Cassis (Série Alestia I) escrita por Jane Viesseli


Capítulo 31
O Embate




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/783798/chapter/31

Outro grito aflito sacudiu as cordas vocais do rei, enquanto percorria velozmente o contorno da Cidadela e de seu castelo em busca de qualquer mísero rastro da passagem do rebelde e de sua rainha. Ele já se encontrava do lado oeste da cidade, onde uma pequena floresta protegia os seus muros, quando seus olhos desorientados se voltaram para o céu e para a chuva como se esperassem por um milagre, sendo finalmente capazes avistar a pista que tanto ansiava encontrar.

Os galhos quebrados de algumas árvores denunciavam o trajeto percorrido pelo rebelde, que ousou abandonar o castelo usando a floresta como esconderijo e saltou de galho em galho, em direção ao norte, onde provavelmente deveria ter deixado algumas pegadas. Porém, apesar do plano bem arquitetado, Tibérius não cogitou que o impacto de seu corpo, adicionado ao peso de sua refém, deixaria marcas nos galhos que lhe serviram de apoio. E agora, com uma indicação da direção que precisava seguir, Cassis pôde finalmente agitar o vitae dentro de seu corpo em direção as pernas, dando tudo de si em sua corrida para alcançar a única coisa importante que possuía naquelas terras.

Bem longe dali, já localizado nas colinas do norte, o rebelde finalmente para, colocando a indefesa e encharcada humana sobre o chão enlameado com um pequeno, mas doído, impacto, depois de um longo trajeto de fuga carregando-a no colo. Seu olhar ainda era penetrante, furioso, como se cogitasse qual era a forma mais lenta e dolorosa de matá-la.

Estendendo um dos braços para trás da cabeça, o vampiro desembainha uma de suas espadas lentamente, fazendo os olhos da mortal se arregalarem de medo e seu rosto se contorcer em lamento. Suas lágrimas se camuflavam as gotas de chuva, porém, mesmo que pudessem ser vistas, não comoveriam o monstro que era um nítido e declarado inimigo do clã vampiro, de Cassis e agora, dela própria.

― Você – chama finalmente. – Sabe onde estamos?

― Não – responde somente, sentindo o bebê paralisar em seu ventre ao mesmo tempo em que o frio a fazia tremer novamente.

― Esta é a colina onde minha criança da noite queria erguer o seu próprio castelo – explica com rancor, os olhos se estreitando enquanto falava. – Meus assuntos com o seu rei eram de vampiro para vampiro, o método mais fácil para se resolver desavenças, no entanto, ele preferiu fazer pelo modo mais difícil e a envolveu em nossas negociações. Merryn tinha pouco tempo de não-vida, era como uma criança ainda, a minha criança da noite! Ela era minha companheira, era tudo o que eu tinha e o seu vampiro a tirou de mim. – rosna, apontando a espada para a rainha e parecendo ficar ainda mais furioso ao recordar a perda da vampira, enquanto ela ainda permanecia viva. – Agora, eu tirarei tudo o que ele mais ama.

― Não, por favor, eu não lhe fiz nada! – Se aflige.

― Porém, ele fez. Ele a tocou. Ele a sangrou. E depois a matou – cita, pausadamente –, transformou sua pele imaculada num cadáver e agora vou aplicar ao rei a mesma dor que ele lançou sobre mim! Matarei você e este fétido bebê humano com um único golpe de espada, e construirei o castelo da minha Merryn a partir de seus ossos e da carcaça dessa criança imunda!

O rebelde avança vagarosamente em direção a Sara, deliciando-se com a patética donzela que rastejava para trás, tentando abrir distância entre eles. Todas as precauções haviam sido tomadas para aquele sequestro: a chuva e o vento dissiparam seu cheiro, os trovões camuflaram os gritos até que estivessem longe o bastante e as árvores que beiravam a Cidadela evitaram que qualquer pegada fosse feita na lama.

Cassis jamais a encontraria a tempo e, diante disso, o vampiro optou por prolongar o sofrimento de Sara, apenas para que o gosto da vingança fosse mais doce em seu paladar. A morte era tão certa para a rainha quanto a chuva e o frio que a acertavam naquele momento, e, por isso, ela não deixou de temer pelo seu pequeno filho, que talvez nunca viesse a ver aquele mundo.

