Remanescentes - A Fazenda Amaldiçoada escrita por Eddie Stoff


Capítulo 15
Obtivemos respostas, mas nem todas foram boas




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Todos, até mesmo Candence, curvaram-se diante de Sue. O silêncio reinou no refeitório. Ela se virou para mim, tentando compreender o que tinha acontecido. Nem eu tinha ideia do ocorrido.

— Adrian... O que está acontecendo? — Sue estava atordoada com o que tinha acabado de acontecer. Eu também não tinha muita certeza do que era aquilo, ela continuava a mesma garota, mas todos a olhavam como se tivesse virado uma pessoa totalmente diferente.

— Sua mãe, Sue. Você foi Clamada — respondi. Lá no fundo, uma parte egoísta sentiu inveja por não ter sido eu. Quer dizer, óbvio que estava feliz pela Sue, mas por que não eu? 

— Pela cara que fizeram e como estão se curvando, não deve acontecer muito nos últimos tempos.

E, assim como os demais, também me curvei em sinal de respeito à garota. Eles a enxergavam como outra pessoa, não mais uma recém-chegada qualquer. A olhavam como se fosse um projeto brilhante com futuro promissor. 

Toda essa atenção voltada a Sue não durou muito e voltaram a sentar. Tendo encerrado aquela cena tocante, Gregório nos mandou de volta para a mesa, nos mandando aguardar mais alguns instantes para podermos comer.

Quando chegamos à mesa, Candence e Ferdinand ficaram encarando Susan como se ela fosse realizar algo extraordinário a qualquer momento. Candence, como sempre — desde que conhecera Sue — não dava o braço a torcer. 

— Parabéns, Susan, primeiro dia e já foi Clamada — disse Ferdinand em aparente felicidade. Mais uma vez, Candence fazia cara feia em relação à alegria do grandalhão. — Ser Clamada é um rito muito importante e especial para nós, nos permite uma conexão especial com nossos pais divinos.

— Obrigada, eu acho. — Sue continuava perdida em seus pensamentos. Aquele tinha sido o mais próximo que chegou perto de sua mãe em anos. Ela tinha sido reconhecida, e isso parecia tão deslumbrante para a garota, que ela não sabia bem como reagir.

— Então... já podemos comer? — perguntei. Embora estivesse feliz pela Susan, era difícil lidar com o fato de não ter sido Clamado também.

— Gregório está prestes a liberar para irmos tomar café — disse Candence.

Não demorou muito e Gregório anunciou que já podíamos fazer nossos pratos, e uma multidão tomou conta da mesa grande onde estava a comida. 

— Não há necessidade disso — disse Candence, reprovando o amontoado de gente nas mesas de comida. — Eles sabem que os pratos sempre voltam a ficar cheios depois, mas preferem ser um bando de trogloditas.

— Vocês vêm? — perguntou Ferdinand. Ele já estava saindo da nossa mesa e indo até onde estava a comida.

— Sim, vamos. — Candence notou que ele estava encarando a Sue, e saiu empurrando-lhe até a mesa do banquete. — Eles vêm depois, Fer. Vamos.

O garoto não parecia muito certo disso, mas preferiu não contrariar Candence e foi logo atrás.

Ficamos a sós por um tempo na mesa. Susan ainda continuava cabisbaixa. Como Ferdinand tinha dito, ser Clamado era estar, de certa maneira, próximo de sua mãe. Mas para Sue, parecia ter sido o início de um sonho de mau gosto, pois não fazia ideia de quando (ou se) iria encontrar sua mãe para que ela explicasse tudo.

