WSU's Padre escrita por Lex Luthor, WSU


Capítulo 2
I




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/783732/chapter/2

Cidade do Corsário, 2015

 

Acariciei seu rosto, observando cada detalhe de sua face. Seu nariz afilado contrastava com os olhos beirando os de um oriental. Toquei a sua barba e passei os dedos por entre seus lábios espessos e vermelhos. Foi o bastante para que ele me segurasse firme e beijasse.

No entanto, no transe de nosso ninho de amor, fomos despertados pelo alarme do celular. Soltou-se de meus braços e olhou para o teto, suspirando de insatisfação. Já eram quinze minutos para as três da madrugada.

— Até quando eu não vou acordar ao seu lado? — Calei-me com a pergunta. — Por que não fala logo que não quer mais ficar do lado dele?

Amigos, não quero que me julguem, apenas que entendam que na minha posição estariam fazendo o mesmo. O que aconteceria caso seu, ou sua companheira sumisse durante todos os dias e aparecesse apenas às quatro da manhã e não tirasse um segundo de prosa contigo?

— Você o vê chegando, Tuller?

Tuller Almeida tem sido meu companheiro desde então. Compreensivo, atencioso e de um companheirismo invejável, o qual meu marido Funes nunca teve. Ainda mais agora, que parece estar louco.

 — É claro! — confirmou, se levantou abusado da cama. — E quem não veria aquela criatura?

— Ainda bem — falei depois de um logo suspiro. — Achei que estivesse ficando louca.

Ele vestiu sua calça já colocando os sapatos nos pés e apanhou sua blusa ao pé da cama. Me olhou como se visse um inimigo e apontou o indicador em minha direção.

— Resolva essa situação, já são três meses assim — reclamou insatisfeito. — Da próxima vez, eu espero ele chegar e conto eu mesmo.

Engoli seco ouvindo aquilo. Como sei que de homem para homem as coisas ficam delicadas, decidi me pronunciar.

— Tudo bem, não precisa se preocupar.

Mais calmo, o vi se aproximar e segurar meu pescoço com as duas mãos. Carinhosamente Tuller beijou minha testa antes de ir.

Ainda sinto que não convenci de que não tinha outra opção que não fosse a traição. Muito bem, isso é uma questão de alguns parágrafos, meus amigos.

Depois que o meu amante foi embora, foram apenas alguns minutos depois para que, ainda nua, eu pudesse ver, da janela do quarto no primeiro andar, meu marido chegar. Como sempre, pontualmente às quatro da madrugada e olhar para mim com aqueles olhos brilhando no escuro. Logo, ia bater ponto em casa e sumir de novo pela manhã.

Vesti meu baby doll de seda vermelho e desci as escadas que davam para a sala, o primeiro cômodo da casa. Logo avistei a sua penumbra parada em frente à porta da rua, que ele a bateu bruscamente.

— Funes? — chamei, ligando as luzes.

Sem dar resposta alguma, ele se sentou no banco do nosso rústico barzinho de canto de sala marrom e preparou uma dose gin.

Usava um terno velho preto com uma blusa branca e uma gravata brega azul, que já os tinha por três anos. Sempre insistia que ele os doasse, rasgasse, tocasse fogo... que desse um sumiço, junto com sua barba falha! 

— Quer me contar como foi seu dia? — perguntei, me chegando de pé ao seu lado.

Percebi que ele me olhou rapidamente de canto, mas ignorou. Apenas jogou a bebida goela. Arregalou os olhos e suspirou, como se algo o perseguisse. Em seguida, arrumou o vasto topete castanho que tinha entre as laterais raspadas do cabelo, mirando o próprio reflexo no espelho do barzinho. Levantou-se desesperado, deixando o copo cair se partindo em mil.

Em passos apressados, meu marido subiu as escadas e eu tratei de segui-lo. Ao invés de entrar no nosso quarto, que propositalmente deixei uma cueca de Tuller e preservativos usados espalhados, ele entrou no quarto das visitas, que ficava ao lado. Não era a primeira e nem a última vez que ele fazia isso e sempre passava a chave na porta, desta não foi diferente.

— Funes! — Perdendo a paciência, espanquei a porta.

Todo aquele barulho com certeza estava atrapalhando o sono dos poucos vizinhos, que tinham um breve momento de paz até as obras do futuro presídio feminino começarem logo cedo. Senti que aquilo não ia dar em nada. Para o meu desespero, parei e fiquei refletindo no silêncio dele.

Eu juro, juro que tentei segurar o choro. Mas já se completava um mês de nossa última conversa e eu precisava ter certeza de não estar enlouquecendo.

— Eu ainda te amo — falei entre os soluços, descendo a mão pela porta até ficar de joelhos.

Quantas vezes eu tinha feito a mesma coisa? Eu já tinha perdido as contas. O fato era que aquele comportamento atípico de meu marido me trouxe a necessidade de ter alguém por perto para me proteger.

Desci as escadas, peguei uma pá e juntei os cacos no canto da parede. Cansada, me sentei no banco de madeira do bar. Era hora de afogar minhas mágoas com um pouco de álcool. Quando me recompus, aproveitei a garrafa de gin que ele havia deixado destampada.

