Remanescentes - A Fazenda Amaldiçoada escrita por Eddie Stoff


Capítulo 14
Ninguém esperava que isso fosse acontecer




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Seguimos Gregório até nossos quartos, o que pareceu uma eternidade. Quanto mais andávamos, o lugar parecia maior do que já era. Algumas pessoas, na maioria sendo adolescentes ou até mesmo um pouco mais velhos, conversavam e riam despreocupadamente.

A brisa gélida começou a ficar mais intensa, mas, para mim, não incomodava muito. Marie dizia que eu morava dentro de um iglu, se referindo ao meu quarto por ser gelado demais. Enquanto eu não me preocupava com o frio, Sue tremia por causa disso. Seu queixo batia. Gregório não pareceu se importar e continuava a falar sobre o Instituto:

— Como vocês podem ver, aqui é o lugar mais seguro para pessoas como nós.

— Você é um Remanescente também?  — Já estava me acostumando com o termo.

— Ora, pode apostar que sim, Adrian. — Deu um tapinha no meu ombro. — Sou neto de Mystorian, Rei dos Deuses. O chefão de lá de cima. – Apontou para o céu.

— Esse nome não é estranho... — disse Sue. — Adrian, você não falou um nome parecido com o dele hoje cedo na aula de história?

— Sim, eu acho que sim — respondi. Tentei fazer um esforço tremendo para lembrar daquilo, afinal, tinha acontecido tanta coisa naquele dia que não me espantaria acabar esquecendo alguns detalhes.

— Você disse? — Gregório não pareceu estar tão surpreso.

— Sim. Não apenas dele, na verdade. Falei o nome de mais alguns outros também, mas agora não lembro quais foram. — Cocei a cabeça, tentando lembrar. Nada. — Não sei explicar, esses nomes vieram na minha cabeça assim. Só me lembrei desse nome porque você acabou de dizer.

Nós três não dissemos mais nada. As poucas vozes que dava pra ouvir eram as dos outros alunos do Instituto. Gregório estava parado na nossa frente. Ele me analisou da cabeça aos pés como se eu fosse um caso excepcional, extraordinário, enquanto alisava seu bigode. Por fim, ele disse:

— Não é tão raro saber esses nomes. São figuras importantes para nossa história, crianças. Estamos aqui por conta deles. — Gregório fez uma pausa, como se estivesse escolhendo bem as próximas palavras. — Todo nosso Universo foi construído pelos deuses, cada pequena estrela, cada pedaço de terra, tudo.

A narrativa dele me lembrou bastante o que Candence havia nos contado mais cedo naquele dia, talvez fosse uma verdade absoluta para os remanescentes, mas eu sentia que com tudo acontecendo tão rápido, não tive tempo para respirar e entender tudo aquilo. Era uma realidade totalmente nova jogada nos nossos rostos. Susan parecia estar passando pelo mesmo que eu, tentando compreender como nossas vidas mudaram tão drasticamente em poucas horas.

— Se eu sou uma Remanescente, como não consigo lembrar os nomes, como o Adrian fez? — Sue parecia triste por não saber. Talvez fosse algo a mais. Se ela lembrasse os nomes, poderia saber quem é sua mãe, assim como eu saberia quem era a minha.

— Não se preocupe, minha querida — disse ele, tentando tranquilizá-la como se aquela dúvida fosse comum. — Poder acessar as lembranças do passado não é algo simples de se fazer. Às vezes, acontece de ser mais rápido para uns do que para outros. No final, o resultado será o mesmo: ambos saberão dos nomes, dos fatos passados e mais outras coisas. Além disso, nós reforçamos a leitura de antigas escrituras sobre nosso passado, o que vai facilitar essa absorção de nossa história.

— Entendo. — Ela não queria estender mais o assunto, após entender que não saberia o nome de sua mãe tão cedo quanto desejava.

Era possível ver seu desapontamento, mas não tinha nada que pudesse fazer.

— Sabe o que é extremamente raro? — Gregório mudou ligeiramente de assunto. — Ler o idioma dos deuses.

— O quê? — Sue pediu para que Gregório repetisse mais duas vezes para poder finalmente entender. — Não falam a nossa língua?

— Bem, sim. Mas não.

— É para escolher uma das opções? 

