Remanescentes - A Fazenda Amaldiçoada escrita por Eddie Stoff


Capítulo 16
Até que não sou ruim com espadas




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Eu quase pulei para fora dos meus sapatos quando revi a Sr.ª Allen. Ela era quase que uma carrasca pessoal pra mim. Aquela mulher era a última pessoa que eu queria reencontrar, ela me dava arrepios desde quando comecei a estudar na minha antiga escola, a High Tower. Ela era, sem dúvidas, a pessoa que mais me deixava nervoso devido ao nosso histórico.

— O que está fazendo aqui? — exclamei. Devo ter gritado alto demais, porque os alunos que passavam para as outras salas olharam pra nós.

— Não sei você, Adrian, mas eu estou aqui para ensinar história — respondeu, sarcasticamente.

— Adrian, vocês já se conhecem? — perguntou Sue.

— Responda, Adrian — falou a Sr.ª Allen. Dava pra ver que ela estava se divertindo com aquilo. — Diga de onde nos conhecemos.

— Ela... ela... — Eu estava tão possesso que as palavras não saíam. Respirei fundo, o que me acalmava, mas estar em frente a ela era algo que não me deixaria com menos raiva. — Foi ela — falei. — Foi durante a aula dela que tive aquele colapso que acabou destruindo a sala. Foi por causa dela que tive que mudar de cidade e de colégio

— Não posso levar todo o crédito. — Ela se defendeu com aquele tom debochado. — Grande parte de isso ter acontecido foi por causa daquele outro pirralho.

—— Você sabia? E mesmo assim me culpou por ter jogado aquela maldita bolinha de papel. — Meu rosto estava ficando vermelho. Se eu ficasse mais nervoso, era capaz de destruir mais uma sala de aula.

— Não tem mais importância. — A Srª Allen deu de ombros. — Agora, se tem mais alguma coisa pra falar sobre o que aconteceu há meses, fale depois da aula, Adrian.

— Adrian — chamou Sue —, você não quer destruir outra sala de aula, não é? Depois vocês tiram a história a limpo.

— Escuta sua amiga, Adrian, ela tem mais juízo que você. — Dito isso, a Srª Allen voltou para sua mesa, onde estavam alguns livros de história empilhados.

Mais uma vez, contei até dez mentalmente. Foi difícil, mas a raiva foi se esvaindo. Quando me acalmei realmente, fui em direção à outra carteira desocupada, ao lado da Sue. Passei pela professora sem dar a mínima.

Foi só depois de alguns minutos que percebi que, enquanto discutia com ela, minha mão tinha ido instintivamente até Anoitecer, presa no meu pulso em sua forma de relógio. Sue olhou pra mim, sua expressão era como quem dizia “Calma, Adrian, não adianta agredir a professora. Tente ficar calmo”.

— Então, alunos — começou a Srª Allen. — Depois dessa ceninha que vocês presenciaram, a aula está prestes a começar.

Engoli em seco. A forma como ela disse aquilo me fez lembrar os péssimos dias na High Tower. A parte boa de tudo aquilo era que nem eu nem Sue precisávamos fazer aquela apresentação, virando o centro das atenções. O ruim era que eu sabia como a Sr.ª Allen ensinava.

Foram as piores três horas de aula que já tive na vida, ganhas das aulas de geografia que, coincidentemente, eram com a mesma professora. Nem mesmo a Sue, que parecia empolgada em saber sobre a história dos Remanescentes, aguentou e ficou aérea durante o restante da aula.

Era complicado assimilar que a história da nossa civilização estava intrínseca à história dos Remanescentes. Sue, depois de voltar de onde sua mente estava vagando, começou a anotar algumas coisas que a professora falava.

Após o término da aula, os alunos foram se dispersando para fora da sala. Quando eu estava saindo acompanhado da Sue, a professora apareceu atrás de nós.

— Nossa pequena conversa não acabou, Adrian — disse ela. Só faltou soltar um “MUHAHAHA” e trovões ao fundo.

— Da última vez que algum professor quis falar comigo depois da aula foi quando eu fui sequestrado por um Chacáh. Então, acho que passo — retruquei. E saí andando.

— Adrian... — Mais uma vez, Sue era quem me chamava. Ela parecia querer dar um ponto final naquela minha discussão com a Sr.ª Allen, bem mais do que eu. — Acho que você deve ficar.

Revirei os olhos. Queixei-me mentalmente. Voltei para a sala. Tentei bolar alguma desculpa mentalmente, mas fui tapeado pelos meus próprios pensamentos.