Enquanto ela ficava em seus pensamentos, não pude deixar de pensar no que aconteceria em seguida. Ela ter sido Clamada logo no primeiro dia foi algo inesperado para todos, especialmente para nós dois que éramos novatos nessa coisa toda. Susan foi a primeira pessoa que verdadeiramente chamei de amiga. Ela me ajudou em diversas ocasiões. E agora eu tinha esse pavor tremendo de perder sua amizade para as outras pessoas. O jeito como eles a olhavam com interesse no que ela poderia fazer. E seja lá o que fosse, certamente eu não fazia parte dos planos. O zé-ninguém que veio junto da filha de Aezirel.

— Tem alguma coisa no meu rosto, Adrian? — ela perguntou, me afastando dos meus pensamentos negativos.

— O quê? Não — respondi, um pouco confuso.

— É que você estava olhando vidrado para mim.

— Ah, não é nada. Como você está, aliás? — mudei rapidamente o rumo da conversa. Nessa altura eu já estava ficando um pouco vermelho.

— Sinceramente, não sei. — Suspirou. — Está tudo confuso, sabe? Está tudo acontecendo tão rápido que está me sufocando. Ontem pela manhã, eu era uma simples garota que tinha ido para o colégio novo, e agora minha vida está de ponta cabeça. Descobri que minha mãe é uma deusa. Lutei contra um monstro horrível, contra Zumbis de Areia, e vim parar em um lugar completamente incrível e surreal que ninguém faz ideia que existe.

Pensei em falar algo que a confortasse, mas naquele momento não tinha nada que pudesse ser dito. Susan tinha razão em estar se sentindo sufocada com todos aqueles acontecimentos repentinos.

— A verdade é que eu não sei bem como isso vai parar, Adrian — continuou. — Se tudo isso não fosse o bastante, depois quando fomos à sua casa ontem, aquela conversa com a Marie, sobre eu ter que fazer uma escolha que mudará tudo, está me deixando fora dos eixos. E se minha escolha for esta? Não ficar aqui e voltar para minha casa? Eu não sei o que fazer.

Ela colocou as mãos no rosto. 

— Sue — olhei para os lados, procurando se alguém nos ouvia. Felizmente estavam todos mais preocupados que a comida não acabasse —, eu não sei o que dizer.

— Ajudou muito, Adrian. — Ela abaixou as mãos. Seus olhos estavam vermelhos.

— Não é isso. — Acabei me enrolando mais ainda. Não era meu ponto dar conselhos às pessoas, sou bom apenas com comentários sarcásticos. Contudo, naquele momento o que Susan precisava era alguém que dissesse que tudo ia ficar bem, ou o máximo que fosse, considerando tudo que passamos. — Eu não sei qual será sua escolha, Sue. Você ficar ou não, é sua decisão. Mas eu posso dizer uma coisa: eu sei como você se sente. Estamos aqui há poucas horas, não conhecemos quase ninguém. É tudo novo para nós. Estou com medo de tudo isso. Não vai ser fácil, mas temos que ficar por aqueles que amamos. Eu não queria vir pra cá. Tinha esperança que a Marie me impedisse de vir, mas infelizmente ela acabou morrendo. Foi aí que comecei a perceber como as coisas funcionam neste mundo. O novo mundo em que entramos. — Foi impossível não lembrar das pessoas que tinha perdido em poucas horas. — Não quero dizer o que você tem que fazer, Sue, mas se você decidir ficar, você terá o treinamento para proteger a sua família. E assim, quem sabe, voltar a morar com eles.

Ela ficou em silêncio. Por um longo minuto ficamos ali sem dizer nada, apenas vislumbrando o que seria do nosso futuro. Ela queria proteger sua família, e eu, resgatar meu pai. E aquele lugar seria fundamental para realizarmos isso.

— Para alguém que não sabia o que dizer, você usou bem as palavras — disse Sue, voltando com seu breve sorriso. Embora sua voz estivesse menos trêmula, ainda dava para notar que havia uma tristeza em seu rosto, como se buscasse a resposta para todos os seus problemas. 

Passado o momento, decidimos deixar aquele assunto de lado por um tempo e voltamos nossa atenção para os alunos montados na mesa do banquete. Era engraçado ver como as pessoas se transformam em animais quando estão com fome. 