— É complicado mesmo. — Gregório riu, mostrando os dentes amarelos. Em seguida começou a explicar: — Eles falam nossa língua, é claro. Porém, eles têm seu próprio idioma: Divin. Que é bem fácil de lembrar, pois vem de divino.

Claramente quem batizou com esse nome não era muito criativo, mas achei melhor não falar nada para evitar constrangimento.

— Podia ter começado com isso, não? — falou Susan.

— É... — Gregório deu de ombros. — Enfim, o Divin não é algo raro entre nós, Remanescentes. Contudo, hoje em dia, não é muito necessário, já que os deuses mal se comunicam conosco. E quando fazem, é na nossa língua.

— Gregório, se alguém conseguisse entender o idioma dos deuses, é possível que pudesse entender a escrita também? — indaguei. Lembrei que tinha lido as runas na Anoitecer. — Sabe, em manuscritos, ou até mesmo em certos objetos?

— Ora, mas é claro que sim, Adrian! — Gregório falou com convicção. — Eu consigo ler, assim como vocês também conseguirão, mas é como eu disse, não é muito “útil” atualmente. Obviamente o conhecimento não vai acontecer de imediato, precisam se aprofundar mais no idioma.  — O diretor bigodudo parou por um momento me encarando, como se tivesse caído a ficha sobre minha dúvida. — Você viu algo que estava escrito em Divin, Adrian?

— Não. Apenas curiosidade mesmo — menti.

Ele pareceu ter acreditado, mas não a Sue. Ela percebeu que era mentira, como se a garota pudesse ler minha mente. Gregório não percebeu o olhar inquisidor de Susan, mas não é como se ele fosse se importar com isso. 

— Bom, vamos, não temos tempo para conversar mais — disse Gregório. — Já está quase na hora de recolher, e amanhã tirarei todas as dúvidas que tiverem. — E se adiantou antes que pudéssemos dizer algo: — Eu sei que vocês estão ansiosos para saberem quem são seus pais, ou melhor, suas mães. E quem dera eu soubesse, mas é algo que só elas podem fazer. Só elas podem Clamá-los. Antes que perguntem, Clamar é quando uma deusa ou deus reconhece seu filho mortal.

Voltamos a andar pelo Instituto, só que minha cabeça estava repleta de dúvidas, as quais Gregório se prontificou em não responder. Do Q.G (como era chamada a casa) até os quartos era um pouco demorado, ainda mais quando Gregório fazia questão de parar para falar sobre o lugar, sendo que ele havia dito que contaria tudo no dia seguinte.

Ele nos contou que, além dos prédios de Arquearia, da arena para treinamento de combate (com e sem armas) e os estábulos, havia também uma arena de equitação ao fundo, e um espaço para termos aulas "normais". Quando for a hora podemos decidir continuar no Instituto ou tentar uma “vida normal”, não que fosse fácil pelo tanto de monstros nos perseguindo. 

Andamos para o leste do Instituto, em direção a ponte avermelhada que cruzava o pequeno rio, ligando as duas partes do lugar.

— Cuidado — Gregório nos alertou. — A ponte, mesmo sendo mágica, não aguenta muito peso. Então terão que ir um por um.

— Você estará logo atrás, certo? — perguntei.

— Nah, já fiz muito por hoje — ele disse. — Não tem como se perderem aí. Basta procurar o quarto em que está seu nome escrito na porta. Simples.

— Como assim? — Sue perguntou. Como sempre querendo saber tudo nos mínimos detalhes.

— É simples. — Gregório abriu os braços e sorriu novamente, mostrando seus dentes amarelados mais uma vez. — Mágica. Todo o lugar tem propriedade mágica. Desde o momento em que entraram aqui, o ambiente vem os estudando, coletando informações. O flash que vocês presenciaram assim que puseram os pés aqui serviu pra isso. Além de adaptar seus olhos, claro.

— Não é invasivo? — Sue era cautelosa. A garota não estava errada em ser precavida, até concordava com ela, mas devido a todos os acontecimentos, era melhor dar uma chance para eles, para aquele lugar.