— Só porque você pediu, Susan — falei.

— Vou esperar lá fora — disse Sue.

A Sr.ª Allen fez um gesto com a mão para que Sue não fosse.

— Seria bom se você ficasse também.

Sue estremeceu-se toda.

— Tu-tudo bem.

Puxamos duas cadeiras para ficar em frente à mesa da Sr.ª Allen. Ficamos nos encarando por dois minutos sem dizer nada. O clima estava pesado, tenso. Sue ficava mexendo com os dedos pelo braço da cadeira.

— Então, o que você quer? — perguntei à professora do mal. — Não bastava estragar minha vida antes?

— Não posso levar todo o crédito, até porque não estraguei sua vida — comentou Sr.ª Allen. — Além do mais, nada de hostilidade aqui. Estamos aqui para conversar amigavelmente.

— Não tem nada de amigável em você — rebati. Só de ouvi-la falar, a raiva começava a tomar conta de mim.

— Não importa o que você acha de mim, Adrian. Segundo, nada de sacar sua espada — apontou para meu braço.

Como ela sabia da Anoitecer? Pouquíssimas pessoas sabiam que meu relógio virava uma espada.

— Ele não vai. Eu garanto — assegurou Sue. Olhei para ela, parecia tão confiante de que eu não faria besteira. Sue, diferente de mim, não tinha nada contra a Sr.ª Allen, então não via motivos para hostilidades. — Professora, o grande mistério aqui é saber o motivo de você estar na High Tower, se você ensina aqui.

Ela não respondeu logo de cara. Desviou o olhar como se estivesse selecionando o que podia ou não dizer para nós. Por fim ela disse:

— Vamos dizer que fui informada que havia alguém com possibilidade de ser um Remanescente frequentando aquela escola. Com isso, me infiltrei, passando por uma professora. Demorou um tempo para que eu tivesse certeza de quem era, mas acabou sendo seu amiguinho aqui. — Ela me fuzilou com seus olhos castanhos. — Então, acho que devo agradecer àquele peste do Rupert por ter sido um gatilho para despertar, mesmo que por um momento, seus poderes.

— Quem mandou você ir até lá? — perguntei. Tive a esperança de ter sido minha mãe ou até mesmo Marie que havia dito algo.

— Não sei — ela disse.

— Como assim “não sabe”? — Eu estava prestes a me levantar da cadeira, mas Sue me conteve.

— Ora, não sei. Era como uma voz sussurrando rente ao meu ouvido.

— Uma voz? — Tentei me acalmar e raciocinar direito. — Ela era de mulher?

— Não. Definitivamente não era. — Foi um balde de água fria saber que não tinha sido minha mãe. Mas se não foi ela, quem foi? — Estava mais para algo mais masculino e rouco. Sua voz entrava na minha mente como um cântico antigo, quase que me deixando em transe — ela respondeu. Deu para notar que sejá lá de quem fosse aquela voz, a deixou desnorteada por algum tempo. — Espera aí. Por que seria uma voz de mulher?

— Podia ter sido a Marie  — desconversei. Honestamente, parecia errado usar a Marie nessa situação, mas foi melhor do que explicar como minha mãe falava comigo nos sonhos, já que os deuses estavam desaparecidos.

— Marie? Quem é Marie? — estranhou a professora.

— Ela era... Vamos dizer que a “protetora” do Adrian — respondeu Sue.

— E por que ela falaria comigo? — Sr.ª Allen ainda continuava sem entender.

Então, para acabar de vez com suas dúvidas, acabei revelando o segredo de Marie:

— Porque... Ela era uma Dêida. — Meus olhos marejaram.

Ela riu em escárnio.

— Não pode ser verdade. Todo mundo sabe que as Cinco Dêidas estão na Gruta, intocadas na Caverna da Reflexão e nunca saem de lá. Por que vocês, crianças, inventariam algo desse tipo?

A nossa nada adorável professora ficou rindo e olhando para nós. Aos poucos seu sorriso foi desaparecendo, após perceber as nossas feições de seriedade e, particularmente, a minha tristeza. Não tínhamos motivos para mentir, principalmente eu que convivi com a Marie durante minha vida toda.

Percebendo que não ríamos, ela levou as mãos à boca, finalmente aceitando a verdade. Ela parecia estar contendo um suspiro ou um grito de surpresa.

— C-Como? — ela perguntou em meio a gaguejos. — Não faz o menor sentido.

— Claro. Porque deuses e monstros são bem lógicos — respondi.

— Por que tinha uma Dêida morando com você, Adrian? Onde ela está agora?

