WSU's Padre escrita por Lex Luthor, WSU


Capítulo 1
Prólogo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/783732/chapter/1

Moçambique, 2002

 

Uma típica e pacata aldeia isolada da civilização. Dezenas de pequenas cabanas com o teto de palha e paredes de madeira embrenhadas no meio da mata com chão seco de barro. As portas e janelas eram lençóis e tecidos improvisados.

O padre estava de joelhos e rezava o Mea Culpa (Confiteor) com o terço na mão. O “amen” era o sinal verde, que se abria para ele se levantar. Bateu a batina para limpar da terra do chão em seus joelhos. Pôs a estola roxa envolta do pescoço e beijou a medalha de São Bento, que ostentava no peito.

Pegou o “Rito de Exorcismo” com a mão trêmula, suspirou e deixou o quarto. Ao passar pela porta, saiu da cabana onde estava e logo sentiu o torpor gelado na barriga.

Um rapaz se aproximou do jovem padre. Devia ter entre os quinze e dezoito anos. Negro, de dentes alvos e olhos sofridos. Não tinha sapatos nos pés, mas vestia um short vermelho e blazer preto executivo.

— Tem certeza de que queres mesmo fazer isto, padre? — indagou o rapaz apreensivo.

O clérigo balançou a cabeça positivamente com uma expressão séria no rosto, enquanto continuava andando.

— É um procedimento desconhecido por Roma — frisou o rapaz.

O exorcista sorriu, deixando o nervosismo para trás.

— E tu, hein, Vito? — indagou com um sorriso no rosto. — Tu estás pronto também, gajo?

Wellington estava a desconversar, sabia que era de grande risco tentar algo diferente do rito romano naquela ocasião.

— És louco? — Bateu no peito sorrindo. — Aqui está um assistente de Hellblazer.

Continuaram a andar e de longe podiam ouvir o som de um vinil, que fora trazido pelo padre. Ligado numa bateria solar, uma vez que não havia energia elétrica no local. O aparelho tocava o doce som da voz de Carla Bruni, dedilhando em seu violão Quelqu'un M'a Dit.

Estava ali numa obra missionária com a Igreja de Coimbra há três meses, que visava evangelizar e trazer escola para as crianças, dentre outros benefícios para aquela aldeia distante da civilização.

O padre Wellington entrou na cabana de onde vinha o som. Havia apenas um garoto, uma criança de cerca oito anos de idade amarrada numa cadeira. De olhos fechados parecia meditar na canção. Era relaxante ver alguém tão jovem apreciar música boa.

On me dit que nos vies ne valent pas grand chose
Elles passent en un instant comme fanent les roses
On me dit que le temps qui glisse est un salaud
Que de nos chagrins il s'en fait des manteaux

Pourtant quelqu'un m'a dit
Que tu m'aimais encore
C'est quelqu'un qui m'a dit que tu m'aimais encore
Serait ce possible alors

On dit que le destin se moque bien de nous
Qu'il ne nous donne rien et qu'il nous promet tout
Parait qu'le bonheur est à portée de main
Alors on tend la main et on se retrouve fou

 

Wellington entrou puxando o cabo que conectava o vinil à bateria solar.

O garoto pareceu despertar de um transe lentamente e mirou o exorcista, que se admirou com o semblante seu semblante. A boca seca e os olhos fundos o encarando fixamente talvez tenha sido o motivo do espanto.

De repente, os globos oculares do menino viraram e, como um cão selvagem, veio dele um rosnado feroz que ecoou pela cabana.

— O que está a ocorrer com este miúdo, padre? — perguntou o assistente, tremendo-se de nervoso.

A medalha no peito de Wellington produziu um forte brilho, como se avisasse que havia algo ali de sobrenatural.

— Tenho já uma boa ideia do que isto seja, meu rapaz — respondeu o vigário.

Se aproximaram do garoto. Vito abriu o Rito de Exorcismo na página marcada previamente e começou a ler as palavras em latim.

In nomine patris, et filii, et spiritus sanct — falou o padre apontado o crucifixo de ferro para o possuído, invocando a Santíssima Trindade. 

O garoto olhava para o jovem assistente, o intimidando.

— Tu é preto, Vito. — Olhou furioso para o outro, que segurava o livro. — Nunca vai ser do clero, isso é coisa de branco.

O padre, ouvindo aquelas palavras do jovem garoto, jogou um punhado de água benta. A pele do possuído parecia queimar e esfumaçar automaticamente, o fazendo soltar um rugido bestial em meio à dor.

— Ei, rapaz! — gritou o padre tentando chamar atenção do assustado e inerte menino. — A resposta! — exigiu.

Amen — respondeu Vito, continuando o exorcismo.

Wellington continuava o rito e o garoto acompanhava com a leitura.

