Cassis (Série Alestia I) escrita por Jane Viesseli


Capítulo 32
Consequências do Frenesi




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Numa tentativa de se libertar daquela mordida letal, Sara puxa o braço do aperto do predador e tomba para o lado, enfraquecida, ao mesmo tempo em que o vampiro se levanta, acompanhando o movimento da humana com a intenção de continuar a se alimentar. O predador segura o braço da rainha com uma das mãos e sua barriga com a outra, encurralando sua presa e impedindo-a de fugir, como se ela tivesse forças para tentar.

Tibérius os observava incrédulo, pois não havia dado muita importância à conversa de ambos até aquele momento, até constatar que o Sanguinário tinha resistido ao seu melhor golpe e agora se alimentava de sua própria companheira.

― Você está… Me matando – murmura Sara, pausadamente e numa voz quase inaudível.

Ele podia ouvi-la, mas não conseguia parar, não queria parar.

Foi então que o inesperado aconteceu. Aquele que ainda estava para nascer se moveu sob a mão do predador, batendo contra sua palma e, por algum motivo, dando-lhe o impulso que precisava para se libertar de seu vício por vitae e finalmente parar.

O selvagem se coloca de pé com um salto, girando a cabeça e estralando pescoço e punhos, como se despertasse de um longo sono. Seus olhos vermelhos como a morte recaem sobre o corpo largado ao seu lado, sem forças e ofegante, e, por um milésimo de segundo, pareceram demonstrar reconhecimento à rainha, como se ele realmente recordasse do acordo que haviam feito minutos atrás.

O não-vivo tinha pegado seu precioso vitae emprestado, agora tinha que cumprir a sua parte do acordo. E, com apenas um movimento de cabeça, seus olhos se voltam para Tibérius, deixando que todo o seu rosto se enchesse de fúria e ferocidade, antes de finalmente partir para o massacre.

Já recuperado de seu último ataque, o rebelde também avança contra o inimigo decidindo matá-lo com um só golpe, mesmo que tivesse que colocar toda sua capacidade corporal na repetição de sua técnica preferida, para que ele não pudesse mais se levantar. Ele podia ver o Sanguinário finalmente no controle, tão feroz e perigoso quanto Cassis em sua razão, contudo, seu orgulho o fazia sorrir com sarcasmo, achando que sua força ainda estava acima da dele.

Tibérius avança contra o vampiro em frenesi, tão rápido quanto antes e repentinamente desaparece. O predador freia abruptamente, formando sulcos na lama e erguendo o olhar para onde já sabia que viria o ataque. Seus olhos pareceram se contrair em expectativa e um sorriso maldoso brotou em seus lábios, deixando ainda mais a mostra os seus perigosos caninos.

O Sanguinário salta atrás do rebelde, surpreendendo-o completamente ao segurar as espadas pelas lâminas, sem qualquer tipo de proteção em sua palma e sem demonstrar qualquer tipo de dor. Os pares de olhos estavam na mesma altura naquele momento e o rebelde não pode esconder sua surpresa diante do semblante ironicamente cruel do predador, o semblante de alguém que matava por diversão, o rosto de um sanguinário.

Os momentos em que ficaram fora do chão não passaram de meros segundos na verdade, tempo que o não-vivo em frenesi achou suficiente para inverter suas configurações e colocar o rebelde em posição de presa ferida. Primeiro veio a cabeçada, que inesperadamente acertou o nariz de Tibérius e o fez afrouxar o aperto das mãos sobre as espadas, e depois, veio a retirada de ambas as armas de sua posse.

Assim que retornam ao chão o Sanguinário avança novamente, girando as espadas no ar para ajeitar suas empunhaduras e fincando-as paralelamente nos ombros de seu inimigo. O rebelde tentou resistir ao impacto, forçando as pernas contra o solo para refrear a investida do vampiro, mas tudo o que conseguiu foi se manter de pé enquanto seu corpo era empurrado para longe de Sara, rumo à árvore mais próxima.

Com um baque surdo Tibérius foi encurralado contra a árvore, achando toda aquela batalha uma tremenda loucura. Um vampiro que não se prendia a dor, que arriscava sua própria não-vida apenas para virar o jogo e vencer, estava além do que qualquer não-vivo pertencente ou não a um clã poderia considerar aceitável. Ele podia ver a sede de sangue nos olhos do predador e já podia sentir que, diante de tão louca besta-fera, seria o seu vitae a ser derramado naquela madrugada.

― Eu o subestimei, Sanguinário – confessa Tibérius –, achei que era Cassis quem carregava o título, mas me enganei terrivelmente. É o predador!

O rei solta um murmúrio grave e estranho, uma horrenda mistura entre riso e grunhir, apenas para indicar que aquela luta havia chegado ao fim e que ele era o vencedor. Com um movimento rápido, o Sanguinário retira as espadas dos ombros do rebelde e deposita sobre o seu corpo dezenas de profundos cortes, retalhando toda a sua carne e tornando sua bela estrutura corporal irreconhecível.