— Respondendo à primeira pergunta: ela estava me protegendo. À segunda, Marie está morta. Morreu na invasão dos Zumbis de Areia a minha casa, quando foram atrás de mim. Ela lutou bravamente, mas acabou sendo ferida e não resistiu. Ela se sacrificou para que eu pudesse ter uma chance de salvar meu pai, mas falhei nisso, também.

Tentei ser forte para não chorar mais uma vez pela falta deles. Era difícil ter que lidar com o luto e ser forte ao mesmo tempo. Quer dizer, Marie tinha morrido, e meu pai, sequestrado. Tudo isso no dia anterior.

A sala ficou novamente em silêncio. Fui inundado com memórias da Marie.

— Sr.ª Allen — tentei ser cordial o máximo possível com ela, coisa que não era fácil. Ainda mais após falar da Marie. Enxuguei algumas lágrimas que enchiam meus olhos. Tudo que eu queria naquele momento era pensar em outra coisa, então mudei de assunto —, por que deixou que eu levasse a culpa?

— Existe uma membrana que separa os mundos. Sabe, toda aquela baboseira de “o mundo que nós podemos enxergar” e que os mortais comuns não podem. Particularmente, acho uma perda de tempo ter essa divisão, afinal, o mundo é mundo. E daí que há monstros e outras coisas? Os mortais têm armas capazes de destruir tudo, não é como se não pudessem se defender disso também — disse a professora. Em suas palavras havia certo ódio com tudo isso. Algo que Gregório também sentia, uma espécie de repulsa pelas pessoas “normais”.

— O Véu  — afirmou Sue. — Já estamos familiarizados com isso.

— Certo — prosseguiu Sr.ª Allen, sem voltar aos pensamentos contra a “humanidade comum”. — Você foi ficando mais acuado e, por consequência, mais nervoso e isso causou um abalo no Véu. Tal coisa precedeu os desmaios e destruição daquela sala. 

— Deixa ver se eu entendi — disse eu. — Se nada daquilo tivesse acontecido, eu ainda seria um garoto normal e não teria ocorrido nada com meu pai e com a Marie?

— Não — retrucou a Sr.ª Allen. — Se já conversou com Gregório, sabe que não demoraria muito para que os monstros viessem atrás de vocês.

A Sr.ª Allen fez uma pausa para que tentássemos assimilar aquela situação. Segundo ela, meu “destino” já estava selado mesmo que não tivesse ocorrido o episódio na High Tower, o que condizia com tudo que já nos tinha sido dito.

— Entenda — ela prosseguiu. — Tudo isso aconteceu meses atrás. O que houve com vocês ontem foi algo que não está relacionado ao fato ocorrido na High Tower. Alguém ou alguma coisa está atrás de você, Adrian, por isso mandaram aquilo para te capturar. Por sorte ou destino, tanto faz como queira chamar, Gregório foi “chamado” por uma “energia inexplicável” que o guiou até a Grande Árvore. Lá, ele teve uma previsão de um ataque de monstros em cima de um Remanescente: você. Por isso, enviou Ferdinand e Candence para que caso acontecesse de fato o ataque, eles pudessem protegê-lo. — Apontou para Sue. — E acontece que ele estava certo, e não só você estava correndo risco, mas sua amiga também.

— Como você sabe disso? — questionei. Sue também parecia confusa, ela não falava muita coisa, apenas observando a conversa entre a Sr.ª Allen e eu. — Como soube de tudo que aconteceu ontem?

— Você não ouviu nada do que eu disse, Adrian? — A Sr.ª Allen pareceu genuinamente ofendida. — Gregório me contou o que aconteceu.

— Mas ele não disse nada sobre você — falou Sue.

— É que ele “esquece” que não cuida do Instituto sozinho — disse a professora, mas não parecia se importar muito com esse detalhe. Era como se ela preferisse agir nas “sombras”, enquanto Gregório seguia como linha de frente nos assuntos daquele local.

A conversa foi interrompida por um barulho nos alto-falantes que ficavam nos corredores. Alguns alunos passaram apressados pelas salas de aula. Sr.ª Allen se levantou e arrumou sua bolsa de couro, se aprumou e rumou até a porta, sem dizer mais nada. Sue e eu nos encaramos sem entender o porquê dela ter feito isso no meio da conversa. Por fim, fomos até o corredor. 

— Bom, nossa pequena reunião está encerrada, crianças — falou a Sr.ª Allen. — Se vale de alguma coisa, Adrian, não foi nada pessoal. Era apenas meu trabalho.