— Que nada, Srta. McMenning. É cem por cento seguro. Vocês têm minha palavra — ele garantiu. Contudo, Susan ainda ficou um tanto receosa, como se tivesse medo de alguém entrar no seu quarto e descobrir algo que não devia. — Ora, não há motivos para ter medo. Suas informações estão seguras, nenhum de nós tem permissão para bisbilhotar nada do outro. Agora, vão! — Gregório agitava as mãos freneticamente para atravessarmos a ponte.

— É melhor irmos, Sue — disse eu, tentando pôr um fim no impasse. — Confiamos neles até agora, e nada fizeram com a gente. Seu pai disse que aqui era um lugar seguro para você. Talvez deva confiar no que ele disse.

Susan me encarou. Ela parecia que ia explodir após eu ter falado sobre o pai dela.

— Jogou baixo, Adrian. Vamos — murmurou. Falar de seu pai ainda era difícil, a garota ainda se ressentia por como as coisas terminaram entre eles mais cedo naquele dia. Seu pai sabia o que Sue era, sabia que no Instituto ela estaria segura, mas isso não significava que seria fácil ela aceitar tudo isso. — Mas não estou nada feliz com isso.

— Isso! Ótimo! — Gregório comemorou um pouco óbvio demais. — É... Quero dizer, que bom. Se permitirem, estou de saída. Tenho alguns materiais para preparar.

Nem tivemos tempo de nos despedir e ele foi embora. Não muito distante ele voltou até nós, sorrindo, e disse:

— Eu já ia me esquecendo de uma coisa. Como eu disse antes, vocês chegaram um pouco atrasados para o jantar. Sinto muito se estão com fome, mas são as regras: ninguém pode ir para o refeitório depois do horário. Porém, em cada quarto há uma geladeira que é abastecida magicamente com o que vocês quiserem, desde que não seja nada fora do normal. Amanhã conto tudo que vocês precisam saber. Tchauzinho e boa noite, crianças. Mais uma vez, bem-vindos ao Instituto Quase Gente.

Minha barriga roncou quando ele falou em comida.

— Droga...

— Vamos, esfomeado. — Sue me puxou pela manga da camisa. — Vamos procurar esses benditos quartos.

— Sim, claro. Vamos — concordei. — Bom, primeiro você.

Olhei para trás, não conseguia mais ver o Gregório. Ele sumiu tão rápido que nem percebemos.

— Agora é com a gente.

— Não temos mais nosso guia maluco, só nos resta procurar pelos quartos.

Achar os quartos não foi tão fácil quanto Gregório disse que seria. Tinham dezenas de quartos, com os mais variados nomes.

— Não vamos achar nunca — Sue reclamava pela demora em localizar os quartos. — Não podia ter uma luz indicando onde fica meu quarto? Depois de hoje, tudo que quero é uma cama, mas nem isso vai ser fácil de conseguir.

— Relaxa. Um dia a gente acha — brinquei. O frio começou a ficar mais forte. Era possível ver alguns flocos de neve nos rodeando, mas pode ter sido a fome criando algumas ilusões. — Além disso, não faltam muitos para checar.

Assim que voltamos a procurar os quartos, quase me iludi quando pensei ter achado o meu. Porém, era de outro cara chamado Adriano Vallaz.

Susan tinha se distanciado de mim, tentando expandir a área de busca.

— Aqui! — ela me chamou. Talvez em outra ocasião, Susan ficasse contente por achá-lo, mas tinha algo nela que passava tanta emoção pelo quarto recém encontrado. — Achei o meu.

Fui andando até ela, que estava parada diante de uma porta branca recheada de runas entalhadas por toda ela. Na parte de cima estava escrito o nome dela: SUSAN MCMENNING.

— Pelo menos colocaram os dois "n" — quebrei o silêncio. Sue não riu, o que foi um indicativo que confirmava minhas suspeitas de que ela não estava bem.

Ela não disse nada por alguns instantes, e eu respeitei seu tempo.

— É definitivo, Adrian — começou a garota. — Agora, aqui é a nossa casa. Tudo aconteceu tão rápido que nem tive tempo de conversar com meu pai sobre minha mãe, como ele sabia do lugar. Sobre tudo. Essa é a nossa nova vida e nem fomos perguntados se queríamos realmente isso.