Não demorou muito e Candence e Ferdinand retornaram à mesa, com seus pratos numa pilha gigante de comida. Ele já vinha comendo algo que preferi não perguntar o que era. Já Candence, parecia ter guardado o apetite para devorar a comida na mesa.

— Não vão comer? — perguntou Candence. — Daqui a pouco as travessas voltam a ficar cheias. É bom garantir logo antes que os fominhas ataquem novamente. — Apontou para Ferdinand.

— O quê? — disse Ferdinand, com a boca cheia mal conseguindo fechá-la. — Preciso me alimentar bem.

— Se está dizendo. — Candence deu de ombros. A garota ainda não parecia muito contente com o jeito que o grandalhão tinha se comportado quando Susan foi Clamada. 

— É melhor irmos logo, Adrian — falou Sue, me puxando pela manga.

Fomos até a mesa onde estavam as travessas com o banquete do café da manhã. Foi exatamente como Candence falou: a comida apareceu magicamente na mesa de novo, fazendo com que parecesse que não havia sido tocada desde a hora em que foi colocada. Enquanto comíamos, Candence e Ferdinand contavam algumas histórias sobre o Instituto, algumas missões antigas, e sobre como seriam as aulas que teríamos mais tarde. 

Deixando as histórias de lado, Ferdinand começou a descrever como seria o evento mais aguardado do dia: a caça ao coelho.

— São três equipes, certo? — disse ele. Seus olhos brilhavam de alegria ao descrever a prova, como se fosse sua atividade favorita naquele lugar. — Um pouco antes do pôr-do-sol, Gregório vai soltar o coelho para ser capturado. A equipe vencedora escolhe a atividade recreativa da semana seguinte. O perdedor... bom, não queiram estar nas equipes que perderem.

— O coelho... O que acontece com ele? — perguntou Sue. A garota teve medo de que o pobre coelho sofresse o mesmo fim que os outros animais na sala de Gregório.

— Nada demais — respondeu Candence. — Apenas o caçamos, não o matamos. Nossas armas são utilizadas apenas no combate contra os outros, sem nenhum dano grave nem nada. E o coelhão parece gostar da atenção que recebe, todo mundo quer um pedacinho dele. Enfim, a equipe que tocar nele primeiro, vence. Pode parecer simples, mas não é. Andy é muito esperto, além das outras equipes querendo chegar nele também.

— Andy? O coelho se chama Andy? — questionei. Eu estava mais interessado no nome do coelho do que nos combates armados. Eles olharam para mim, confusos. Um minuto depois perceberam a coincidência e se deram a rir.

— Podemos te chamar de Andy também, Adrian — disse Susan. O que só fez os outros dois rirem mais ainda.

— Não tem graça — resmunguei.

Por sorte (ou não), Gregório passou por nós bem na hora e disse:

— Susan, Adrian, temos que conversar. Encontrem-me perto da Grande Árvore, em cinco minutos. — Sua voz parecia um tanto ríspida, pesada. Como se anunciasse uma grande tragédia, ou revelaria um segredo que poderia acabar com as nossas vidas.

— Tudo bem — Sue respondeu quase que de maneira automática. Ela o encarou saindo do refeitório, como se estivesse decidida em obter mais respostas sobre sua mãe.

— Estão ferrados — comentou Candence, antes de voltar a comer algumas uvas em seu prato.

— Eu não queria ser vocês — completou Ferdinand, dando mais carga dramática no que ela havia dito. Naquele momento (um de muitos), quis dar uns tapas naquele garoto, mas tinha certeza que eu sairia na pior.

— Não há de ser nada, certo, Adrian? — perguntou Sue, mas nem mesmo ela parecia acreditar nisso.