Aquilo era real. Eu o via. Tuller o via. O porteiro o via. Como explicar aquele comportamento então?

Ao virar a primeira dose, pensei no quanto eu vinha sendo forte por enfrentar aquela situação durante trinta dias. Decidi me contemplar no espelho e jurar para mim mesma de que daquele dia não passaria.

Porém, o reflexo ainda era o dele como no último momento em que esteve ali, mas sorrindo sádico me devorando com aqueles olhos arregalados.

 

 

 

Aeroporto Internacional de Johanesburgo

África do Sul, 2002

 

Wellington entrou às pressas no banheiro. A movimentação era pouca no local. Averiguou se havia alguém por perto, mas estava sozinho. De terno preto, carregava uma maleta. Retirou dela um garfo, entortou as pontas com os dedos e, com elas, trancou a fechadura da porta branca.

Tirou um lenço e o amarrou no punho direito. Foi até a pia de mármore e olhou para o espelho. Ligou a torneira e jogou um punhado d’água no rosto. Olhou novamente para o seu reflexo, desta vez com o rosto molhado.

Socou o espelho, que rachou. Mais um golpe e um pedaço de vidro caiu na pia. Era o bastante. Pegou o caco, tirou o pano do punho e abriu um corte. Uma corrente de sangue escorreu de sua mão direita.

Aproveitou o sangramento, desenhou um círculo de um metro de raio no piso de cerâmica branca. Enrolou novamente o punho para estancar o sangue.

Sentou-se no centro do desenho e fechou os olhos.

Satana eleison — disse Wellington, ao fechar os olhos. — Lux fero eleison — continuou.  

O sangue do círculo fervia, uma fumaça branca começava a sair do líquido vermelho.

Sancto Baal, ora pro nobis. — Abriu os olhos bruscamente. — Sancta Lilith, ora pro nobis. — Seus globos oculares estavam completamente brancos. — Sancto Beleth, ora pro nobis. — As palavras saíam com dificuldade, estava ofegante. — Sancta Marilith, ora pro nobis.

 As luzes das lâmpadas brancas do banheiro começavam a falhar continuamente. O sangue fervia, o círculo vermelho dá lugar a uma luz intensa de tons laranja amarelados.

Sancto Mephistopheles, ora pro nobis — concluiu.

A fumaça que cobria o local, de repente, começou a formar um corpo. Era um homem muito bem vestido de terno negro, coberto de fuligem e pés descalços como se tivesse andando em lama. Seus cabelos despenteados não combinavam com a sofisticação do bigode e barba finos, lembravam mais um caricato personagem de desenho animado.

A luz no banheiro não tinha a mesma intensidade, era fraca e em tons preto-azulados. A temperatura caíra tanto que Wellington podia ver fios de fumaça saindo de sua boca ao respirar. Inexplicavelmente sua mão cortada não doía mais.

Ao ver a figura, o padre se ajoelhou e curvou a cabeça em reverência. Estar de joelhos ante um demônio era o fundo do poço para ele.

— Ora, ora — disse, sorrindo. — Não é todo dia que vemos um membro do clero invocando a Mefistófeles e — coçou a barbicha —; eu adoro quando isso acontece.

Wellington levantou a cabeça e Mefisto lhe estendeu a mão cheia de anéis, que o padre tratou de beijar.

Caminhando com as mãos para trás, se surpreendeu ao se contemplar no espelho quebrado.

 — Cruzes! — se espantou. — Estou parecendo o Dick Vigarista com esses bigodes! — Sorriu para o espelho. — Lucy não gostaria nada disso.

Mefisto passou as mãos sobre os pelos do rosto, que caíram um a um na pia do banheiro.

— Lucy Iordache? — indagou o vigário.

Contemplando o seu novo visual, o demônio se agradou.

— Bem melhor! — disparou um autoelogio. — A própria e agridoce Drácula. Não acredita que a ficção imita a vida, padre?

O demônio se voltou novamente para o homem com a mão cortada.

— É por isso que é interessante ver que Dr. Johan Fausto, deixou seguidores até hoje, a Ordem dos Faustinos não é ficção — observou Mefisto.

Inconformado, Wellington balançou a cabeça negativamente.

— Um bando de palermas achando que podem evitar conflitos com os demônios. Ainda acreditam que trazer o filho de Lúcifer para a Terra antecipará o Apocalipse? — indagou, irônico. — Não era isto que queria Fausto? Pois já não o conseguiram?

— Fausto foi um instrumento, que despertou o anseio pelo conhecimento — rebateu o demônio. — Em dado momento, seus sucessores desviaram a rota.

Em seguida, apontou o dedo em direção a Wellington.

— Você é um faustino como muitos outros clérigos — disse sorrindo, ameaçador —, são homens de pouca fé em seu Deus mudo.

Wellington refletiu nas palavras de Mefisto, mas era a exata causa dele ter o negociador em sua frente.

— O demônio está instalado no coração da igreja — concordou o padre.

Mefisto se escorou na pia de mármore. Mexeu no bolso do terno e pegou um charuto cubano no bolso.