— Eu sei, Susan — respondi, mas não conseguia olhar para ela direito.. — Penso no meu pai a todo o momento e na Marie também. Eles se foram, Sue. Marie morreu para que eu pudesse estar aqui. Meu pai... Ele foi levado para algum lugar e tenho quase certeza que estão maltratando ele. Em questão de poucas horas perdi a minha família. Só me resta aqui, Sue, não tenho mais uma casa para onde voltar. — Finalmente a olhei, Sue estava chorando. Coloquei minhas mãos em seus ombros. — De novo, sinto muito por tudo que você passou hoje. Por mais que você diga que não foi minha culpa, eu sei que foi. Você entrou nessa por minha causa. Se não fosse por Galiofeu ter ido atrás de mim, você estaria com seu pai, com sua família, Sue.

— Uma hora ia acontecer comigo também, Adrian — ela disse, enquanto enxugava as lágrimas de seu rosto. Aquilo era verdade, os monstros não iriam parar de ir atrás dela ou de qualquer outro remanescente. — Só adiantei o processo, e você estava em perigo, eu o ajudei. Fiz isso porque eu quis. Eu fui ajudar um amigo, Adrian. E pode parecer estranho ter feito tudo aquilo por alguém que mal conheço, mas parecia ser o certo a se fazer.

— Eu sei, eu sei. E agradeço por ter ido ao meu resgate, mesmo que tenha causado uma confusão familiar para você em seguida.

— Não, Adrian. A verdade é que estou sendo um pouco egoísta por não ter conversado com meu pai sobre tudo isso, ele sabia que ia acontecer algo parecido em algum momento. E mesmo que tentasse me proteger disso, esse “mundo novo” me alcançou. Do mesmo jeito que os monstros foram atrás de você e das pessoas que você ama, eles também viriam atrás de mim e não poupariam ninguém. Pode não ser a melhor coisa no momento, mas vir pra cá pode ter salvado minha família. Vai ser complicado me acostumar com tudo isso de início, mas tenho certeza que iremos progredir bastante aqui para proteger minha família e você poderá resgatar seu pai.

— Pode apostar que sim, Sue — disse eu. Porém, eu não estava muito confiante nisso. Sim, eu queria ter meu pai de volta, mas tudo parecia tão difícil agora. De repente não éramos mais adolescentes comuns, estávamos envolvidos em algo bem maior do que deveres de matemática ou coisa assim. Pelo o que Gregório contou, era uma luta constante de vida ou morte. — Olha, já disse antes e repito de novo: se precisar de alguém para conversar, pode contar comigo, Sue.

— Eu sei que sim, Adrian. — Ela me abraçou rapidamente. — Você é o melhor amigo que já fiz.

— Isso é meio triste para você, Sue — rebati, aliviando o clima triste que havia ficado.

— Você não toma jeito, Trevosinho — ela me chamou pelo apelido que seu pai havia me dado, e soube que estava tudo voltando ao “normal”.

— Sou um caso único, Susan McMenning com dois n.

— É, deve ser sim. Agora você deveria procurar seu quarto. — Ela voltou até a porta, tentando abrir, mas não tinha maçaneta.

— Acho que sim. Boa noite, Sue.

— Até amanhã. — Ela sorriu. A garota tentou abrir a porta, só que não surtiu efeito algum.

Estava prestes a sair, quando escutei Susan resmungando enquanto tentava abrir a bendita porta.

— Tudo bem aí? — perguntei. Me segurei para não rir.

— Sim, claro. Nada com o que se preocupar. — Ela tentou agir normalmente.

— Tem certeza?

— Sim, eu tenho.

— Não parece muito.

— Adrian, não me faça ir até aí — disse ela. Seus olhos se estreitaram, a garota estava a ponto de voar no meu pescoço e me encher de pancada. E foi aí que soube que era a hora de ir andando.

— Até depois, Susan. — Saí o mais rápido que pude. (Tem horas que ela fica assustadoramente perigosa)

Olhei para trás, ainda consegui ver Susan chutando a porta, batendo de um lado e do outro da porta, tentando compreender como funcionava. Eu estava tão focado pra ver se ela conseguia entrar, que não percebi um tronco de árvore na minha frente. Quando reparei nele, já estava com a cara doendo. Voltei a andar como se nada tivesse acontecido. Olhei mais uma vez para trás, Susan tinha sumido. Era possível (a hipótese mais plausível, na verdade) que ela tinha conseguido descobrir a maneira de abrir a porta. Só faltava achar o meu.