— Claro. Com certeza não é nada — respondi. Por dentro, meus pensamentos gritavam: “Deu ruim, rapaz. Corra o mais rápido que puder! Salve-se quem puder!” — Não é como se tivéssemos feito algo, não é? Chegamos ontem, nem deu tempo de aprontar alguma coisa.

Os três me olharam desconfiados.

— Não que eu fosse fazer algo — me apressei a dizer, mas eles já haviam colocado na cabeça que eu faria alguma coisa.

— Vou ficar de olho caso apronte alguma gracinha — falou Candence, mas ela parecia estar mais se divertindo com aquilo do que tentando me intimidar.

Não demorou muito para Susan se apressar a ir de encontro ao Gregório.

— Vamos. É melhor acabar com isso logo do que ficar imaginando mil coisas. Graças aos dois daí. — Apontou para Candence e Ferdinand, que pareciam sérios.

— É. Vai dar tudo certo — disse a ela.

— Como você sabe? — perguntou.

— Não sei. — Sorri e fui andando de encontro com Gregório, torcendo para não ser nada demais.

Por todo o caminho, alunos ficaram nos encarando. Encarando a Susan. Ela era a nova estrela do lugar, e eu apenas o coadjuvante. Não que eu estivesse com inveja dela, pelo contrário, estava feliz por ela ter sido reconhecida pela mãe.

Depois de cinco minutos intermináveis sob o sol escaldante chegamos à Grande Árvore, uma sequoia alta-o-bastante-para-sequer-saber-a-altura. Gregório, como combinado, estava nos esperando embaixo dela. Ele parecia impaciente. Seu terno alaranjado estava um pouco amarrotado, como se ele tivesse entrado em alguma discussão com alguém e tivesse perdido. E, de fato, parecia um raio de sol, como alguns alunos disseram quando ele entrou no refeitório.

— Bem, vocês vieram — disse ele, batendo o pé direito repetidamente no chão. Os braços cruzados. O velho diretor do Instituto parecia mais impaciente do que o normal, como se não visse a hora de acabar aquilo.

— Não parecia que tínhamos outra escolha. — Sue o respondeu com certo nervosismo em sua voz.

— É. Receio que seja verdade — falou o diretor. — Os chamei aqui para contar-lhes o que eu prometi ontem. Pois bem, vamos começar. — Gregório chegou mais perto da árvore e bateu em três lugares diferentes do tronco. Segundos depois, uma porta apareceu bem no meio da árvore. Gregório adentrou. — Não fiquem aí parados. Entrem.

Sue e eu nos entreolhamos. Sem titubear, entramos na árvore

Dentro da Grande Árvore era imenso, mas não tive tempo para olhar em todos os lugares ou perguntar para onde cada lance de escada levava. Gregório subiu as escadas que davam para uma salinha vazia com duas cadeiras e uma tv.

— Entrem aí — ordenou Gregório. Que tipo de pessoa dirige um lugar e não tem a menor paciência com as pessoas? Não faz muito sentido, mas era sempre melhor não contrariar Gregório, afinal ele era a autoridade ali.

— Por quê? — perguntou Sue. Uma coisa que era legal nela era seu instinto de sempre perguntar as coisas. Talvez fosse uma maneira  de tentar estar preparada para o que viesse em seguida.

— É aqui que começa a jornada em busca das respostas que vocês tanto queriam. Podemos dizer que é aqui que vocês aprendem a engatinhar antes de andar nesse “novo mundo” de deuses e monstros.

— Mas eu já sei quem é minha mãe, ou quase isso — continuou Susan. Mesmo em um mundo onde há monstros e deuses, talvez a coisa mais importante para quem nunca conheceu a mãe, era de finalmente saber quem era ela. Assim como a garota, eu também tentava saber quem era minha mãe, embora já a tivesse visto em sonhos, ainda não sabia seu nome e não me sentia, de fato, conectado com ela.

Gregório levou a mão ao rosto. Balançou a cabeça em negativa e disse:

— Não há só isto para saber, Srta. McMenning. Há mais coisas. Muito mais.