― Não há como fugir – diz seriamente, apesar de seu sorriso sarcástico denunciar que já dava a vitória como certa –, em nada você se sobressai a mim, implore e humilhe-se pela sua vida enquanto ainda existe ar em seus pulmões, majestade.

Sara ainda rastejava, de costas, com o máximo de velocidade que seus braços e pernas lhe permitiam ter, quando sentiu uma enorme pedra bloquear seu caminho e amparar suas costas. Não era como se pudesse olhar para trás e simplesmente desviar daquele obstáculo, não quando a lâmina afiada de uma espada estava há apenas alguns passos de distância, prestes a fatiá-la.

― Não, por favor – implora, seguindo fielmente o conselho do vampiro antes que lhe faltassem forças para tentar. – Faça o que quiser comigo, mas permita que meu bebê sobreviva, por favor!

― Ridículo – rebate, diminuindo a distância entre eles –, não deixarei nenhuma razão de alegria para aquele verme maldito. Ninguém será poupado.

― Não! – grita a rainha, ao sentir a espada do rebelde tocar-lhe a barriga, um pouco acima do umbigo. – Poupe-o!

Sara envolve a barriga com os braços, mesmo sabendo que aquilo não seria o suficiente para pará-lo ou impedi-lo. Sua respiração estava acelerada, uma estranha dor começava a se apoderar de seus membros, devido ao esforço, e, quando Tibérius aplicou uma leve pressão em sua espada, sobre o ventre, a rainha viu seu mundo sucumbir.

― Deixe-o viver, eu lhe imploro. Por favor, não mate o meu bebê… Cassis! – grita a plenos pulmões, assim que o rei entrou em seu campo de visão, a alguns metros atrás de seu inimigo.

Desembainhando sua espada e ainda sentindo a fúria no controle de seu corpo, Cassis avança contra Tibérius com ainda mais força do que quando investiu contra Merryn. Dando-lhe tempo apenas de levantar sua espada e bloquear o golpe que pretendia lhe cortar a cabeça.

― Como pôde nos encontrar? – questiona o rebelde, esquivando-se e se afastando do casal, chocado demais com a repentina aparição do rei. – Não havia rastros.

A falta de rastros, no início, havia sido um fator bastante desagradável para Cassis, entretanto, quando encontrou o enigma dos galhos partidos e o desvendou, pôde finalmente avançar em direção ao norte, onde, como esperava desde o início, encontrou pegadas nos locais menos afetados pela chuva. Depois disso, sobrou-lhe apenas a tarefa de chegar a tempo para salvar sua rainha.

― Não interessa como, o importante é que os encontrei – cospe Cassis furioso, posicionando-se defensivamente entre Sara e Tibérius.

O rei não conhecia a forma de lutar do rebelde, o tipo de técnica que utilizava em batalha ou que disciplinas dominava. Até certo ponto ele buscava manter sua confiança firme em suas próprias habilidades, todavia, uma pequena ruga de preocupação se formou entre suas sobrancelhas ao ver Tibérius estender o braço livre em direção às costas e empunhar sua segunda espada.

Sem hesitar e sem que houvesse tempo para o rebelde se preparar, Cassis avançou, evitando assim que o inimigo fizesse a primeira investida. O rei era um ótimo guerreiro e sabia disso, mas descobriu que o oponente era tão rápido quanto ele quando novamente bloqueou o seu ataque e desviou o caminho de sua espada, dando ali início a uma intensa luta.

Apesar do que a maioria dos humanos costumava pensar, os vampiros não resolviam suas desavenças apenas com seus caninos. Se já existiam ferramentas capazes de ajudá-los a vencer batalhas, é claro que eles também fariam uso delas, e, diante disso, Sara pôde apenas ouvir o som forte das lâminas se chocando, sem trégua, ao mesmo tempo em que forçava a vista para enxergar algo além de escuridão e borrões, numa tentativa frustrada de ver quem estava ganhando.