Perambulei entre os quartos procurando a porta que tivesse meu nome, mas parecia uma missão impossível. Talvez eu não tivesse quarto, afinal. Seria um indício de que eu não pertencia àquele lugar. Só então que, após alguns segundos, meu cérebro voltou à racionalidade e notei o engano. Voltei correndo até a porta. Era idêntica às outras, exceto pela coloração acinzentada. Tinha as mesmas runas entalhadas nela e na parte superior estava escrito: ADRIAN WEST. Pensei no que Sue tinha feito para abrir a porta. Me veio a "solução".

Chutei a porta até ela abrir.

Nada.

Esmurrei. Empurrei. Imaginei-a abrindo.

Nada.

Até pensei em procurar ajuda de alguém mais experiente do Instituto para abrir a porta, mas não aparecia ninguém, mesmo que Gregório tenha dito que estava quase na hora do toque de recolher, tinha que ter algum remanescente rebelde fugindo. Infelizmente não tinha. Teria sido bom se a Candence ou o Ferdinand aparecessem magicamente explicando como funciona aquela porta, mas não os via desde que começou a tal da reunião semanal. Eu estava num lugar que não sabia como funcionava e sem poder entrar no quarto que havia sido criado especialmente pra mim. Típico, pensei. É exatamente o tipo de sorte que eu tinha.

Já estava pensando em como poderia dormir no gramado, enrolado com algumas folhas, quando uma das runas deu-se a brilhar. Não sei qual era seu significado, mas brilhava tão intensamente que tive a sensação de que estava pedindo para eu pressioná-la.

Apertei.

Novamente, nada aconteceu.

— É, sempre gostei de acampar — resmunguei.

Até que... puff! A porta se abriu.

Era só isso? Me xinguei mentalmente. Não lembrava de ter visto aquela runa na porta da Sue. Talvez cada porta tenha uma runa diferente para abri-la.

Empurrei a porta devagar. Estava escuro, mas eu consegui enxergar algumas silhuetas dos móveis que estavam lá dentro. Liguei a luz, e quando ela acendeu fiquei de queixo caído. Primeiro, o quarto não era apenas mais um quarto qualquer, como aqueles de hotel. Era o meu quarto. Exatamente igual aquele na nossa antiga casa. 

O flash de quando entrei no Instituto pela primeira vez estava dando as caras e mostrando para o que veio. A magia tinha feito seu trabalho de tornar minha estadia a mais reconfortante possível. Mais uma vez, não pude deixar de pensar no meu pai e em Marie que, de certa forma, desapareceram da minha vida. Me esforcei para não chorar só de lembrar deles novamente. Onde quer que eles estivessem, aposto que queriam que eu fosse forte e que, de alguma forma, eu superasse tudo isso.

Não demorou muito e o sono bateu. Coloquei Anoitecer na mesinha ao lado e fui pra cama. Assim que me deitei, os olhos pesaram. Senti as forças esvaindo meu corpo, deixando espaço apenas para o cansaço e sono. Meus olhos foram se fechando lentamente. A cada piscada que dava demorava mais entre os intervalos, até que me dei por vencido e dormi.

Foi o melhor sono que tive há dias. Sem pesadelos ou sonhos estranhos em lugares inóspitos. Uma simples e boa noite de sono era tudo que eu queria para esquecer aquele dia desastroso.

Queria ter ficado deitado na minha cama, só sair dela para comer ou ir ao banheiro. Porém, minhas expectativas foram por água abaixo quando um som de trombeta no volume máximo invadiu o quarto, me fazendo quase pular da cama. Com a cara inchada de sono, olhei as horas no meu relógio/espada, eram 05h50min da manhã. Coloquei o travesseiro na cabeça para abafar o barulho, mas não parecia adiantar. Era tão alto que fazia tremer as paredes do quarto. 

O despertador continuava tocando. E continuou nos próximos dez minutos, parando exatamente às 6 horas.

— Ótimo — resmunguei para o meu eu do espelho. — Me levantei à toa. Era só ter ficado na cama.