— Vamos ver algum filme? — disse eu assim que entrei na sala. E logo emendei uma pergunta: — As respostas que queremos vêm nele?

— Sim e não, Adrian — respondeu Gregório. — Só as mais básicas. E obviamente, caso tenham outras, eu os responderei após o filme. Agora — ele agitava freneticamente as mãos — entrem.

Sem muitas alternativas e com a promessa de obter respostas, Susan apertou o play. Assim que começou a contagem regressiva, Gregório se retirou da sala com tanta pressa que a porta fechou com força.

***

Trinta minutos! Esse foi o tempo que o pior filme já feito levou para nos explicar sobre o que é ser um Remanescente. O título era “MANUAL DE INTRODUÇÃO À VIDA DE REMANESCENTE – VERSÃO ATUALIZADA” (Não me peçam para falar como era o filme).

Sinceramente, quando ele disse que as respostas seriam esclarecidas, achei que sairia sabendo qual era o nome da minha mãe, mas só aprendi o que é ser um Remanescente e tudo que somos capazes de fazer.

— O que acabei de assistir? — falei, horrorizado. Com certeza precisaria de alguma sessão de terapia para esquecer tudo aquilo.

— Quem quer que tenha feito este filme, não merece viver — Sue praguejou. A garota também não estava muito contente com o longa.

— Se você encontrar quem fez isso, eu ajudo — concordei. Na minha cabeça, quase pude ouvir Gregório rindo e se divertindo às nossas custas, enquanto assistimos aquela atrocidade que chamavam de filme.

Atrás de nós, a porta se abriu magicamente. Este deveria ser o sinal de que era para irmos até a sala onde Gregório estava.

A sala ao lado não era muita coisa. Gregório, que segurava um copo de uísque, parecia estar repousando curtindo o breve momento de paz. Era, definitivamente, menos exótica que a outra sala dele com os animais empalhados. A cada gole que dava na bebida parecia apreciar mais o líquido.

— Ah, ótimo! Aqui estão vocês — exclamou. — O que acharam do filme?

— Instrutivo — falei. O diretor me encarou como se soubesse que era mentira.

— Verdade. Aprendi muito — Sue completou.

Ele nos analisou por poucos segundos.

— Nah, eu sei que o filme é ruim. — Gregório começou a rir ao imaginar nosso sofrimento. — Mas é obrigatório para os novatos terem uma ideia do que vão lidar. Vocês, por outro lado, são exceção à regra. Já passaram por um bocado de coisa ontem.

— E bota coisa nisso — concordei. 

— O que você vai falar que não esteja naquele filme? — perguntou Sue.

— Ah, sim. Não ia esquecer. — Sua voz mudou drasticamente — Sabe, não recebemos novos alunos há anos.

— Isso é ruim, não é? — perguntei. 60 alunos não era muita coisa se for comparar com sabe-se lá quantos monstros espalhados por todos os cantos.

O diretor assentiu.

— E esse nem é o grande problema. Os deuses... — Gregório colocou a mão no rosto novamente. — Os deuses sumiram.

Susan e eu quase demos um pulo das cadeiras. Não era real, era uma pegadinha do Gregório. Quer dizer, nós sabíamos que eles tinham sumido, afinal nunca tivemos contatos com nossos pais divinos.

— O quê? — espantou-se Sue. — Como assim “sumiram”? Minha mãe acabou de me anunciar como sua filha. Não é possível.

— Isso é verdade? — perguntei. Mas a forma como Gregório agiu antes de nos contar já dizia que era. — Se for algum tipo de piada sem graça, eu não entendi, Gregório.