Antes que pudéssemos falar algo, a professora apenas saiu da sala e seguiu para seja lá onde fosse. Sue e eu ficamos refletindo sobre tudo que tinha acontecido mais uma vez.

— Isso foi… nem sei o que foi. — Susan tomou a iniciativa para conversar.

— Nem me diga — falei.

— Quer conversar? Imagino que está sendo difícil lidar com tudo isso agora.

— Por que a vida está tão difícil agora? — comecei. — Quer dizer, tudo que eu faço parece que não é decisão minha. Alguém sabia que eu iria estragar tudo na High Tower, sabiam que eu estava indo para outro colégio. É como se eu estivesse seguindo algum roteiro que foi escrito bem antes do meu nascimento. Até encontrar você pode ter sido planejado, Sue. Meu pai, Susan. Marie. Tudo isso estava previsto para acontecer. E não havia nada para fazer.

— A vida não é assim, Adrian — falou Susan. — Você não está seguindo um roteiro que algum deus escreveu ou coisa assim. E se for, você ainda pode mudar seu destino, não? 

— Susan, queria ser tão otimista como você. Mas está tudo dando errado, não sei o que pensar. E, com certeza, rever a Srª Allen não ajudou em nada. Aquela mulher atormentou minha cabeça durante muito tempo.

A garota se aproximou. Como sempre, eu não sabia explicar, mas ela tinha um jeito ao falar que me passava tranquilidade, talvez fosse alguma coisa por ser filha de Aezirel. Entretanto, eu não podia simplesmente recorrer a Susan quando tudo estava dando errado para que ela me consolasse.

— Escuta aqui, Cabeção. Pense o que quiser, que está tudo perdido ou não, mas você não pode desistir de lutar. Não foi você quem disse que estarmos aqui era para proteger aqueles que amamos? 

— Foi — respondi, cabisbaixo. Naquele momento senti a maior vergonha que tive na vida. Ela estava certa, mas havia algo, não saberia explicar, que não me deixava enxergar com toda essa positividade dela. 

— Então! Você pode mudar seu futuro, Adrian. Basta acreditar em você.

— Talvez você tenha razão, Susan — disse eu. Porém, ainda era bem complicado tirar isso da mente.

A garota sorriu.

— Adrian, você ainda não percebeu? Eu sempre tenho razão. Agora, vamos. Já, já a próxima aula começa.

Deu-se que, infelizmente, ficamos tempo demais falando com a Sr.ª Allen e perdemos todo o intervalo, tendo que ir direto para a próxima aula. O que não seria de todo ruim, pois tudo que eu queria, naquele momento, eram simples problemas “comuns”.

***

Com o fim das aulas, Susan e eu nos separamos. A garota foi até o Arsenal, encontrar-se com Leta, para escolher uma arma. Nesse meio tempo, eu estaria indo para a Arena treinar com espadas para o grande evento da noite. Honestamente, ainda não era totalmente a favor de ir à caça do coelho, mas como Gregório havia nos obrigado, não tinha como voltar atrás.

Outros alunos também tiveram a mesma ideia e passaram correndo por mim em direção à Arena de combate. Um desses garotos que passaram por mim era familiar, Ferdinand. Ele trajava a mesma roupa desde cedo, só que agora com um peitoral. Quando se deu conta de que havia passado por mim, ele voltou. Ficou parado na minha frente, com a espada repousando na bainha.

— Olha só, é o Tampinha — disse ele, mexendo no meu cabelo, em um comportamento nada comum para comigo. — Vejo que está indo para a Arena.

Respondi acenando positivamente com a cabeça. Não queria conversar com ele, tentei sair pela tangente, mas ele não deu brecha, infelizmente.

— Ótimo! — exclamou. — Vamos juntos.

Ele passou o braço ao redor do meu pescoço um pouco forte demais e saiu me arrastando junto dele.

Não tive forças para escapar de sua pegada por dois motivos: 1) ele é muito mais forte e alto do que eu. 2) Eu sabia que seria pior se tentasse sair dali, poderia acabar me machucando mais grave do que um pescoço doendo. 

E seguimos em direção a Arena.

— Por que está sendo legal comigo? — questionei quando paramos em frente à entrada da Arena.

— Não posso? — retrucou. — Sinto que peguei pesado ontem com você, e por isso queria recompensar com alguma coisa.

— Foi a Candence, não é? — deduzi. Esta opção era mais plausível do que ele querer ser meu amigo genuinamente ou se desculpar por algo.