A ideia de voltar para a cama pairou em minha cabeça, mas fui interrompido quando alguém bateu na porta do meu quarto. Pensei em ignorar, achando que quem fosse iria embora após eu não ter ido abrir.

De cara fechada e mal-humorado, fui até a porta. Nem me importei com como eu estava; o cabelo grudado na testa, os olhos com algumas remelas e o rosto inchado por ter sido interrompido durante minha hora de dormir. Ainda vestia a roupa da noite passada.

O chão gelado foi de grande ajuda para me manter acordado.

— Quem está aí? — gritei, enquanto chegava perto da porta. Dava pra ver a sombra de alguém pela brecha embaixo da porta.

— Sou eu, Adrian — reconheci a voz da Sue. Pelo tom que ela falou, também não parecia muito feliz por ter sido acordada essa hora.

Abri a porta. Sue me olhou de cima a baixo.

— Você está péssimo — disse ela. Sue estava vestindo roupas novas e limpas, até mesmo seu casaco cinza parecia limpo. E para alguém que, assim como eu, foi "expulso" da cama, ela estava incrível.

— Ah, obrigado. Não tive tempo de me arrumar todo, já que fui praticamente expulso da minha cama por um barulho infernal — rebati, com certa ignorância, mas ela não parecia se importar. Era como se ela soubesse exatamente como é acordar cedo sem estar a fim.

— Não temos tempo pra isso, Adrian. — Ela parecia com pressa enquanto falava. Sempre olhando para os lados, vendo se alguém estava nos observando.

— O quê? Por quê? — Era tudo tão confuso que não consegui acompanhar o ritmo.

— Candence veio até meu quarto dizendo que temos que ir para o refeitório, tipo, agora. Parece que Gregório vai nos apresentar para o restante dos outros alunos do Instituto.

— E para que a pressa de passarmos vergonha, Sue?

— Ela disse que era importante irmos logo. Foi ordem do Gregório, e eu não fui muito com a cara dele.

— E precisava me acordar tão cedo? — A reclamação não era com ela, óbvio, mas com Gregório. Por que acordar cedo assim?

— Também não gostei disso, mas é como você disse antes: temos que confiar neles. E fazer o que nos pedem. Agora, anda logo. Lava esse rosto e coloca uma roupa decente.

— Você até parece a Marie falando, sabia? — E percebendo que ela não desistiria até eu ir me arrumar, fui entrando novamente no quarto. — Me dá cinco minutos para eu ficar pronto, ok?

— Vai rápido. Ainda temos que conversar sobre este lugar. Você viu aquela geladeira mágica? Não fazia ideia que tal coisa existia, mas não vou mais conseguir viver sem. 

— É, nem me fale — respondi, enquanto lembrava do cheiro da pizza que havia pedido na noite anterior. Uma das poucas coisas boas que aconteceu com certeza foi aquela geladeira mágica.

Pode ter parecido grosseira ter deixado a Sue do lado de fora, mas é que dentro do quarto não existem certas barreiras ou paredes que dividam os cômodos. Trocar de roupa na frente dela seria no mínimo constrangedor para nós dois. Fui correndo pegar uma roupa do armário, prendi Anoitecer no pulso e voltei até Susan.

— Pronto. Podemos ir — disse eu, abrindo a porta. Sue parecia estar impaciente.

— Agora está bem melhor, Adrian. — Ela sorriu brevemente diante da minha nova aparência.

— Não tanto quanto você, mas faço o melhor que dá em pouco tempo.

Era perceptível que suas bochechas ficaram vermelhas. Ela olhava para os lados e não diretamente para mim.

— Bom, temos que ir, certo?

— Sim, claro. Vamos logo acabar com isso.

Nós seguimos até o refeitório. A fila para atravessar a ponte vermelha estava num tamanho bastante considerável. Éramos praticamente os últimos da fila. Alguns alunos olhavam para nós, tentando descobrir quem éramos, mas não vieram falar conosco. Não entendi muito bem porquê. 

