm uma história, mas vocês estão juntos? 

As bochechas de Ferdinand estavam vermelhas. Parecia um assunto delicado para ele.

— Por quê? Está a fim dela, Tampinha? — Ferdinand tentou brincar, mas ele não estava ficando mais relaxado.

— O quê? Não. Só fiquei curioso.

Ferdinand ficou me olhando, inquieto, pensando no que dizer.

— É complicado. Nos conhecemos desde sempre, sabe? Na época, Lucca e eu morávamos nas ruas, tínhamos fugido de casa por causa dos monstros. Certo dia, essa garota apareceu, também estava fugindo deles e o Lucca tomou a iniciativa de ajudá-la. Foi difícil, mas salvamos a Candence e ela passou a ficar com a gente até encontrarmos esse lugar. É meio óbvio dizer que eu gosto dela, e mais óbvio ainda dizer que ela sente o mesmo.

— Por que acho que tem um “mas” vindo por aí? — falei. Eu não era o mais experiente em relacionamentos, mas dava para ver que algo incomodava Ferdinand.

O grandão encarou o chão empoeirado da Arena.

— E se não der certo? Já conversamos sobre isso algumas vezes, e eu não quero magoá-la ou perdê-la. É difícil estar em um relacionamento quando um dos dois pode acabar morrendo de repente, sem falar que ficaria estranho caso terminássemos. Nicolas até hoje nunca mais falou com a Patrícia, a instrutora da cavalaria.

— Então é comum ter relacionamentos por aqui? 

Ferdinand olhou para mim como se aquilo fosse a dúvida mais boba que já tinha escutado.

— Adrian, são mais de sessenta Remanescentes confinados aqui dentro. A maioria sendo adolescentes. Preciso continuar?

— Não. Me arrependi assim que perguntei. Foi mal. Eu sou péssimo quando se trata de relacionamentos.

— E? — perguntou Ferdinand, quando ficamos nos encarando em um silêncio constrangedor.

— E o quê? É isso: eu não sei nada de relacionamentos — rebati. O grandão me encarou com o olhar de “ajudou muito, cara”. — Mas, se vocês gostam um do outro, não deveriam superar esse medo?

Ferdinand ficou estático na minha frente. Era como se eu tivesse dito a coisa mais óbvia. E então aconteceu a conversa mais estranha que já tive (e já tive várias):

— Então tudo que devemos fazer é conversar? — perguntou o garoto.

— Acho que sim. 

— Quer dizer, nós gostamos um do outro, nos damos bem e ela sabe tudo sobre mim. Isso deve ser um bom começo, não é?

— Não sei. Talvez?

Ferdinand me deu um abraço super apertado, praticamente me deixando sem ar.

— Desculpa, Tampinha. Você me deu algumas coisas para pensar. Quando sair daqui vou direto falar com a Candy, ainda temos algumas horas antes da atividade.

— Eu não sei o que fiz, mas fico feliz em ajudar — respondi, tentando respirar direito. 

— Enfim, deixando isso de lado, você está liberado do treino. Vá descansar um pouco antes de irmos caçar o Andy. Ah, é bom você dar uma olhada nesse machucado nas costelas. Dá uma passada na enfermaria, eles vão te deixar novinho em folha.

— Pode deixar — respondi. Pensei em me despedir de Nick e Graci, mas eles estavam gritando sobre quem tinha ensinado errado alguns golpes. — Até depois.

Ferdinand deu um tapinha no meu ombro.

Enquanto procurava pela enfermaria, passei em frente ao local onde os arqueiros treinavam, procurando Sue. A garota tinha sumido por horas quando foi escolher alguma arma, e não tinha notícias dela. Infelizmente, como estava com pressa para chegar no meu destino, não pude entrar na arena e não vi se ela estava ali. Queria saber se aquilo tudo estava sendo tão confuso para ela também. Um dia, você é um adolescente normal, no outro, está lutando contra monstros e aprendendo a usar espadas.

Por fim, cheguei à enfermaria. Quando meu corpo esfriou depois do treino, minhas costelas voltaram a doer um pouco mais. Talvez o abraço apertado de Ferdinand tivesse piorado aquela situação.

O lugar era uma tenda enorme com um leve movimento de Remanescentes indo de um lado para o outro. Os leitos eram separados por tecidos cor de areia. Um dos garotos deitados na maca reclamou de fortes dores no pé, o enfermeiro que estava cuidando dele levou um pedaço daquele bolo cura tudo e um copo d’água. O segundo tinha cortes nas pernas e nas mãos, outro enfermeiro passou para ajudá-lo às pressas.

— Está precisando de alguma coisa? — falou uma voz atrás de mim.

Subitamente eu virei e me deparei com uma garota. Ela tinha cabelos cacheados com uns lacinhos, olhos grandes em tom amendoado acobertados pelos óculos. Vestia uma camisa laranja, um short verde, e nos pés usava sandálias de florzinha.

— Ah, sim, por favor — respondi. — Estou com as costelas machucadas.

— Ok. Deixe-me dar uma olhada. — A garota levantou minha camisa para verificar o machucado. — É, a coisa está feia. — Ela fez uma careta, sem tirar os olhos do machucado.

— É, isso eu já sabia pela dor que estava causando — falei. Não queria ter parecido tão rude, mas aquela dor estava ficando insuportável.

— É para isso que estou aqui, não é? Senta ali. — Apontou para uma das macas desocupadas, enquanto procurava alguma coisa nas prateleiras. — Espera um momento enquanto pego um pedaço do bolo.