— Sim, Adrian, é a mais absoluta verdade. Os deuses se foram — repetiu. Havia dor e angústia na fala de Gregório. — Aconteceu há alguns anos, há uma década mais ou menos. Estava tudo bem, os deuses davam uma passada aqui no Instituto, ver de perto como estavam as coisas. Sabe, coisa normal de deuses, dar uma volta pelas coisas que criaram há milhões de anos. E, então, puff. Nada. Nem um único sinal sequer. Eles não respondiam mais nossos chamados, as orações, nada. Estava silencioso pela primeira vez desde o início de tudo. Estávamos sozinhos, abandonados.

Olhei para Sue, ela estava incrédula. Parecia relutante em querer acreditar que logo agora que soube quem era sua mãe, ela não estaria mais aqui entre nós para a conversa que Sue queria. Seus olhos começaram a lacrimejar.

— Ferdinand estava orando para seu pai lhe dar proteção, enquanto Candence dirigia feito louca pela cidade — comentei. E pelo jeito que o grandão estava fazendo, ele tinha muita convicção de que daria certo. 

Gregório deu um sorriso de canto de rosto, mas mesmo assim não diminuiu seu pesar.

— Ferdinand é um dos muitos que preferem acreditar que os deuses não se foram. Sabe, crianças, as pessoas precisam de algo para ter no que acreditar, para o que reclamar quando algo não dá certo ou para agradecer quando consegue algo. Eu não os culpo. Os admiro, até. São quase cinquenta anos nessa vida. — Ele encheu o copo com um pouco de uísque. — Um brinde a isso. — Sorveu tudo num só gole. Limpou o bigode e voltou a falar. — Cinquenta anos vendo de tudo, viajando pelos Quatro Mundos. Mas deuses sumindo de repente? Nunca. Foi um choque para todos nós. Principalmente para mim, que dou as más notícias e sou o encarregado pelo Instituto.

— Mas, Gregório, minha mãe me Clamou. Como? — Sue parecia atônita. Não queria, assim como eu, acreditar que os deuses tinham sumido.

— Eu também não sei, Susan — respondeu. — Talvez fosse uma pequena fagulha de esperança, afinal, sua mãe é a deusa da perseverança. Tudo é possível, eu acho. Mas é como eu disse, não havia sinal há uma década, e os últimos que chegaram, antes de vocês, foram Candence, Ferdinand e seu irmão mais novo Lucca, há quase seis anos. Foi a mesma coisa: foram Clamados e depois mais nenhum sinal de algum deus que fosse.

— Ferdinand tem um irmão? — perguntou Susan O grandalhão não tinha mencionado isso antes, muito porque não tínhamos intimidade, e mesmo depois que chegamos no Instituto ele sequer fez menção de dizer algo sobre.

Tinha. — Gregório me corrigiu.

E com a resposta, a garota não falou mais nada. Sabíamos bem o que aquilo significava.

— Podemos voltar aos deuses desaparecidos? Quer dizer... é triste Ferdinand ter perdido o irmão, mas isso pode ficar pra depois — disse eu. Até me surpreendi por ter soado tão frio com relação ao Ferdinand.

Gregório deu de ombros.

— Contei a vocês que tempos sinistros estão por vir. E contar com ajuda divina não será possível se eles não retornarem. Além disso, eu não sabia que você, Susan, seria Clamada. Esta conversa seria exatamente para isso: não criarem expectativas. — Ele olhou pra mim. — Sinto muito, Adrian, talvez você nunca seja Clamado.

— Mas eu posso lembrar-me do nome dela, certo?

— Sim, pode. Mas do que adiantaria saber seu nome se não puder tê-la por perto ou orar por proteção? O mesmo vale pra você, Susan. Porém, felizmente, vocês ainda poderão adquirir e treinar as habilidades que provêm das suas mães divinas.

— Po-Poderes? — Sue até se engasgou. Ela sabia que eu podia, de alguma maneira, evocar esferas de fogo e que tinha asas, mas talvez não tivesse passado pela sua cabeça que  também poderia ter certas habilidades.