Ferdinand retirou seu braço do meu pescoço. Ele relaxou os ombros, coçou a nuca e disse:

— Você me pegou, Tampinha. Candy pediu que nos déssemos bem, sabe?— A forma como falara parecia mais que uma ordem do que um pedido. — E por mais que eu tenha sido contra, ela pode ser bem persuasiva. E, sinceramente, o que há de mal nisso, Adrian?

— Tirando o fato de você não gostar de mim? Nada — comentei. Mas sendo honesto, não tinha certeza do porquê ele não ia muito com minha cara. — Ontem, se fosse possível, você teria me deixado com os Zumbis de Areia.

— Cara... — Ferdinand pareceu sinceramente indignado. — Não é verdade. Eu posso ter sido um pouco...

— Um pouco?

— Tá! Entendi. Posso ter sido hostil com você, mas não o deixaria ser comida de Zumbi, ou ser levado por aquele Chacáh. Você era a nossa missão. E, além disso, você me ajudou na luta contra os Zumbis de Areia, no Planetário. E eu não odeio você ou coisa assim. — Ele olhou para o chão. Coçou o braço. Parecia desconfortável em dizer aquilo. — Ah, e eu sinto muito mesmo pelas perdas que você teve. Sei como é perder alguém que ama.

— Lucca. — O nome veio quase que automaticamente na minha cabeça.

— O quê? — Ferdinand tinha sido pego de surpresa. Ele deu um pulo para trás de tão inesperado que foi. —– Como você sabe dele?

— Gregório — revelei. — Ele deixou escapar que, antes de nós, os últimos a serem Clamados tinham sido vocês dois e a Candence. Depois não disse mais nada sobre o que aconteceu com ele.

— Não é uma história muito agradável de ouvir, Tampinha — contou. — Lucca morreu como um herói, para que Candy e eu sobrevivêssemos.

— Eu não sabia...

— Tudo bem — disse Ferdinand. — Não tinha como você saber. Está no passado, mas ainda assim, tão presente às vezes.

Talvez Ferdinand não fosse tão chato quanto pensei que era. Ele tinha passado por perdas também, e eu sabia como era isso. Era curioso como as pessoas podiam se entender através do luto.

— Sinto muito pelo seu irmão — falei. Dei um soquinho em seu braço. 

— É... Claro. – Ele passou as mãos nos olhos, poderia estar chorando, mas não saberia dizer ao certo, não acho que ele seja tão emotivo assim, mesmo falando sobre a morte de seu irmão. — Bom, agora chega disso. — Ele falou, numa mudança inesperada de expressão facial. — Agora, o que interessa são as aulas de esgrima. Espero que esteja pronto para isso, Tampinha.

— Não pode ser mais difícil do que lutar contra Zumbis de Areia — retruquei, em um tom bem humorado.

Ferdinand se permitiu um sorriso tímido.

— Vamos.

A Arena era exatamente como eu suspeitava desde a noite anterior. Espaço aberto com chão empoeirado no centro e ao redor coberto por grama rasa. Como não era provida de teto, alguns pássaros davam rasantes por um ou outro boneco de treino em desuso. 

Mais adiante, tinham alguns alunos cutucando uns bonecos de treino, cortando-lhes os braços de palha, tronco, pernas e cabeças (sim, tinham uns decapitados). No centro da Arena tinham cerca de vinte alunos, separados em dez duplas, golpeando uns aos outros, sem causar muito perigo ao adversário. Dois instrutores passeavam por eles, dando dicas de como manejar a espada e a postura de como atacar/defender.

O primeiro deles era um rapaz que devia ser o mais velho dali. Tinha cabelos pretos, os olhos puxados eram na cor castanho-escuro, a pele um pouco bronzeada e brilhosa por causa do suor. Vestia o mesmo modelo de peitoral de couro que Ferdinand estava usando. A cada estocada que um dos alunos dava no outro, ele batia palmas e comemorava como se um pai orgulhoso. O outro instrutor era uma garota de cabelos escuros e olhos claros. Ela, assim como seu parceiro de monitoria, tinha a pele castigada pelo sol, e nela estavam mais evidentes algumas marcas de cicatriz no braço. No lugar de apenas o peitoral, trajava uma armadura completa, exceto por um elmo que estava jogado no chão. A garota não parecia ser de muitos amigos, pois ficava resmungando com os alunos para prestar atenção na hora de golpear e contra-atacar, defender, esquivar.