Uma pausa forçada se instalou no combate, pois Cassis havia sido jogado a alguns metros de distância, para mais perto da rainha, que só o reconheceu devido à altura que já estava bastante habituada. Seu pouso fora perfeito, completamente em pé, entretanto, suas vestes sujas e rasgadas o traziam a sensação de que o duelo estava sendo mais difícil do que o esperado.

― Você consegue – sussurra ela, na esperança de que isso pudesse animá-lo e demonstrar que ainda o amava. Contudo, apesar de ouvi-la, o rei já podia sentir os músculos se tornando mais fracos conforme o vitae ia diminuindo em seu interior, já que o estava usando intensamente desde que partiu do castelo.

A chuva havia diminuído consideravelmente naquele ponto da batalha e apesar de a escuridão ainda impedir a visão de Sara, ela conseguia ouvir a voz de Tibérius, que, aproximando-se alguns passos e lambendo o vitae que manchava sua lâmina, pareceu bastante irritado com o péssimo desempenho do grande Sanguinário em batalha:

― Por que está se contendo? Onde está Cassis, o Sanguinário? – briga. O rei se mantém calado, empertigando-se como se sua honra não tivesse sido colocada em xeque, pois não poderia dar o tipo de luta que ele esperava e nada do que dissesse resolveria a situação. – Se não pretende me enfrentar seriamente, não tarde minha vingança!

Tibérius avança contra Cassis parecendo ainda mais rápido do que antes, logo fazendo o rei se dar conta de que não era o inimigo que se tornava mais veloz, mas que ele próprio ficava mais lento. Seus reflexos tornavam-se mais comprometidos a cada segundo, e, sem conseguir acompanhar os movimentos de seu adversário, o rei sentiu-se impotente ao ter a espada arrancada de sua mão tão facilmente.

O rei pisca uma única vez, surpreso pela perda repentina de sua fiel companheira, percebendo, no segundo seguinte, que o rebelde havia desaparecido de sua frente.

― Cassis, cuidado! – grita Sara em alerta, apontando freneticamente para algo acima de sua cabeça.

Seus olhos acompanham a direção de seu dedo, para cima, encontrando o vulto do rebelde, caindo em sua direção com ambas às espadas erguidas em posição de ataque. “É rápido”, foi tudo o que conseguiu pensar antes das lâminas o acertarem nos ombros e cortarem suas roupas e pele até a região abdominal, em formato de “X”, fazendo o sangue esguichar de seu tórax.

Cassis sente seu corpo desabar com o impacto, inerte e com o mínimo sinal de vitae possível em suas veias, enquanto a coroa real caía de sua cabeça e rolava para uma direção desconhecida. O golpe fora veloz demais para seus reflexos já danificados e os rasgos em sua pele só puderam ser notados, quando lhe faltaram forças para se colocar novamente em pé. Ele geme, sabendo perfeitamente que a perda daquele precioso vitae lhe custaria o controle sobre seu predador.

― Não! – grita Sara, chocando-se grandemente ao ver, mesmo em forma de vulto, o corpo de seu rei estirado contra o chão.

Era difícil distinguir que tipo de sentimento a dominava naquele momento. Medo? Desespero? Perplexidade? Amor? Preocupação? Talvez a mistura de todos eles? Sara de fato não sabia discernir e apenas engatinhou para mais perto do vampiro, enquanto o rebelde estranhamente tomava distância, chorando compulsivamente ao tocá-lo e se dar conta da atrocidade de seu corpo retalhado.

Tibérius, que havia se afastado assim que seus pés tocaram o solo, sente uma dor lancinante percorrer suas pernas, fazendo-o vacilar. Aquela era de longe a sua técnica predileta, porém, sempre exigia muito de si para fazer os membros inferiores saltarem tão alto, obrigando-o a um curto período de recuperação todas as vezes que a utilizava. E, mesmo distante, o vampiro observou a aproximação da humana ao corpo ensanguentada do rei, o que lhe trouxe um ótimo sentimento de missão cumprida.

Cassis não respirava quando Sara se colocou ao seu lado. Pela primeira vez, ele havia desistido de fingir respirar a fim de poupar o pouquíssimo vitae em seu corpo, e só foi capaz de reconhecer a presença da rainha ali, quando seus olhos de coloração rósea a fitaram com melancolia.