— Sim. Cada deus tem sua especialidade. Por ser neto de Mystorian, consigo manipular alguns elementos, principalmente o ar e água, além de conjurar portais. — A forma como falava de si mesmo, Gregório demonstrava ter muita honra por ser descendente de Mystorian. Isso sem falar da forma narcisista como se descrevia. 

Então o diretor do Instituto apontou seu dedo fino para Susan e continuou:

 — Você, minha querida, sendo filha de Aezirel, conseguirá, com o tempo, manipular a luz ao seu redor, fora toda uma gama de habilidades que você poderá aprender. Já você, Adrian, como sua mãe é uma incógnita até sabe-se lá quando, recomendo começar o treinamento com armas. Treinos portando espadas devem ser mais adequados para você, dado seu recente histórico. Ah, e como você descobriu alguns poderes, pode aperfeiçoá-los com o tempo. Temos aula de magia, cujo professor sou eu, então vai ser bom para os dois estarem presentes.

— Tudo bem — Sue e eu respondemos uníssono, o que foi impressionante e nada calculado.

— Antes de mandar vocês de volta, tem mais uma coisa que quero dizer — disse o diretor. — As aulas “normais” de hoje, vocês farão parte. Mais tarde, Susan deverá passar no Arsenal e falar com a Lena para escolher uma arma. Adrian, você já tem uma, certo?

Assenti. Instintivamente coloquei a mão no meu relógio.

— Não sei como a arranjou, mas estou impressionado que tenha uma. — Ele se levantou de sua poltrona e foi até a porta. — Bom, crianças, é isto. Vejo vocês depois. — Gregório deu um tapinha na testa como se tivesse acabado de lembrar algo importante. — Ah, sim, quase ia esquecendo isso também. Vocês irão participar da caça ao coelho.

— O quê? Mas nem temos experiência com isso, nem sabemos o que fazer — argumentei. De fato, se fosse como Ferdinand havia descrito mais cedo, Susan e eu seríamos trucidados de imediato. Os demais alunos focariam nos novatos, e eu não gostaria nem um pouco de ser humilhado na frente de outras pessoas.

— Vão ter a partir de agora. Até depois. — Gregório foi nos empurrando para fechar a porta. Sue e eu estávamos por conta própria de novo.

Não falamos sobre o que acabamos de ouvir e voltamos para o lado de fora da árvore.

— Que história, não? — disse a ela. — Deuses sumindo, alguma coisa muito má vindo. Muita coisa para assimilar.

Sue parecia aérea. Andava como se estivesse no "automático", sem dar importância para o mundo ao redor. Ela ficava murmurando algumas coisas que não consegui compreender. 

Enquanto andávamos, notei que os outros remanescentes brincavam entre si, rindo, conversando, agindo normalmente como se nada tivesse acontecido. As palavras de Gregório eram verdadeiras, as pessoas precisam acreditar que existe algo a mais. Aqueles jovens agiam como se os deuses não tivessem sumido, estavam vivendo normalmente (ou o mais normal possível que se pode quando se é um Remanescente), achando que um dia, caso a coisa apertasse, os deuses viriam em seu resgate. Não posso culpá-los, pensei. Todos têm que acreditar em algo, seja em deuses, ou que de alguma forma não-tão-divina as coisas iriam melhorar. No meu caso, acreditava que meu pai estaria bem onde quer que estivesse.

— Ele estava falando a verdade — falou Susan. Era como se a garota pudesse ler meus pensamentos, o que me deixou na dúvida se isso seria algum poder de Aezirel também. — É que não dá para acreditar, sabe? Toda a minha vida, acho que pra você também, sempre quis saber quem era minha mãe. E agora que eu sei quem é, ela está desaparecida. É como se tudo que fizemos e passamos ontem não valesse de nada.

— Você resumiu tudo que estou sentindo no momento, Sue — disse a ela. — Desde ontem, com a Marie morrendo, me sinto impotente, um fraco. E, se ao menos tivesse a chance de saber o nome da minha mãe, talvez ela ajudasse a encontrar meu pai antes que fosse tarde demais.