— Legal. Não precisa ter pressa, só está doendo muito. — Minha respiração estava ficando difícil e pesada, era como se eu estivesse escalando uma montanha gigante e o ar ficasse rarefeito.

Cinco minutos depois (que mais pareceram uma eternidade) ela voltou com o bolo.

— Aqui. Coma isto. — Ela ofereceu-me o pedaço de bolo.

Sem pensar um minuto sequer, empurrei o bolo goela abaixo. Felizmente ela tinha trazido um copo de água também, o que facilitou para engolir. O gosto ruim inicial era o mesmo, mas depois foi melhorando. Dessa vez, não tinha o sabor da comida da Marie.

Quando engoli, quase de imediato as minhas costelas foram voltando para o lugar, o que doeu bastante. Ficou mais difícil para respirar, mas lentamente as dores e os machucados foram diminuindo, até eu não sentir mais incomodando.

— Obrigado — falei à garota, que me encarava de um jeito estranho.

— Levanta a camisa — ela respondeu. — Quero ver se o ferimento sumiu mesmo.

Aquilo foi estranho. Mas ainda assim levantei a camisa.

— É. Está curado, não que eu tivesse alguma dúvida — disse a garota, tentando segurar um sorrisinho. — Depois que redescobriram a receita do bolo cura tudo, nossa vida aqui na enfermaria ficou mais fácil. Enfim, cadê meus modos, não é? Meu nome é Lilian, mas todo mundo por aqui me chama de Lili. 

— Meu nome é... — Ela me interrompeu na hora.

— Eu sei. Você é o Adrian. O garoto novo que veio acompanhando a filha de Aezirel.

— Será que não passa pela cabeça de vocês que foi ela quem veio comigo? — perguntei. Já estava ficando frustrado em falarem que eu acompanhei a Sue por toda sua jornada épica até chegar ao Instituto, quando foi claramente o contrário. 

— Tanto faz. — Lili deu de ombros. — Mas ela foi Clamada. E você?

— Não é justo — resmunguei.

— Nada na vida é justo, Adrian — disse a garota. — Eu queria ser boa com lanças, mas meu pai é deus da medicina. E aqui estou eu. — Fez um gesto circular com as mãos, referenciando a enfermaria.

— Mas é uma coisa boa, não? Tão importante quanto saber usar uma lança — falei. — Enfim, obrigado por ter curado meu machucado, mas agora preciso ir. 

Estava quase saindo quando ela segurou meu braço.

— Ei, espera aí, apressadinho. Como é que você conseguiu esse machucado?

— Ferdinand — respondi. — Estávamos treinando e ele golpeou com a espada.

— Sempre ele. — Lili colocou a mão no rosto. — Quase toda semana ele manda um aluno com machucados pra cá. Aquele grande desajeitado. — A maneira como ela chamou Ferdinand quase parecia que não era aquilo que queria ter dito realmente, mas não procurei entrar em detalhes.

— É, aquele grande desajeitado — repeti suas palavras. — Obrigado, Lili.

— Por que está com pressa? — perguntou a médica. — Tem algum lugar pra ir?

— Pensei em descansar um pouco antes da caça ao Andy — respondi. A garota me olhou espantada.

— Vai com calma, esquentadinho — manifestou-se a médica. — Mal chegou e já está indo para a caçada? Não sei se é corajoso ou burro, Adrian.

— Talvez eu seja os dois, Lili. E o Gregório também, já que ele está me forçando a ir.

— Então tudo bem — disse Lili. — Já que está com tanta pressa, pode ir. Nos vemos mais tarde, então.

— Você também vai? Achei que não fosse de lutar.

— Ora, não luto. É que sempre precisam de médicos para curá-los. Claro, ninguém se machuca muito, mas sempre tem um ou outro que se esforça para nos dar trabalho.

— Bom, até depois. — Me despedi e fui direto para o quarto.

Pelo caminho fiquei pensando no que poderia acontecer durante a caçada. Tentei não pensar negativamente em tudo de ruim que poderia acontecer comigo, mas não foi de muita ajuda. 

Quando cheguei no meu quarto, fui logo para o banheiro. A água quente me fez desligar os pensamentos negativos por um momento. Me senti desmoronando. Toquei onde estava machucado minutos atrás, mas, de fato, não estava mais doendo.

Parei em frente ao espelho da pia, o reflexo que tinha de mim mesmo não era um dos melhores: meu rosto, mesmo após o banho, ainda ostentava um semblante de cansaço e tristeza. Encarar aquele reflexo era doloroso, parecia que eu tinha envelhecido dez anos em dois dias.

Voltei à mesinha, recoloquei Anoitecer em meu pulso e de novo senti o mesmo choque inicial que ela dava quando a colocava. Ainda faltavam duas horas para o sol começar a se pôr e ter início a caça ao coelho Andy. Fiz a única coisa que poderia fazer naquele momento: peguei comida e liguei a tevê.

Me enterrei no sofá.

Não sairia dali até a hora da caçada.

***

A caçada estava prestes a começar quando soou a corneta ensurdecedora. Eu juro que ainda vou dar um pescotapa em que faz isso. Ainda não tinha me acostumado com aquilo e quase pulei do sofá.

Peguei o casaco que estava no braço do sofá e fui em direção à saída do quarto. Para a minha má sorte, eu não tinha sido o único a ter voltado para o dormitório quando o treinamento acabou. A fila para atravessar a ponte era relativamente grande.