Ao fim da investida, Tibérius podia sentir seu tórax e pernas desfiguradas pelo ataque brutal. Sua pele branca estava deformada e havia sangue por toda parte, por todo o seu corpo, escorrendo sem cerimônias em direção ao chão, e foi somente isso que saciou o predador: o rubro do vitae se espalhando e manchando suas próprias mãos.

Ele sorri satisfeito e com um movimento sincronizado crava ambas as espadas no coração do rebelde, inutilizando-o e o prendendo ao tronco da árvore, até que a última gota de vitae deixasse seu corpo e ele se encontrasse com Merryn na morte final.

Com o acordo devidamente cumprido por ambas as partes, o vampiro retorna para perto de Sara, apenas para lhe mostrar que já não lhe devia lealdade alguma e que o vitae emprestado fora devidamente utilizado. A humana respirava com dificuldade e seus olhos estavam assolados pelo medo da morte, contudo, o vampiro a olhava com indiferença, não demonstrando e não sentindo nenhum pingo de compaixão pelo estado da donzela, que aos olhos não passava de uma fonte de alimento.

“Ajude-me”, pede Sara com um movimentar mudo de lábios em direção ao contorno na escuridão, que reconhecia como sendo de Cassis, um pedido que não podia ser compreendido totalmente pela mente do Sanguinário que só agia por instintos. Ele torce a boca de repente, como se considerasse alguma coisa e como se aquela “coisa” não o agradasse, e, seguindo seu instinto de gratidão para com a humana que lhe salvara a não-vida, o predador a toma nos braços e corre em busca de alguém capaz de salvá-la.

Devido ao vitae humano lhe correndo nas veias, o vampiro sentia-se forte e livre, correndo sob o vento frio da madrugada em direção ao povoado de Alestia, sem considerar relevante o fato de a humana tremer em seus braços. O Sanguinário sabia que ali habitavam humanos e que eles poderiam cuidar de alguém de sua espécie, entretanto, sua mente não era capaz de processar coisas complexas como reinados ou responsabilidades que o seu outro eu havia assumido com aquelas pessoas.

Ele avista a Cidadela, aproximando-se de seus muros com velocidade e utilizando a parte menos iluminada de sua construção para adentrar a cidade, coincidentemente como Tibérius havia feito meses atrás. Nos portões e na praça principal jazia uma enorme quantidade de soldados, que vigiavam as ruas escuras e esperavam o retorno de seu rei, porém, reconhecendo a ameaça que os soldados e suas espadas representavam, o predador, com seus olhos brilhantes tingidos de vermelho, se moveu pelas sombras até encontrar um local seguro para depositar a humana como um animalzinho ferido.

Localizado no fim de uma rua perpendicular à praça principal e oculto pelo breu, o Sanguinário escolhe uma residência aleatoriamente, abrindo sua porta com um único chute e revelando o interior humilde da residência. Os moradores acordam sobressaltados, apanhando luminárias e vassouras, antes de verificar quem os invadia, chocando-se grandemente ao encontrar o vampiro coberto de sangue à sua porta, com a rainha parecendo quase morta nos braços.

― Santo Deus! – murmura o único homem da casa, que colocava sua mulher cuidadosamente atrás de seu corpo, sem desviar os olhos do não-vivo ensanguentado, que colocava o corpo da rainha no chão de sua pequena sala.

Sara pôde sentir seu corpo ser abandonado no chão, como uma simples mercadoria que estava sendo entregue aos donos. Seus lábios estavam roxos, sua visão turva e seu corpo ainda tremia de frio quando, demonstrando total indiferença quanto a sua pessoa, o predador se levantou para partir.

Reunindo suas últimas forças, mesmo sentindo os braços moles e descoordenados, a rainha toca-lhe a perna num pedido desesperado para que ficasse ao seu lado. Ela queria fazer mais do que simplesmente tocar, queria agarrar-lhe fortemente para que não pudesse partir, mas faltavam-lhe forças e, àquela altura, nada mais podia ser sentido a não ser a dor em seu baixo-ventre, o que a preocupava e a amedrontava ainda mais.

O predador a observa novamente, deitando levemente a cabeça para o lado ao se dar conta de que ela estava morrendo e que aquele seria o momento ideal para cumprir seu desejo mais egoísta. E foi com a mente voltada para este único desejo que o vampiro pronunciou seus caninos e rasgou a pele de sua própria palma, agachando-se novamente e tampando a boca de Sara com a mão ferida, obrigando-a a receber e engolir o vitae que dali vertia.

A família apenas assistia, horrorizada, enquanto Sara engasgava com a falta de ar e o líquido que forçadamente lhe descia garganta abaixo, e somente quando o Sanguinário deu-se por satisfeito, foi que ele a soltou, partindo logo em seguida, pois agora que estava finalmente livre do verdadeiro Cassis, a noite era como uma criança ansiosa convidando-o para brincar.