— Nossa! — surpreendeu-se com o achado. — Nem me lembrava desse! — Acendeu o charuto com uma flama que emergiu de seu indicador direito. — Esse foi presente de meu pai Moloch — disse Mefisto sorrindo —, roubou do bolso do próprio Fidel! — Soltou uma risada com a história. — Dá pra acreditar numa figura dessas?

— Não, ele é o pai da mentira — respondeu o exorcista.

Mefisto soltou uma risada ainda maior.

— Essa foi boa, jovem padre! — Aplaudiu a observação, sorrindo com o charuto nos dentes. — No entanto — tirou o charuto da boca —, mentir é coisa humana. Sou conhecido pela honra aos meus compromissos e o próximo passo desta conversa é termos um.

Era a hora de pôr as cartas na mesa.

— O meu erro custou duas vidas, Mefisto — disse, se sentindo humilhado. — Pois já não quero eu mais ver tua cara asquerosa e não quero ligação alguma com a puta da Ordem dos Faustinos, tampouco a Igreja Romana. Cona da mãe deles.

O demônio enegreceu os olhos e deu um sorriso malicioso. Avançou em direção ao padre chutando o seu peito, o que o fez cair de costas no piso do banheiro.

— Opa, opa, opa! — Mefisto falou num tom repreensivo, se aproximando como uma cobra rasteira. Agachou-se com o joelho direito no pescoço do padre e soltou a fumaça do charuto em seu rosto. — A culpa das mortes é excepcionalmente sua, encare isso.

— Eu estava fraco — retrucou arquejando —, justamente por estar buscando a paz em contato com espíritos imundos como a ti!

Gargalhou ameaçador.

— Que insolente! — Segurou o rosto do padre, fincando as enormes unhas negras nas bochechas. — Você cospe no prato que come, Wellington e isso é muita desonra. — Um filete de sangue desce da região pressionada pelo dedo médio. — A igreja foi entidade que mais derramou sangue na história, o que esperar de um membro desta?

Uma cusparada atingiu o rosto do clérigo e o demônio levantou-se.

— Mefisto — disse sério, ao se erguer —, quero que da próxima vez que tirar uma vida ou for passivo a isto, me leve ao Inferno como seu escravo.

O demônio olhou fixamente para o padre.

— Muito justo. O que ganha com isso? — indagou Mefisto.

Wellington tinha flashes das mortes de uma semana atrás na mente.

— Quem sabe a minha honra e dignidade de volta — respondeu o clérigo.

Um pergaminho surgiu na mão de Mefisto.

— Abra e leia as entrelinhas — pediu o demônio.

Assim o padre o fez, viu que eram exatamente as suas palavras transcritas no papiro.

— Está tudo correto — disse o padre.

Como um mágico, Mefisto tirou uma pluma detrás da orelha de Wellington.

— Assine em baixo. — Apontou para a mão cortada de seu contratante. — Com seu sangue, por favor.

Wellington embebeu a ponta da pluma de vermelhou e assinou.

“Wellington Agostino”

 

— Foi um prazer negociar com você, padre — disse Mefisto esfumaçando o ambiente com seu charuto.

A fumaça se tornou intensa como num incêndio e cobriu todo o corpo do demônio.

— Quando chegar no Brasil, tente perder esse seu sotaque ridículo — advertiu o ser diabólico. — A não ser que seu destino seja o sul.

No instante em que tudo se tornou visível, o negociador não estava mais lá.

Wellington pegou suas coisas e saiu do banheiro na certeza de que estar prostrado diante daquele demônio teria sido a sua maior humilhação.

Estava disposto a um recomeço.

Passageiros com destino a São Paulo, favor se dirigirem ao portão de embarque — alertou, em inglês, a suave voz feminina dos auto-falantes do aeroporto.

Tirou do bolso um passaporte.

“Wellington Chagas”

Decerto, não se chamava assim. Havia falsificado um passaporte para que pudesse viajar sem temer os mandatos de prisão. Dentro havia uma passagem rumo ao Brasil.

Seguiu o seu destino.

 

 

 

Cidade do Corsário, 2015

 

O Chevette 1970 branco e enferrujado chegava em frente à escola católica.

— Papai! — gritou o pequeno garotinho. — Que demora! — reclamou.

Wellington abriu a porta do carro e o menino, desajeitado, entrou.

— Não aguento mais essa merda — murmurou —, a freira Maria é um saco.

— Lineker — chamou o pai, num tom de advertência —, o que eu falei a você?

— Sei, sei — disse o garoto abanando a mão. — Disciplina e “coisa e tal”.

Sorriu com o descaso do filho de apenas oito anos.

— Aonde quer comer hoje? — perguntou Wellington.

Lineker sorriu, parecia uma ironia aquela pergunta incomum.

— Pizza Hut — respondeu caçoando.

— Menos — rebateu o pai.

— Leite pra mim e Pitú pra tu no “Eskina 10”?

Wellington engatou a chave.

— Você é o melhor pai branco que alguém poderia ter! — disse o garoto, abraçando firme o pai pelo pescoço.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "WSU's Padre" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.