A maldita corneta soou ruidosamente de novo, o barulho agudo ecoava pelos quatro cantos do Instituto.

Não demorou mais que dez minutos para que eu conseguisse atravessar. Enquanto eu esperava, vislumbrei o céu. Estava em tons alaranjados, o sol estava se escondendo atrás das poucas nuvens. Era uma cena linda de se ver e experienciar, coisa que fazia com meu pai quando ele tinha uma folga no Planetário. Aquela lembrança de meu pai me fez ficar infeliz por não ter sido capaz de salvá-lo, ou salvar a Marie. 

— Eu vou trazer você de volta, pai — sussurrei.

Gregório, como líder do Instituto, estava aos pés da Grande Árvore. Estranhei a Sr.ª Allen não estar presente, já que, como ela gostou de frisar, é também a diretora do Instituto. Gregório tinha trocado o figurino e agora estava trajando roupas mais casuais.

Formou-se um quarto de círculo à sua frente. Gregório coçou a nuca e mexeu no bigode, e só então falou:

— Olá a todos! Estão animados para a caçada?

A multidão gritou em resposta.

— Calma. Calma. — Fez gesto com as mãos para cessar a gritaria. — Vocês já sabem como funciona, certo? Porém, temos dois novatos — apontou para o meio da multidão, para mim e para Sue, que estava distante —, então darei uma explicação rápida. A caça ao coelho é composta por três equipes: verde, laranja e vermelho. Cada uma delas é liderada por duas pessoas: um arqueiro e um espadachim. O objetivo, como o próprio nome já diz, é caçar o coelho Andy. Para isso vocês precisarão marcá-lo com a cor da sua equipe. Andy é um ser mágico e não pode ser morto por suas armas, então o combate está liberado. — Gregório espanou as mãos. — Bom, é isto. Informações dadas, agora a parte que deixa vocês tão ansiosos quanto a caçada: saber em qual equipe foram colocados. — Ele virou-se de costas, ficando de frente para a Grande Árvore. — Sem mais delongas, os papéis estão a postos na Grande Árvore. Vão, vejam e juntem-se às equipes designadas. Vocês terão cerca de quinze minutos para se reunirem, colocarem as armaduras e aí, só após meu sinal, terá início a caça.

Gregório, como um passe de mágica, estalou os dedos e entrou num portal que se abriu do seu lado.

Os demais Remanescentes foram correndo verem em qual equipe estavam. Eu, como prezo pela minha saúde física e por não gostar de ser espremido, esperei eles saírem aos poucos para só então ir ver em qual equipe eu fiquei. Felizmente, eu não tinha sido o único que esperou para ir. Susan estava ali parada, olhando com estranheza aquele tanto de alunos correndo até a árvore.

— Sue! — chamei, enquanto ia em direção a ela.

Ela olhou pra mim e abriu um largo sorriso. A garota tinha trocado de roupa. Carregava uma aljava no ombro, e o arco em mãos. Ela parecia um tanto perigosa com aquela arma. Tinha esse recém-descoberto olhar feroz nela, como se finalmente tivesse aceitado que sua vida seria daquele jeito daqui em diante. 

— Oi, Adrian — disse ela.

— Você sumiu depois que foi ao Arsenal. Fiquei preocupado. Onde você estava?

— Estava no Arsenal, Adrian. Fiquei indecisa em escolher uma arma, até porque não sou do tipo que sai esfaqueando todo mundo. Só que a Leta disse para que eu levasse o tempo que fosse necessário. Algo sobre “escolher a arma perfeita para seu estilo de luta”. — Sue ergueu o arco. Mais de perto, deu para ver que era semelhante ao de Candence, só que esse sendo completamente preto e com alguns desenhos entalhados.

— Leta disse que esse arco foi feito por um deus artesão, Nelder. — Susan dedilhou a arma, apontando para duas runas incrustadas nela. — Ela disse que essas runas significam “Nunca Erra”.

— Deve fazer você ser a melhor arqueira deste lugar ou do mundo, ou dos mundos. Só não deixa os outros alunos saberem disso.

Sue sorriu, mas desfez o sorriso tão rápido quanto começou. Tinha alguma história por trás daquela reação.

— Pode ser — disse Sue, recolhendo os ombros. — Acho que deve estar errado isso daí. Eu não acertei uma flecha no centro do alvo. Se não fosse o bastante, ainda tive que aturar aquela chata da Candence falando bobagens sobre eu errar os disparos.

— Não dá para ser a melhor arqueira em apenas uma tarde, Sue — tentei confortá-la. Porque, obviamente, por mais que seu arco fosse o “Nunca Erra”, não dá para esperar que alguém sem experiência seja capaz de executar as coisas com perfeição na primeira vez. — E em relação à Candence, é só não cair na provocação dela. Tem o fato de você ter sido recém Clamada, ela não está sabendo lidar com isso. Se você acha que sua tarde foi difícil, imagina treinar com o Ferdinand.

— O quê? Quando isso aconteceu? — Sue pareceu surpresa.

Contei a ela sobre o treinamento que tive durante toda a tarde com o Ferdinand. E, se não bastasse ele ser meu treinador, ainda falei sobre a luta-treino que tivemos, sobre como quase o venci. Sue começou a rir quando terminei de contar. 

— Por que está rindo, Susan? Não foi nada engraçado. Ele machucou minhas costelas! — bufei. Mas, honestamente, eu não estava com raiva dela.

— Ai, desculpa, Adrian. É que não achei que fosse ser possível vocês estarem juntos sem tentar arrancar a cabeça um do outro.