Com agilidade ele escala a residência e sob o manto noturno passeia sobre as casas da Cidadela, rumando para o mesmo ponto da muralha em que havia invadido. Seu movimento sobre os telhados não passou despercebido pelos soldados, que soaram o chofar de batalha em busca de reforços e lançaram flechas em sua direção, não se dando conta de que atacavam o seu próprio rei.

Na casa, a singela família pareceu voltar a si quando o retumbar do chofar cortou o silêncio noturno, indicando que os soldados o haviam localizado e iniciado uma caçada. O anfitrião se aproxima do corpo de Sara, aproximando a lamparina de seus membros e enxergando toda a catástrofe cometida ali:

― Ela foi mordida – diz rapidamente, iluminando o rosto de sua majestade e o analisando em busca de sinais de vida.

― Ele mordeu a rainha, mamãe – desespera-se a mais nova da família, que possuía apenas sete anos de idade. – Ele vai matar todo mundo! – Chora, agarrando o vestido de dormir da mãe.

― A rainha ainda está viva! — alerta o homem, verificando que Sara movia levemente os olhos, como se estivesse desorientada. – Dina, ajude-me, temos de levá-la à Nicolas, o médico – explica, chamando pela filha mais velha, que, relutante, deixa seu esconderijo atrás de sua mãe.

― Mas pai… – choraminga, sentindo o corpo tremer diante daquela situação e receando que o rei vampiro ainda estivesse do lado de fora, à espreita.

― Vamos, filha! – ordena com um pouco mais de força. – Estarei logo atrás de você. Corra à casa de Nicolas e bata a sua porta até se fazer ouvir, entendeu?

― E se ele estiver lá fora? – chora novamente, lembrando-se que sua querida avó havia sido assassinada por um vampiro numa noite como aquela.

― Por isso temos que ser rápidos. Perdoe-me a maneira imprópria, majestade – pede ele, enquanto suas mãos calejadas pelo artesanato a içavam do chão e sua mulher lançava uma humilde manta sobre seu corpo, a fim de aquecê-la.

― Você é rápida, Dina, sempre foi a mais rápida de todas as crianças – explica a mãe, exasperada. – Corra o mais rápido que puder e ninguém a pegará, faça isso por sua rainha!

A menina assente por fim, segurando a barra de sua camisola e disparando porta afora, ainda descalça, pelo bem de sua rainha. As pedras espalhadas pelo caminho lhe machucavam, fazendo suas passadas vacilarem, e havia lama e poças por toda parte, mas, diante do medo de ser apanhada por seu rei, ela não ousou parar.

Pouco se enxergava naquela escuridão, as tochas que deveriam estar acesas no meio do trajeto se apagaram com a tempestade, e, mesmo com a chuva tendo cessado há quase uma hora, o céu ainda permanecia fechado e a lua era incapaz de iluminar o caminho.

Dina segue pelo caminho que sabia ser o certo, virando novamente à direita e pronta para pegar a primeira entrada à esquerda. Quem a observasse naquele momento acharia loucura de sua parte sair à noite e correr enlouquecidamente pelas vielas da Cidadela, mesmo que fosse para salvar uma pessoa, no entanto, a adolescente contemplava aquela mulher ferida, admirava sua beleza e seu fino gosto para comprar coisas. Sempre que podia tentava lhe cumprimentar como uma verdadeira dama faria, segurando o vestido e a reverenciando, e, para sua terna felicidade, Sara sempre lhe correspondia com um cumprimento ainda mais elegante.

Com isso, quando sua admiração por ela foi colocada em jogo, junto ao argumento de que somente ela poderia cumprir aquela tarefa por ser a mais veloz, Dina não pode se conter e simplesmente lançou-se porta afora. A escuridão a assustava, o perigo parecia rondá-la a cada passo e, quando finalmente chegou à casa de Nicolas e Margarida, seu corpo já estava suado e coberto de sujeira.

― Senhor Nicolas – chama ela assim que encontra a porta rodeada de vasos de ervas medicinais, batendo na porta de madeira com o máximo de força que suas pequenas mãos conseguiam lhe proporcionar. – Senhor Nicolas, acorde, temos uma emergência! Por favor, acorde!

O interior da casa ainda estava silencioso. Dina olha de um lado a outro da rua escura, com medo que algum vampiro ou até mesmo o seu próprio rei aparecesse para machucá-la. Seus olhos captam um vulto em meio à escuridão, um simples cachorro de porte grande atraído pelo barulho, mas que, naquele breu, se assemelhou a um não-vivo agachado, espreitando e enchendo-a de pavor.

― Abra a porta, abra a porta, por favor – grita desesperada, socando a porta com ambas as mãos, sem pausa, sentindo o alívio lavar sua alma ao vê-la se abrir bruscamente e as mãos suaves de Margarida a segurarem pelos ombros.


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Notas finais do capítulo

Bem vindos ao nosso Especial de Natal.
Hoje trouxe capítulo duplo de presente para vocês :D
Espero que gostem (づ。◕‿‿◕。)づ.



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