Ferdinand foi à frente conversar com os dois instrutores. Fiquei esperando ao lado da urna das armas. Não sei bem o que eles ficaram conversando, mas Ferdinand vez ou outra apontava em minha direção, dava tchauzinho e voltava a atenção para os outros dois. Já estava preocupado, até que Ferdinand gritou de lá do meio da arena para que eu fosse até eles.

Meio sem jeito, fui até eles.

— Então, gente — anunciou Ferdinand —, este é o Adrian. Vocês devem ter visto ele na apresentação de hoje pela manhã.

A garota me analisou da cabeça aos pés, vendo se eu valia ou não a pena. Quando supostamente chegou à conclusão, ela deu de ombros.

— Não é aquele que veio junto da filha de Aezirel? — disse ela, indiferente.

— Sim, o próprio — Ferdinand confirmou.

— Oi, cara. – O outro instrutor ergueu a mão para cumprimentar. — Eu sou Nicolas, mas geralmente me chamam apenas de Nick. Bem-vindo ao Instituto, aliás. Enfim, sou filho de Rikkan, deus dos conselhos e da sabedoria. 

— Meu nome é Adrian — falei. — Não sei quem é minha mãe. Meu pai foi levado por Zumbis de Areia e minha protetora, que na verdade era uma Dêida, foi morta por eles. Não exatamente nessa ordem.

— Ah — Nick ficou sem reação por alguns instantes. — Sinto muito, cara. Deixando o assunto triste de lado, ou nem tanto, essa daqui é a Graci. — Apontou para a garota ao seu lado. Ela parecia impaciente com todo aquele papo furado. Olhava para os alunos que estavam treinando e não estava muito animada com o que estava vendo. — Ela é filha de Liceia, deusa das estratégias em batalha.

— Oi — falei, na esperança de ela ser legal comigo, mas não deu certo.

Nick deu um cutucão com o cotovelo nela. Mesmo contra sua vontade, ela respondeu, revirando os olhos:

— Oi.

— Ela é ou não é um doce de pessoa? — disse Nick.

Ferdinand riu alto.

— Ela é a melhor, Nick, até bater em você — zombou o grandão. Voltou sua atenção a mim. — Adrian, esses dois foram os responsáveis por me treinar desde que cheguei aqui. São os melhores que conheço. E hoje — disse ele, um tanto entusiasmado —, serei seu parceiro de treino.

— Agora que todos foram apresentados, vão para o centro da arena. — Graci estava impaciente. — Vocês dois já me dão dor de cabeça e muito trabalho, como se não bastasse, arrumam outro calouro para o treinamento.

Ela saiu marchando em direção às duplas, gritando e gesticulando freneticamente os braços.

— Bom, vamos lá — disse Ferdinand.

O grandão saiu me arrastando mais uma vez, só que agora para o centro da arena. As dez duplas pararam subitamente com o treino e formaram um círculo, como se estivessem esperando um show. Talvez, agora, eu tenha compreendido a serventia da arquibancada: fazer o novato pagar mico. E obviamente, Graci estava de cara fechada, porque estávamos atrapalhando os treinos de novo.

Ferdinand desembainhou a espada de lâmina cinzenta e bordas douradas. Ela reluziu diante da luz do sol. Segui seus passos e saquei Anoitecer, apertando o botão esquerdo do relógio. Após poucos segundos, estava segurando uma espada de lâmina negra incrustada por runas roxas. O ar ao seu redor ficou um pouco mais gélido. Os outros alunos suspiraram, surpresos.

— Bela espada — gritou um dos alunos no meio do círculo.

— Ah, obrigado — respondi por cima do ombro, sem saber quem havia dito aquilo.

— Ora, parece que o novato pode acabar surpreendendo — disse Nick, me analisando, esperando que eu fizesse algo mirabolante com a espada.

— Você acha mesmo que ele pode fazer algo contra o Ferdinand? — perguntou Graci, duvidando das minhas habilidades com espada recém-descoberta. Honestamente, eu pensava a mesma coisa que a garota. — Se o Ferdinand perder para o novato, culpo você, Nick, por não ter treinado ele direito.

Nick arqueou os ombros.

— Mas treinamos ele juntos ou você esqueceu disso?

— Ei, você praticamente adotou ele como seu pupilo, Nicolas. Sendo assim, culpa sua se ele perder. — E para encerrar a breve discussão, Graci deu um soco no ombro do instrutor.

Nick entendeu o recado e nos mandou continuar com o treinamento.

— Está pronto para sua primeira aula, Tampinha? — provocou Ferdinand.

— Não.

— Vamos começar pelo básico — garantiu. Ferdinand manuseava a arma com maestria. — Vou mostrar o que você tem que fazer por agora e depois irá repetir.