— Nah, acho que já está tudo bem entre nós — disse eu. — Acho que devo agradecer a Candence depois.

A expressão de alegria da Sue se foi na hora. 

— Vamos olhar em qual equipe estamos. — Sue mudou de assunto rapidamente, e logo foi em direção a Grande Árvore.

— Ei, Sue, espera. — Segurei-lhe o braço. — Você disse que pegou duas armas. Qual foi a outra?

Quase que imediatamente ela rodou um anel no dedo indicador. Se eu não tivesse me afastado, provavelmente estaria machucado de novo. Sue retirou o anel após rodá-lo duas vezes. Ele se alongou ao ponto de virar um bastão de aproximadamente um metro e meio de comprimento.

— Ops! Preciso apontar melhor isso na hora de retirar do dedo — disse Sue, tentando se desculpar. Mas achei que ela tinha feito de propósito depois que mencionei a Candence.

— Esse aí não tem runas — apontei para o óbvio. Olhei para o bastão, não parecia ter nada de extraordinário. — Parece-me ser uma boa arma, Sue.

— É provável que seja mesmo, mas enquanto eu não utilizá-lo bem, não será tão eficaz. — Sue apertou um pequeno botão na parte inferior do bastão e o objeto encolheu e tomou a forma do inofensivo anel. Ela recolocou em seu dedo.

Enquanto estávamos conversando, a baderna em frente à lista das equipes foi diminuindo, até não mais que cinco pessoas. Elas conversavam entre si, agitando os braços. Não demorou muito e foram para suas respectivas equipes.

Sue e eu fomos até a Grande Árvore. Tinha a esperança de cairmos no mesmo time. No pior dos cenários, eu cairia contra ela, Candence e Ferdinand, ou seja, todos que conheço. No melhor, seríamos do mesmo time e conseguiríamos vencer. O dia anterior, mesmo sendo caótico, mostrou que podíamos trabalhar bem em conjunto quando não brigávamos entre nós. Comecei a procurar pela equipe vermelha, felizmente meu nome não estava lá. Além de não conhecer ninguém daquela equipe, ela era liderada pela Graci, a instrutora casca grossa da Arena dos Guerreiros.

— Isso! — gritou Sue do meu lado. — Achei meu nome. Estou na equipe laranja, liderada por um tal de Nick e pela instrutora que me ensinou na Arena de arquearia: Marina. — Ela se virou para mim, triste. — Infelizmente, você não está aqui, Adrian.

— Bom, acho que sobrou a equipe do Ferdinand — concluí. — Nick é um cara legal, você vai gostar dele.

Sue afastou-se da lista e me abraçou. Um abraço apertado, demorado. Senti meu corpo prestes a desmoronar. Eu nunca havia sido tão abraçado constantemente assim, nem mesmo pela Marie ou meu pai. Laços afetivos, tirando meu pai e Marie, eram quase inexistentes para mim. Porém, pela primeira vez, foi bom sentir que alguém além deles se importava comigo.

— Se aparecer na minha frente, Cabeção — Sue se afastou devagar de mim —, vou acertar uma flecha em você, já que “nunca vou errar”.

Não sabia se ela estava brincando.

— Ou me cutucar com seu bastão. — Entrei na onda, esperando ter sido apenas uma brincadeira. — Além do mais, se você aparecer na minha frente vou ter que usar Anoitecer e estou pegando o jeito.

— Você só me acertaria se eu fosse um boneco de treino, Adrian.

Ela riu da própria piada. Após se despedir, Sue seguiu em direção a onde estavam os membros da equipe laranja. Fui até a equipe verde, encabeçada pelo Ferdinand e, certamente, com a Candence para ajudar, já que ela não estava nos outros dois times.

Havia um círculo para ouvir as instruções do Ferdinand, sendo apoiado pela Candence, que andava de um lado para o outro conferindo se as armaduras estavam bem encaixadas. Entre os integrantes do time verde estava Lili, a enfermeira que tinha me ajudado antes. Ela estava vidrada no que Ferdinand dizia. 

— Adrian! Finalmente você apareceu. Já estava achando que teria que arrastar você até aqui — disse Candy, se afastando dos outros integrantes.

Ela me puxou pelo braço até onde estava sobrando uma cota de malha e a couraça.

— Veste aí, acho que é o tamanho certo pra você.

— É bom ver você também, Candence — respondi.

— Certamente que é.

Fiquei todo perdido na hora de colocar a armadura e depois para amarrar os cordões. Vendo que eu estava todo perdido, Candy veio me auxiliar e apertou um pouco forte demais, ficando difícil de respirar.

— Assim você vai matar o garoto, Candy — reclamou Ferdinand, sem sair do lugar, e voltou a dar as ordens.

Após ter amarrado de uma forma que ficaria bom para respirar, Candence se afastou um pouco e ficou me encarando.

— E então, como está? — perguntou.

— Bem. É pesada, mas estou bem — falei. Era preciso ser forte para não desabar com tudo aquilo amarrado. — Parece que estou carregando uma porta.

— É para ser pesado mesmo — alertou a garota. Ela não estava mais sorrindo, mas concentrada nas palavras que Ferdinand estava passando. — Você vai receber golpes duros que, se não fosse por este peitoral, te matariam facilmente. Bom, não literalmente, já que ninguém se machuca pra valer aqui. Já no meu caso, como sou da arqueria, a minha é mais leve que as demais, para facilitar a agilidade.