As mãos de Sara estavam geladas pelo frio, mas, ainda assim, acariciaram os cabelos bagunçados e úmidos do vampiro, cujo corpo parecia dar pequenos espasmos como se a morte final tentasse levá-lo para sempre.

― Des-Desculpe – gagueja Cassis, desejando que sua voz não parecesse tão patética diante da mulher que tanto amava –, queria poder aquecer… – diz pausadamente, como se pronunciar cada palavra lhe custasse um esforço enorme. – Não consigo… Estou perdendo rápido… O vitae… Posso sentir o frenesi. Não consigo – engasga ele, como se estivesse se afogando no próprio sangue, apesar de não haver nada semelhante ali.

― Não diga isso, por favor. Nós vamos voltar para a Cidadela e entrar em nosso aposento real, juntos, como sempre fazemos.

As lágrimas escorrem pelo rosto feminino, caindo sobre o rosto do não-vivo e se perdendo em meio à umidade proporcionada pela chuva, que finalmente havia cessado. Ele podia sentir o gosto salgado de seu lamento e, por um instante, desejou poder fazer o mesmo, apenas para demostrar o quanto ele também se importava, o quanto estava com medo de deixá-la ali, sozinha e com o rebelde ainda não-vivo.

― Descul… Desculpe – recomeça, a voz tornando-se cada vez mais baixa.

― Por que está se desculpando?

― Por sempre brigar com você – sussurra lentamente, desta vez, sentindo o controle de sua própria voz se perder.

― Eu é que lhe peço desculpas. – Chora. – Isso é tudo culpa minha, me perdoe pelas coisas que lhe disse antes, por favor, me perdoe.

Cassis movimenta os lábios levemente, intentando dizer algo, mas não conseguindo. Seus caninos estavam visíveis em sua boca desde que fora ao chão, entretanto, ele não tinha forças para se alimentar e tampouco tivera tempo de repor o vitae de seu odre, desde a luta com Merryn. O tom róseo de seus olhos logo se avermelha, denunciando o frenesi, apesar de seu corpo estar debilitado demais para que seu predador conseguisse levantá-lo, e, a última coisa que o rei pode processar antes de sua consciência sumir, foi sua súbita vontade de levantar as mãos e enxugar as lágrimas de sua rainha, pois o pranto não combinava com seu belo rosto.

― Vamos, morda meu braço – oferece Sara de repente, com a mais absurda das ideias lhe passando pela cabeça naquele instante. – Recupere-se para salvar nosso bebê, não me importo de emprestar-lhe um pouco do meu vitae, contanto que sobreviva e derrote Tibérius.

Os olhos vermelhos de Cassis cintilam levemente, como se algo em seu interior concordasse com aquele trato, algo que já não era o seu lado racional, apesar de a rainha desconhecer este fato. E, impulsionada por seu novo plano, Sara pressiona o braço contra os lábios do vampiro, na altura de seu cotovelo, incitando-o a concretizar o acordo que seus olhos já haviam aceitado.

Com o restante de suas forças o predador força seus caninos contra a pele com cheiro de romãs, perfurando-a e fazendo Sara apertar os lábios para reprimir um gemido, à medida que o sangue deixava o seu corpo. Rapidamente as feridas do rei começam a se fechar, com a pele crescendo e cicatrizando como se uma poderosa magia o estivesse envolvendo, mostrando nitidamente o quanto o sangue humano era eficiente e poderoso para um não-vivo.

A rainha observava fascinada o horrendo ferimento se fechar e tornar-se uma pequena linha, sorrindo levemente antes de sentir a cabeça girar e a visão ficar turva. Cassis já poderia se considerar restabelecido àquela altura, todavia, já não era ele quem estava no controle e no que dependesse de seu predador, aquilo só pararia quando sua vítima secasse completamente.

― Cassis, pare! – pede a rainha, sentindo o corpo amolecer pouco a pouco, ao mesmo tempo em que se lembrava do triste e terrível fim que Violeta tivera por não ter sido ouvida pelo seu amado.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Bem vindos ao nosso Especial de Natal.
Hoje trouxe capítulo duplo de presente para vocês :D
Espero que gostem (づ。◕‿‿◕。)づ.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Cassis (Série Alestia I)" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.