O refeitório era tão grande que tinha um palco. As dezenas de alunos se amontoaram nas mesas, conversando e rindo. Até Candence e Ferdinand apareceram por lá, falando com outros alunos. Quando nos viram se aproximaram. Candence havia mudado completamente o visual de ontem. Nada de cores extravagantes, imitando o arco-íris. Ela vestia cores mais amenas e menos impactantes aos olhos. Já Ferdinand mantivera o estilo militar básico e “militar”. [Até então eu não sabia que o grandão vinha de uma família de militares]

— Olha só quem acordou — disse Candence, com seu habitual bom humor. — Já não era sem tempo, hein? Preparados para a apresentação de vocês?

— Nem um pouco — reclamei. Embora estudasse pela manhã, acordar cedo não era muito agradável para mim — Não precisava me acordar tão cedo.

— É. Foi quase um sacrifício tirar ele do quarto — contou Sue. Ela fez parecer que precisou me arrastar para fora da cama, o que não foi bem assim, mas chegou perto disso acontecer.

— Aqui, Tampinha, você tem que viver à risca sob as diretrizes do lugar — falou Ferdinand. — No começo pode ser difícil, mas vão se acostumar logo. — Ele deu um tapinha no meu braço.

— Ou vocês podem não se acostumar e limpar os estábulos todos os dias durante um ano. Acreditem, não vão querer isso. — Candence sorria exageradamente até mesmo pra ela. 

— Não! — Sue exclamou. — Nada de limpar estábulos.

— Nada de estábulos! — concordei. Aquela terrível visão quase me fez perder o apetite.

 

O clima entre nós estava mais agradável que ontem. Não tinha mais tanto aquela tensão de voar um no pescoço do outro, ou as implicações causadas entre Candence e Sue e  Ferdinand e eu. Acho que depois de tudo que passamos, brigarmos não seria a melhor saída. Mesmo assim, ainda dava pra ver que Sue não ia muito com a cara da Candence e vice-versa. Ferdinand parecia mais contido em relação a sua implicância comigo. Claro, o apelidinho ainda continuava sendo usado, mas parecia que havia certo respeito e gratidão em relação a mim. E por mais que fosse uma tortura admitir isso, Ferdinand fez de tudo para resgatar meu pai, então eu era grato a ele, mas não é algo que diria em voz alta.

— Vem. Sentarão com a gente — Candence nos convidou. Ela olhou para Ferdinand, que não a contrariou. — Talvez assim seja mais fácil passar pela apresentação. Estar entre amigos ajuda a aliviar o nervosismo.

— Somos todos amigos agora? — perguntei em tom de brincadeira.

— Não abuse da nossa generosa amizade, Tampinha. — Ferdinand esbarrou em mim. Talvez eu estivesse errado sobre sermos “todos amigos”, e o grandão e eu seríamos inimigos mortais. — Não você, Sue. Você é legal, pode ser nossa amiga.

— Obrigada, Ferdinand. — Sue estava ficando vermelha. A cara que Candence fez não foi uma das melhores, mas eles não pareciam ter percebido.

— Vamos! — Candence falou mais alto que devia e os outros alunos olharam em nossa direção. Claramente ela não estava contente com aquela ceninha de Ferdinand. Será que ela estaria com ciúmes deles? Não faria o menor sentido.

Nós quatro sentamos numa mesa mais perto do palco. Candence nos contou que, antes de cada refeição pela manhã, Gregório subia no palco para ditar as atividades diárias. Geralmente não demorando mais que cinco minutos no máximo.

Não demorou muito e Gregório deu as caras no refeitório. Ele continuava usando terno, mas este de agora era completamente laranja, bem extravagante. Ouviram-se uns risinhos, mas ele parecia não se importar. Andava de cabeça erguida, afinal, era ele o diretor do lugar. 

Gregório passou direto para o palco. Do bolso retirou um rolinho de papel e começou a falar:

— Bom dia, alunos. Hoje as atividades serão as seguintes: Pela manhã, vocês terão aulas “mudanas”, aquelas baboseiras que ensinam nos “colégios normais”. Vocês sabem que se fosse apenas por mim, não teríamos essas aulas, mas vocês sabem a quem culpar por isso. — Havia certo rancor quando Gregório falou “colégios normais”, como se fosse uma abominação. Afinal, o que seria “normal”? No ponto de vista remanescente, estar ali era o normal. Aliás, quem seria essa pessoa a quem “devemos culpar”? Seria alguém que também dirigia o Instituto?