— Será que ainda há chance de eu arranjar um arco? — perguntei, mesmo sabendo a resposta.

— Não! — disse ela. — Vem. Ferdinand está terminando de dar as últimas instruções.

As instruções que ele estava nos dando não eram tão complicadas e consegui absorver quase tudo que ele tinha dito. Felizmente, ele havia dado uma informação que Gregório se esquecera de contar, ou simplesmente não quis: quem for atingido pelo time adversário três vezes é eliminado. Porém, cada golpe tem que ser feito por três pessoas diferentes, o que dificulta ser eliminado rapidamente. Caso não consigam capturar Andy, ganha quem tiver mais membros restantes. (Ou seja, vão focar o novato e eliminar ele logo de uma vez, que no caso sou eu.).

O céu tremeu ao reverberar da maldita corneta. Os quinze minutos finalmente terminaram, e agora era hora da caça. Gregório voltou em um novo portal, fez todo um discurso acalorado sobre o vencedor receber as honras e tudo mais. Ele fechou os olhos por não mais que cinco segundos e apareceu um cajado dourado.

Com o cajado em mãos, fez gestos e abriu um novo portal, mas esse era diferente do que ele tinha feito anteriormente: esse era maior, com ar meio sombrio e nada convidativo, levemente semelhante ao que os Zumbis de Areia fizeram para fugir com meu pai. Os outros Remanescentes marcharam para a abertura, eles gritavam entusiasmados com o início da caça.

Antes de entrar, dei uma última olhada para o céu. Uma onda de choque vindo da Anoitecer fez “acender” meus sentidos. Apertei o botão esquerdo e, em segundos, a espada repousava em minha mão. Eu parecia estar pronto para a luta.

E adentrei o portal.

Cá entre nós, eu sei agora que mágica é real. Mas aquilo era além do mágico. Uma hora eu estava abaixo de uma árvore gigantesca, e depois estava no que parecia ser uma floresta. Não parecia uma floresta, era uma floresta. 

Olhei para todos os lados, só vi gente do meu time, que agora ostentavam faixas verdes no braço. Era como se estivéssemos jogados em algum lugar para ver quem sobreviveria por mais tempo e é exatamente isso que se tratava o exercício da caça ao coelho: sobreviver. 

O time verde se reuniu sob as ordens do Ferdinand, que agora não possuía mais o sorriso amigável.

— Vamos lá, verde! — gritou o grandalhão. Os outros integrantes agitaram suas armas. — Sei que somos todos amigos, mas durante a caçada somos adversários. Não temos outra opção senão vencer! Pelos deuses!

— PELOS DEUSES! — Um grito uníssono partiu dos outros integrantes do time verde.

— Avançar! — Ferdinand ordenou. — Vão! Vão!

Como bons subordinados, corremos como se não houvesse amanhã. Não éramos os únicos ali, tínhamos que tomar cuidado para não sermos atingidos logo de cara por flechas adversárias e acabarmos eliminados. Formamos um bloco, protegendo a retaguarda, os lados e a dianteira. Os galhos espalhados no chão foram obstáculos iniciais para continuar prosseguindo em direção ao Andy.

— Parem! — ordenou Candence. Estávamos perto de um riacho que corria forte e rápido na direção de uma descida. — Está muito estranho, não acham? Não vimos ninguém até agora.

— Está quieto demais — falou um garoto trajando armadura completa, com direito a elmo emplumado. O único, na verdade.

— Cadê os outros? — perguntou um segundo integrante.

— É uma armadilha? — deduziu o terceiro.

Um murmurinho começou a se aflorar até que Ferdinand interveio:

— Quietos! Não se esqueçam do que planejamos agora pouco, ok? — disse uma frase digna daqueles generais estrategistas dos filmes clássicos. — Candence, Mateus, Glória e Adrian, venham comigo. Formaremos uma equipe menor, discreta. Sérgio, você fica responsável pela outra parte da equipe. Fique atento à nossa volta, mas só faça algo quando parecer que não daremos conta. Isso pegará os adversários desprevenidos.

— Certo, chefe! — disse Sérgio, quase batendo continência para Ferdinand.

— Eu? — Cutuquei Candence que estava do meu lado. — Nem sou tão experiente assim.

Sérgio organizou os outros componentes: enfermeiros e arqueiros ficavam mais atrás, enquanto os que portavam espadas e escudos ficavam à frente para dar o combate inicial em quem aparecesse.

— O Fer viu muito potencial em você, Adrian, não só ele. — Ela mexeu no meu cabelo, como quando faz carinho em cachorro, o que foi bem esquisito. — Não fique tão nervoso ou ansioso, basta relaxar e se divertir, Adrian.

— Relaxar? Fácil. É só fingir que não tem várias pessoas querendo me acertar com espadas, lanças e flechas — rebati, sarcasticamente. — Moleza, Candy.

— Você me chamou de Candy? — Ela fez uma careta, e depois sorriu.

— Talvez...

— Apenas relaxe.

E voltou para o lado de Ferdinand.

Ferdinand deu a ordem para voltarmos a nos mover. Abordamos a mesma estratégia de antes, mas em menor escala: proteger a dianteira com Mateus, um garoto de óculos e magricela que carregava um grande escudo e uma lança colossal. Nas laterais, Ferdinand e eu com as espadas em punhos. Mais atrás, dando cobertura, Candy e Glória, uma garota que trajava roupas pretas e maquiagem pesada, estavam atentas com os arcos para retardar qualquer um que viesse pela frente ou atrás.