Ele fez movimentos rápidos com a espada. Estocando o ar. Aplicando golpes laterais, de cima para baixo, de baixo para cima. Fez algumas posições de defesa e contra-ataque. Fui tentar fazer a mesma destreza que ele, mas meus movimentos não eram tão rápidos quanto os (movimentos) dele.

— Ele tem futuro — comentou Nick, aplaudindo. — Não acha, Graci?

— Você se anima com pouco, Nick — rebateu Graci, rispidamente.

— Não ligue para a Graci — falou Ferdinand, chamando minha atenção. — Ela tem essa cara de brava, mas é um doce de pessoa. Com o tempo você se acostuma. Mas vamos lá, Adrian. Eu sei que você é capaz de mais. Lembre-se de ontem, durante a luta contra os Zumbis de Areia.

Depois de recuperar o fôlego, fiz novamente a série de golpes mais duas, três vezes. Desta vez, eles saíram com mais facilidade, estava me acostumando com os movimentos. Anoitecer cortava o ar com mais intensidade e rapidez. 

Ouvi alguns sussurros dos outros alunos que estavam me observando, esperando que eu errasse algum movimento para que pudessem zombar. Eu não era muito fã de ser o centro das atenções, mas, enquanto eu estivesse com a mente ocupada com os golpes, estava tudo bem.

— Boa! — Ferdinand deu um tapinha em meu ombro. Ele estava mais empolgado do que eu. — Agora, vamos ver como se sai contra um adversário mais forte. — O grandão olhou para os lados, procurando alguém para duelar comigo. — Ah, que tal eu?

— Não fico surpreso que tenha se oferecido — resmunguei. Já tinha visto Ferdinand lutar, e ele era muito bom, mesmo vacilando em raros momentos contra os Zumbis de Areia.

— Isso vai ser interessante. — Até estranhei quando percebi que quem tinha dito aquilo era a Graci. Ela continuava com sua cara de brava, mas estava com os olhos atentos para cada movimento que iríamos fazer.

A luta era injusta. Ferdinand era alguns anos mais experiente e mais forte do que eu.

— Lá vou eu — anunciou, correndo feito um trem desgovernado para cima de mim.

Da mesma forma que ele veio, me atingiu em cheio e eu caí no chão. Machuquei as mãos no solo arenoso da arena, mas nada tão grave.. Ferdinand estendeu a mão para que eu pudesse me levantar.

— Sua defesa não estava boa assim, Adrian — alertou Ferdinand. — Não deixe a espada muito alta. Agora, de novo. Fique alerta. Preste atenção na defesa.

Ele veio em carga total para cima de mim novamente. Agora eu estava mais atento e consegui desviar do golpe. Ferdinand passou “voando” do meu lado, parando alguns passos atrás. Ele voltou, gritando, e me atacou. Levantei Anoitecer para me defender como ele havia mostrado.

— Boa — comemorou Ferdinand, embora eu não ache que tenha sido tão bom assim. Atacou de novo. — Não deixe a guarda tão baixa desta vez, Adrian. — Outro ataque. — Saia da defensiva, Adrian. Dê o contra golpe.

Assim como contra os Zumbis de Areia, quanto mais a luta avançava, mais meus sentidos para a batalha se afloravam. Manuseei Anoitecer para atacar o contrapé do Ferdinand, mas ele estava atento ao movimento e conseguiu esquivar para o lado, fazendo o golpe passar direto. O garoto contra-atacou rapidamente, me atingindo com a parte chata da espada nas costelas. A dor inundou meu corpo, mas segui no combate.

Tentei de todos os modos possíveis atacá-lo, mas Ferdinand era rápido, contrariando sua estatura alta. Recuei alguns passos. Estava com dificuldades para respirar graças à pancada nas costelas. Minha visão ficou temporariamente turva, mas consegui discernir Ferdinand à minha frente. Ele fazia movimentos com a espada que eu não conseguiria fazer tão cedo. Analisei a forma como se portava diante de mim, o jeito como ele vinha em carga para atacar.

Só que, ao invés do grandão atacar, eu que tomei a iniciativa. Ferdinand sorriu desdenhoso, se preparando para receber a investida. Sabia que me venceria facilmente. Avancei em cima dele, sua espada estava relaxada.