Algumas vaias foram escutadas. Gregório agitava a mão pedindo silêncio. E continuou:

— Podem vaiar à vontade, não vai mudar a grade de hoje. Pela tarde, terão aulas práticas. Quem fizer arquearia, terá aula de tiro ao alvo em movimento, quem faz combate de espadas ou corpo-a-corpo, terá aula de defesa e contra-ataque. Para aqueles que praticam luta a cavalo, praticarão luta montada. E, para aqueles que praticam as habilidades de cura, terão aula de como usar a natureza e o ambiente a seu favor. E, para finalizar o dia, hoje teremos a tão aguardada e disputada caça ao coelho.

Os alunos gritavam, batiam na mesa. Comemoravam.

— Ah, antes que eu me esqueça. — Ele se apressou, apontou para Sue e eu. — Como alguns de vocês já viram ontem, temos dois novos integrantes. Subam até aqui.

Susan olhou pra mim como se pressentisse o que estava por vir. Nem ela e nem eu queríamos subir para nos apresentar. Candence e Ferdinand nos empurraram e tivemos que ir até o palco, à frente de todos.

— Não sejam tímidos, crianças — disse Gregório com um grande sorriso estampado. — Aqui é a casa de vocês agora. Estes serão seus irmãos de batalha, aqui criarão laços para a vida toda, ou até serem pegos por monstros. — Essa última parte não foi nada animadora. — Aqui vocês acharão uma família. Agora, apresentem-se.

Desta vez, eu fui à frente. Sue tinha se apressado na última apresentação que fizemos durante a aula do Sr. Finchyn.

— Meu nome é Adrian West — falei. Eu nunca me acostumaria a estar à frente de muita gente. — Obrigado pela hospitalidade.

Candence puxou as palmas e os outros a seguiram.

Voltei a ficar ao lado da Sue. Ela estava suando, aparentemente mais nervosa do que eu.

— A-Adrian... Eu não estou me sentindo bem. — Susan estava pálida, seus olhos estavam vidrados para além do refeitório, era como se estivesse enxergando outra coisa.

— O quê? Como? — Fiquei apreensivo, afinal, eu não sabia o que dizer ou fazer para ajudá-la. 

— Não sei. — Ela continuava suando frio. Suas mãos estavam geladas, as pernas tremiam.

— Agora a próxima novata. Venha — chamou Gregório. Embora tivesse um sorriso no rosto, o diretor mais parecia que queria que aquilo acabasse logo. Havia algo de estranho nele: uma hora Gregório é super legal e demonstra ser atencioso, em outra, parece que odeia todo mundo.

Sue foi até a frente e, com as pernas tremendo, ela falou:

— M-Meu nome é Susan... — ela não chegou a completar a frase.

De repente, todo seu corpo começou a brilhar. Ninguém entendia o que estava acontecendo, principalmente ela. Sue continuava imóvel. Seu corpo parecia ser um prisma, encadeando todas as cores do arco-íris. A áurea que estava ao seu redor iluminava todo o refeitório.

— Faça alguma coisa — falei com Gregório, mas ele estava de queixo caído vendo a cena. Imaginei que ele também não soubesse o que estava acontecendo.

— Não posso — disse ele, sem tirar os olhos da Sue. Sua voz estava calma, como se já tivesse visto isso dezenas de vezes. — Não percebe? Ela está sendo Clamada.

— Clamada? Como? Ela pode fazer isso? — Olhando a Sue, ela não tinha mais aquela expressão de medo ou confusão sobre o que estava acontecendo, era como se ela soubesse exatamente o que aquele momento significava.

Gregório não falou mais nada.

E de repente, assim como começou, a luz que emanava de Sue se extinguiu. O refeitório voltou a ser iluminado pela luz ambiente. Todos, inclusive eu, tentavam compreender o que tinha acontecido.

— O que aconteceu? — ela perguntou. A garota não parecia nada de diferente aparentemente, mas eu conseguia sentir que algo tinha mudado nela, embora não soubesse exatamente o quê.

— Clamada! — exclamou Gregório como se fosse a coisa mais óbvia que alguém poderia dizer naquele momento. — Saúdam Susan McMenning, filha de Aezirel. Deusa da Luz. Feitora do arco-íris. Senhora da perseverança. Sábia entre os deuses.


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