A formação deu certo nos primeiros metros, mas acabamos sendo surpreendidos por membros do time laranja. Eles estavam em maior número e acabaram nos cercando. Candence e Graci ficaram acuadas mais atrás, sem brecha para dar algum disparo com o arco. Mateus tremia ao ponto de quase derrubar sua lança e o escudo. Ferdinand continuava rígido sem dizer uma palavra sequer. Parecia estar concentrado, focado no que fazer nos próximos minutos. Eu, por outro lado, estava apreensivo sem saber o que fazer. Mas uma coisa era certa: não sairíamos dali de maneira amigável.

— Mas olha só o que os bons ventos nos trouxeram, pessoal — falou um cara com a voz abafada por causa do elmo. — Se não é o grande Ferdinand e sua namoradinha, Candence.

Ferdinand continuou calado.

— Veio apanhar de novo, Lucas? — provocou Candy. — Não basta semana passada ter sido feito de idiota na frente de todos do seu time?

Glória deu um sorrisinho tímido. Mateus, ao meu lado, deu uma relaxada no seu nervosismo e a tremedeira diminuiu. Os “comparsas” que seguiam Lucas cochicharam entre si, relembrando o vexame que ele tinha passado na semana anterior.

— Não quero desperdiçar meu tempo com vocês, perdedores. Assim que meus rapazes acabarem com vocês, iremos atrás do restante do seu time — esbravejou Lucas. O rapaz retirou seu elmo, mostrando sua expressão de ódio contra Ferdinand. — Imagino que seu time esteja por perto como você sempre faz, Ferdinand. Eles verão que o líder fraco deles será derrotado facilmente. 

Lucas foi tão arrogante que após a ordem, ele deu de costas e voltou pelo caminho de onde veio, para se reagrupar com o restante do time laranja e contar que tinha derrubado o líder da equipe verde.

Era uma luta injusta. Dez contra cinco, sendo um deles inexperiente (obviamente eu) e outro extremamente nervoso. Ferdinand parecia compensar a raiva e desdém de Lucas em bravura, experiência e tamanho, mas sozinho não era páreo para os inimigos. Candy e Glória ainda precisavam de uma abertura para começar a atirar.

Os “capangas” do time laranja avançaram. Ferdinand, como sempre, tomou a dianteira. Outros dois foram para cima do Mateus que, mesmo tremendo, conseguiu repelir os ataques com seu escudo e acertar um deles com a ponta de sua lança. As garotas se afastaram e começaram a atacar com o arco, tentando espantá-los. Eu tentei lembrar o treinamento com Ferdinand, e não ser eliminado. Meus instintos de batalha, mais uma vez, não falharam e consegui me defender.

— Mateus! — gritei pelo garoto.

Ele veio cambaleante ao meu lado, pôs seu escudo na frente das espadas do inimigo, aparando os golpes. O garoto manejava a lança com certa dificuldade por causa do tamanho dela, mas uma vez ou outra conseguiu acertar de raspão algum deles. Só depois reparei que Mateus tinha sido atingido uma vez. Mais duas e ele estaria fora. 

Cerca de seis deles haviam sido atingidos duas vezes, precisava que mais alguém os atingisse também. Ferdinand, que continuava segurando os adversários com sua espada, havia sido marcado uma vez na lateral da couraça. Obviamente, o garoto recebeu o maior foco, mas o líder do time verde era experiente e conseguiu evitar ser atingido.

Os inimigos recuaram quando viram que não seria tão fácil nos derrotar. Isso deu brecha para que as garotas do ataque à distância começassem a atirar. Quando as flechas começaram a voar, finalmente tivemos chances de vencer. As primeiras atingiram quatro adversários, fazendo-os desaparecer em fumaça alaranjada. Restando apenas suas faixas laranja no chão barrento. Foi surreal como nós cinco conseguimos durar tanto tempo naquela desvantagem. 

— Reagrupar! — ordenou o garoto que Lucas deixou no comando.

Agora, a luta estava ficando justa. Eles ainda tinham mais gente em campo, mas nossa breve vitória nos deu confiança, e até mesmo Mateus havia parado de tremer. Nós fizemos o mesmo que eles: reagrupamos. Ferdinand estava ofegante, pingando de suor.

— Tampinha, o restante do nosso time deve chegar em breve. — Ele me chamou entre uma respiração pesada e outra. — Temos que segurá-los até que o reforço apareça. Você e eu vamos ter que dar conta disso.

— Nós? — perguntei, estranhando o raciocínio dele. — Mateus é quem tem o escudo e pode melhor proteger você.

— Não, Adrian, tem que ser você para me ajudar. Somos os únicos com a espada. Elas duas vão nos dar cobertura, certo? — Olhou fixamente para as garotas.

— Sempre, Fer — concordou Candy, dando um inesperado beijo nele. Talvez os dois tivessem conversado sobre a situação deles mais cedo, como Ferdinand disse que faria. — Mateus, você fica conosco para nos proteger.

Aquele beijo fez Ferdinand se encher de coragem.

— Agora! — gritou ele.

E fomos correndo feito loucos para cima do inimigo.

Enquanto corríamos, flechas zumbiam rente aos nossos ouvidos, indo de encontro aos alaranjados. Só no impacto das flechas, mais dois foram eliminados: quatro contra cinco. Eu encarei outro com um punhal. Ele tentou me acertar na barriga, mas consegui esquivar pulando para trás. 

Mais flechas voavam.