Num movimento rápido e inesperado, Sue pousou suas mãos em meus ombros. Ela evitou me olhar diretamente nos olhos.

— Com deuses ou não, nós vamos dar um jeito de encontrar seu pai, Adrian. Pode não ser hoje ou amanhã, mas vamos achar uma maneira de resgatá-lo.

— Sue… — Eu estava grato por ela oferecer ajuda, mas não podia aceitar, afinal sua vida se tornou um completo pesadelo desde que me conheceu. Não podia fazê-la arriscar tudo para fazer algo que era meu dever.

— O quê? Você é meu amigo, Cabeção, vou ajudá-lo da maneira que puder.

— Susan... Você em um dia se tornou a melhor amiga que já fiz.

— Você não tem amigos, Adrian — ela rebateu. 

— Por isso você é a melhor. — Sorri. Era incrivelmente boa a forma como as coisas ficavam melhores após conversarmos. É como se sempre estivéssemos nos levantando quando as coisas ficavam pior.

O belo momento de amizade foi interrompido quando a trombeta ensurdecedora tocou novamente. Os outros alunos do Instituto saíram correndo às pressas, não se importando com a zoada. Alguns vieram correndo por nós. Sue chamou um deles:

— Ei, o que está acontecendo?

— Vocês são os novatos, né? — disse o garoto. — Então, é o sinal de que as aulas vão começar. É bom vocês virem também. A professora não gosta de atrasos.

— Ah, obrigado — falei.

— Sem problemas, cara. — O garoto se despediu de nós e saiu correndo.

— É melhor irmos — falou Sue, nada feliz.

— Sabe o que isto significa? — comentei.

— Não.

— É o nosso segundo “primeiro” dia de aula.

— Oh não... Quer dizer que vamos nos apresentar de novo? — Seus ombros caíram.

— Infelizmente — respondi. — Só espero que a próxima professora não tente nos matar como Galiofeu, ou Sr. Finchyn, tentou fazer ontem.

— É. Mas como vamos para a aula sem nada para usar? 

E, magicamente (mais uma vez), nossas mochilas apareceram nas nossas costas. Pude sentir o peso do material escolar lá dentro.

— Ia usar a desculpa de não ter material para ir à aula...

— Não temos escapatória — decretou a garota.

Fomos seguindo os outros alunos em direção ao prédio onde ocorreria a aula. Eles se amontoavam nas portas como sempre faziam. Quando entramos no corredor, tive uma sensação horrível. A minha nuca começou a esquentar. 

— Tudo bem, Adrian? — perguntou Sue.

— Não. — Eu queria dizer que estava tudo bem, mas a garota saberia no mesmo instante que era mentira. — Uma sensação estranha percorreu meu corpo, como se algo ruim estivesse prestes a acontecer.

Susan ficou pensativa na minha frente, imaginando o que de ruim poderia acontecer. Por fim, ela disse:

— Talvez seja apenas nervosismo, você não é muito bom em se misturar com as pessoas.

— Pode ser — falei. Mas não era só isso, era um sentimento familiar que há meses eu não sentia.

Parei em frente à porta. Tinha uma mulher de costas, revirando algo em sua bolsa de couro marrom. Quando ela se virou, um sorriso sinistro coroou seu rosto. Aqueles olhos castanhos penetraram-me na alma. Era ela. Após vários meses, eu não conseguiria esquecer aquela expressão de ódio e raiva contra mim.

— Não pode ser — minhas pernas travaram, fiquei congelado na frente daquela mulher que, por meses, tinha feito minha vida um inferno. — Senhora Allen?

— Ora, ora, se não é meu aluno destruidor de salas favorito: Adrian West — disse ela, com um sorriso aterrorizante. — É bom vê-lo novamente.


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