Estava frente a frente com ele quando Ferdinand levantou sua espada em posição defensiva, flexionando os joelhos para suportar o impacto. No momento em que ele ergueu a espada, desviei para o lado, atacando a parte exposta do garoto. Com o pomo da Anoitecer, atingi o braço do Ferdinand que empunhava a espada. Surpreso, o grandão perdeu a pegada da espada e ela foi ao chão. Tentei aproveitar a breve vantagem e, em um movimento rápido, acertei-o novamente, atacando nas costelas do grandão, para “devolver” os machucados que ele causou em mim.

Por um momento, achei que tinha a capacidade de vencê-lo, mas em um rápido movimento Ferdinand deu-me uma rasteira, me fazendo perder o equilíbrio e cair. Anoitecer ficou prostrada do meu lado. Fiquei sem forças para levantar. Ferdinand foi até sua espada, pegou-a do chão e andou até mim, colocando a ponta dela em meu peito.

Os alunos gritavam. Eles aplaudiram Ferdinand.

— O que foi isso, Adrian? — perguntou, recuperando o fôlego aos poucos, com a mão no local onde havia o atingido.

— Você disse para atacar e eu ataquei — respondi, depois de conseguir respirar normalmente. — Não era para atacar?

— Você só teve uma chance de ganhar, mas desperdiçou. Ficou convencido no final, pensou que já estava ganho, mas não estava. — Graci se intrometeu, o que pegou todos de surpresa. Nick, que estava ao lado dela, se espantou com as palavras que ela acabara de dizer. Ferdinand olhava para ela vidrado, como se não acreditasse que era verdade. — Em uma luta de verdade, você só ganha quando seu adversário estiver morto. — A garota virou novamente para Nicolas. Ela o encarou rapidamente, e o instrutor logo abaixou a cabeça.

— Ela está certa, Tampinha. — Era Ferdinand quem falava. — Com muito treino, você pode ser um bom esgrimista.

— Boa demonstração, rapazes. Um show e tanto — disse Nick, se aproximando de nós quando Graci deu as costas para dar alguma instrução para  outros alunos. — Enfim, todos de volta aos seus lugares. O treinamento não acabou.

O círculo formado pela “plateia” foi se deformando, alguns passaram por mim e deram tapinhas nas minhas costas, outros me parabenizando. Eu não achei que tinha sido tudo isso, mas resolvi não falar nada.

 

— Vamos, Tampinha — falou Ferdinand, me puxando para uma parte mais deserta da Arena. — Como é seu primeiro dia, vou te dar uma ajuda: serei seu instrutor pessoal, passar umas dicas e coisas assim. E assim você evita o comportamento “amigável” da Graci.

— Tudo bem  — concordei. Tinha sido legal da parte dele fazer isso por mim, talvez ele ainda se sentisse culpado por ter agido de maneira dura comigo, ou talvez fosse medo de que a Candence descobrisse que ele não “cuidou de mim” e me atirou direto para a Graci.

Enquanto Ferdinand passava as últimas instruções, comecei a pensar na caça ao coelho e como ela seria. Tanto Candence quanto o grandão já tinham explicado alguns detalhes da prova, mas não pude deixar de imaginar por que Gregório insistiu para que Susan e eu participássemos. Não tínhamos experiência. Na minha cabeça, seríamos alvos dos demais alunos, pois éramos os novatos, mas nosso “amado” diretor não pareceu se importar com isso.

— Adrian? — chamou Ferdinand. — Ouviu o que acabei de falar?

— O quê? — falei. — Claro.

Era óbvio que eu não tinha escutado nada, e o grandão parecia determinado em me desmascarar.

— Legal. Poderia repetir o que eu disse? 

— Sem problemas. — Quis parecer confiante, mas eu não sabia nada do que ele tinha dito. — Bater nos bonecos?

Ferdinand levou a mão ao rosto e balançou a cabeça. 

— Quer que eu repita para refrescar a sua memória? Pois fosse lá o que estivesse pensando, devia ser mais importante do que minhas instruções.

— Ajudaria bastante. Sabe, para refrescar a memória — disse eu. Mentalmente, agradeci à Candence por ter convencido o grandão a ser legal comigo.

Ferdinand novamente passou as instruções, e agora as ouvi atentamente. Algo me dizia que o grandão não agiria de bom agrado uma terceira vez.

— Vamos, Adrian — chamou o garoto. — Tem alguém que eu gostaria que você conhecesse.

Ferdinand me levou até um canto repleto de bonecos de treino.

— Adrian, conheça seu parceiro de treinamento: o boneco surrado.

Minha empolgação com o treinamento caiu drasticamente. 

— Que maravilha…

Ferdinand gargalhou.

— Bem-vindo ao primeiro dia de treinamento.


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