Mateus veio correndo com sua lança, mas acabou escorregando na lama e caiu sentado. Os adversários não perdoaram e acertaram-lhe mais vezes e ele acabou eliminado. Me senti triste por ele ter sido eliminado, já que tentou me ajudar. Ao invés de continuar lamentando, decidi lutar ferozmente contra os dois. Eu conseguia defender facilmente, rolava, esquivava, pulava para trás, para o lado, parecia tudo tão fácil, que resolvi atacar. 

Manuseei Anoitecer em uma investida rápida na horizontal, acertando um terceiro que acabou virando fumaça laranja na minha frente. Infelizmente os outros dois não ficaram parados e tentaram me golpear. Escapei de um deles por pouco, mas fui acertado de raspão e contabilizado.

Mais um acerto e seria eliminado.

Ferdinand apareceu por trás deles como uma assombração, acertando-os rapidamente. As flechas das garotas pararam de voar, o que me fez deduzir que tinham acabado. O que acabou se confirmando quando Glória gritou:

— Estou sem flechas por agora. Vai demorar dez minutos para recarregar a aljava.

— Voltem e procurem o Sérgio — ordenou Ferdinand. — Já era para ele estar aqui com o restante do pessoal.

Candy e Glória foram correndo mata adentro. Com sorte elas encontrariam os aliados.

Ferdinand empurrou um dos adversários, que com agilidade conseguiu esquivar de seu golpe com a espada. O grandalhão veio mais uma vez ofegante, e agora colou as costas nas minhas. Tentei lutar de igual para igual contra os adversários laranjinhas, tentando lembrar de todo treinamento que tive naquele dia. 

Um deles já tinha sido marcado por mim na primeira vez, então Ferdinand teria que acertá-lo. O Laranjinha Um tentou me acertar, mas coloquei Anoitecer na frente e aparei seu golpe. Tentou mais uma, duas vezes e em todas consegui esquivar. Ferdinand parecia estar na mesma situação que eu.

— Ferdinand — falei em meio à luta. Não sei porque falei aquilo, mas parecia a coisa certa a se fazer.  — Trocar!

Falei na esperança dele entender a mensagem. Em um movimento rápido, rolamos para lados opostos, confundindo os inimigos, que acertaram a lama. Levantamos ligeiramente e atingimos os adversários contrários, fazendo-os virar poeira laranja em meio à claridade da luz.

Exaustos e terrivelmente ensopados de suor, Ferdinand e eu nos esbarramos um no outro. Ele guardou a espada na bainha. Apoiou-se mais forte em mim e abriu um sorriso.

— Eu disse que tinha que ser você, Tampinha. Eu sei o que estou fazendo.

Respondi com uns tapinhas em suas costas. Sem tempo para descansar, entramos na trilha em que as garotas foram correndo, na tentativa de achar mais do time verde e conseguir algum médico para arranjar um pedaço do bolo cura tudo. Por sorte (eu tenho que parar de falar isso), Candy e Glória não estavam muito longe ou sozinhas. Com elas, vinham os demais integrantes, entre eles três médicas que reconheci da enfermaria, incluindo a Lili.

O bolo cura tudo ajudou a recuperar o fôlego da luta anterior. O problema era que tanto Ferdinand quanto eu estávamos marcados duas vezes. Com isso, nós e os demais do time verde voltamos a andar, ficando atentos a cada movimentação em arbustos, cada chacoalhar nas folhas das árvores. 

Os guinchados do coelho Andy foram ficando mais altos com o passar do tempo. Desde a luta contra os laranjinhas, encontrávamos um ou outro pequeno grupo das demais equipes. Como estávamos em vantagem numérica e contando com o fator surpresa, não foi difícil derrotá-los. Porém, eventualmente, alguns membros do nosso time foram sendo eliminados, incluindo uma das enfermeiras

Aquele lugar era enorme, praticamente infindável. Naquela altura, o número parecia mais irrisório do que a qualidade de cada um. Quase todos nós tínhamos sido marcados duas vezes, então por isso redobramos a atenção. Dos vinte integrantes iniciais, apenas onze restavam no nosso time.

Mais adiante, uma silhueta peluda e saltitante surgiu entre as árvores. Era o coelho Andy. Quando falaram que era um coelho, imaginei ser um bicho pequenino, mas de perto ele era enorme. Era quase do tamanho de um carro e com os pelos brancos. Estava tudo calmo. Suspeitamente calmo.

Era quase como se fosse...

— Abaixem! — gritou um dos garotos carregando uma lança, mas não foi rápido o bastante para se abaixar e foi atingido em cheio na armadura por uma flecha, se desfazendo em fumaça esverdeada.

Por trás das árvores pulou uma figura conhecida e antes amigável: Nicolas. De todos os lados saltaram poucos Remanescentes com faixas laranja envolta dos braços. Alguns carregavam arcos, o que poderia ser um problema, pois tínhamos mais lutadores corpo a corpo. E, ao lado de Nick, uma figura detestável: Lucas. Mais atrás, uma garota de camisa amarela e couraça apareceu carregando um arco preto, era a Sue, que de forma inexplicável não tinha sido eliminada, tampouco marcada. 

Mesmo na desvantagem, a equipe laranja, talvez pela forma como Nick se portava, parecia confiante que ainda teria alguma chance contra nós. 

— Ferdinand, meu amigo — cumprimentou Nick, usando um tom agradável. — Parece que nosso querido Lucas aqui se antecipou ao comemorar sua eliminação. Mas não tem problema. Oi, Adrian. Você ainda está aqui? Interessante. Candy, é sempre bom ver você.

— Nick... — falou Ferdinand — Você derrotou a Graci?

— Sim, foi difícil pra caramba. Sabe como é, né?! Ela é muito teimosa e não saiu sem deixar sua marca. — Apontou para a mancha avermelhada na armadura. — Bom, tenho que agradecer a vocês, já que eliminaram alguns do time dela. Mas chega disso. Estou aqui para aceitar sua rendição, meu amigo.

— Render? — Ferdinand riu. — Nem morto, Nick. Você sabe que não entrego vitória. Além disso, não sei se você viu, temos a vantagem numérica.

— Eu sei — Nick abriu um sorriso. — Mas vantagem numérica não serve de nada se não tiver estratégia. E eu também não queria uma vitória fácil, por isso não marcamos o Andy. Então, como quer fazer isso?

— Atacar! — Foi Candence quem gritou, inspirando os poucos dos nossos.

— Ai, tudo bem — disse Nick, confiante. O time laranja tinha menos integrantes, mas era óbvio que o líder deles estava confiante sobre o resultado da luta. — Ataquem eles também, minhas crianças.

Nós tínhamos mais gente, mas muitos de nós estávamos marcados com dois golpes, enquanto muitos deles nem tinham sido marcados. Os arqueiros do time laranja contra-atacaram e, infelizmente, miraram precisamente nas nossas arqueiras, eliminando-as rapidamente. Nossas enfermeiras acabaram ficando facilmente expostas e  atingidas, virando fumaça verde. Rapidamente, nossos aliados foram sendo eliminados, nos deixando com menos integrantes.

Por fim, éramos apenas Ferdinand, eu e mais dois espadachins. Lucas veio com sangue nos olhos para cima do Ferdinand, que esquivou agilmente e acertou o inimigo na parte das costas, o eliminando de maneira rápida.

Um dos garotos que sobrou com a gente agitou as mãos, criando uma barreira que impediu as flechas de nos atingirem por um breve momento.

— Para as árvores — ordenou Ferdinand, para que ficássemos protegidos.

Com a ordem do grandão, nossa proteção foi desfeita, atingindo o garoto que a tinha feito. Nosso último homem, além de Ferdinand e eu, não demorou muito para cair também, depois que uma nova rodada de flechas começou a voar. Foi surpreendente como poucos Remanescentes conseguiram fazer um estrago gigantesco contra nosso time

Sabíamos que não teríamos mais chances, então fomos com tudo. Não sei explicar, mas senti uma força crescendo dentro de mim. Algo no meu interior não queria perder. Ouvi uma voz profunda e suave na minha mente: Você consegue, Adrian. Me concentrei naquelas palavras, o cansaço estava batendo, mas não queria ceder. As sombras são suas aliadas, Adrian, use-as com sabedoria, sussurrou a voz na minha mente. Não entendi o que significava, mas uma coisa era certa: quem estava dizendo isso era minha mãe.

Senti as sombras que eram formadas pelas árvores. A vitalidade estava voltando para meu corpo, os movimentos dos inimigos foram ficando lentos ao ponto de parecer que estavam parados. Ferdinand, ao meu lado, estava com o cansaço bem evidente. As flechas pararam subitamente. Nick veio pessoalmente para a briga, lutando contra Ferdinand. Em um momento falho, Ferdinand perdeu a passada e foi atingido pelo Nick, se esvaindo em fumaça esverdeada. Eu não tinha chances contra ele, afinal foi o garoto que treinou Ferdinand e os demais alunos.

Restava apenas eu. O novato. O acompanhante da Susan.

Nick ordenou que os outros recuassem. O líder da equipe laranja investiu em um golpe rasteiro, mas consegui esquivar. Tentou outro golpe na horizontal, coloquei Anoitecer na frente para frear o ataque. Tentou mais outro e outro. Nossas lâminas se chocavam constantemente. Minhas energias estavam se extinguindo de novo. Era só uma questão de tempo até eu ser atingido.

Armei um golpe para acertar no contrapé dele, mas o garoto foi rápido e esquivou para trás.

— Nossa — falou Nick, animado. O garoto parecia bem entretido no que eu podia fazer, talvez analisando se eu teria potencial para algo mais.  — Você tem futuro, Adrian.

— Ferdinand foi um bom treinador — respondi, arfando.

— Eu sei. Eu que ensinei o que ele sabe. Sendo assim, tudo o que você sabe.

Nick avançou tão rápido que quase não o vi chegando. O garoto tinha energia e agilidade de sobra. Em um movimento astuto, Nick acertou-me bem no meio da couraça, sem a possibilidade de me defender com Anoitecer.

— Lutou bem, Adrian — disse o garoto, com um grande sorriso. — Mas a vitória é nossa!

E então tudo ao meu redor ficou verde.

A última coisa que me lembro é de flutuar em uma nuvem de fumaça esverdeada de volta ao Instituto. Zonzo, olhei ao redor: estava onde tinha sido a preparação do time verde. Os outros integrantes eliminados estavam lá, sob os cuidados das nossas enfermeiras. Não vi alguém com ferimentos graves, até porque era uma das regras do jogo. Muitos estavam cansados, comendo um pedaço do bolo cura tudo.

Ferdinand se levantou de onde estava e sentou do meu lado, no meio do pátio.

— Você lutou bravamente, Tampinha, o que foi um bocado estranho para um novato com pouco treinamento. Mas você está de parabéns. 

Infelizmente, não tive forças para responder. Por fim, desmaiei de exaustão.


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