— Pois bem, muito me parece que um padre é um padre em qualquer parte do mundo — disse o possuído, com uma grave voz instável. — Sempre andando ao lado de um miúdo.

Irritado, o exorcista apontou o dedo para a face do endiabrado e pegou uma caldeirinha numa mesa de madeira que era o altar pré-montado improvisado.

— Cala-te! — bradou. aspergindo água benta no possuído. — Não comeces com teu jogo, demônio!

O rosto da criança começa a secar mais, como se envelhecesse. A face ficava fina e desidratada. Porém, os braços e pernas inchavam fazendo com que ataduras que o amarravam na cadeira começassem a ceder e, aos poucos, partirem-se. Livre, ele saltou da cadeira e, num impulso sobrenatural, agarrou o pescoço do padre o derrubando no chão.

De repente, uma forte ventania adentrou o local e desconsertou Vito, que derrubou o livro em suas mãos. O vendaval cessou e o possuído levou o pé à garganta do exorcista, que arquejou tentando falar.

O endiabrado olhou para trás e sorriu para Vito, apenas um garoto assustado. O vinil, sem fonte de energia alguma para alimentá-lo, continuou a música exatamente de onde parara.

Pourtant quelqu'un m'a dit
Que tu m'aimais encore
C'est quelqu'un qui m'a dit que tu m'aimais encore
Serait ce possible alors

 

O garoto estalou todas as juntas ao ficar de quatro apoios com as costas viradas para o chão e, deste modo, correu em direção ao assistente. Apoiado nas duas mãos, se levantou e chutou o peito de Vito com os dois pés, fazendo-o ir ao teto de palha e cair.

O padre reagiu ao se levantar, mas o possuído apontou o indicador para a cadeira, que, seguindo o movimento de sua mão, voou até Wellington e o prendeu no chão. O endemoniado pegou o desacordado Vito e o ergueu com as duas mãos nas costas.

— Pare! — exclamou o exorcista tentando se desvencilhar da cadeira, que tinha uma força sobrenatural. — O Senhor meu Deus ordena que você solte este servo!

A criança soltou uma risada rouca e tenebrosa.

— O Senhor teu Deus escolheu bem mal — falou o garoto num tom irônico, levantando o joelho direito.

O possuído soltou Vito, que, em um violento choque, teve a coluna quebrada no joelho da criança endiabrada. O agressor riu copiosamente.

— Desgraçado! — gritou o vigário, enquanto uma lágrima brotou em seu olhar. — Vito, meu miúdo! — lamentou Wellington.

O menino andou lentamente acompanhando a música que era tocada no vinil.

Tu vois quelqu'un m'a dit
Que tu m'aimais encore, me l'a t'on vraiment dit
Que tu m'aimais encore, serais ce possible alors

 

Faceiro, se sentou na cadeira acima do exorcista. Com as costas do acento viradas para sua barriga, olhou para o rosto do desesperado padre e acompanhou canção:

On me dit que nos vies ne valent pas grand chose
Elles passent en un instant comme fanent les roses
On me dit que le temps qui glisse est un salaud
Que de nos tristesses il s'en fait des manteaux

 

Wellington puxou um tipo diferente de crucifixo de sua batina, era um reluzente e de pontas laminadas.

Pourtant quelqu'un m'a dit
Que tu m'aimais encore
C'est quelqu'un qui m'a dit que tu m'aimais encore
Serait ce possible alors

 

Num forte golpe com a ponta cortante, Wellington partiu o pé da cadeira de madeira, que cedendo, derrubou o possuído no chão. Isso lhe deu uma vantagem de fração segundos para reagir.

Ele se levantou e apoiou o peso no corpo do menino, pondo o crucifixo na testa dele. Sua medalha reluzia intensamente de tamanha exposição à presença do poderoso campo espiritual produzido pelo demônio.

Exorcizamus te, omnis immundus spiritus, omnis satanica potestas, omnis incursio infernalis adversarii, omnis legio... — disse furioso entredentes, quando foi interrompido pelo possuído tocando o seu rosto com ternura.

Ele acariciava o rosto do ofegante padre. Wellington segurou firme o crucifixo por entre os dedos, mirando a ponta da lâmina a criança.

— Padre? — chamou com uma voz chorosa.

Reconhecendo o chamado, arregalou os olhos com um nó na garganta.

— Vito? — perguntou, desnorteado.

Por favor, por favoooor... — Era um choro de desespero. — Como queima aqui! — disse o garoto, aos prantos. — Tua prece não foi o bastante e já não aguento mais tanta dor e sofrimento! Quantos anos se passaram?

— És um mentiroso!

— Molha a ponta da minha língua com água, tenho sede! — implorou, o menino.

Wellington chorava de raiva com a situação em que estava.

— Cala a boca! — exclamou, salivando, pelo descontrole emocional.

— Me tira do inferno, padre! — gritou se debatendo no chão, enquanto rangia os dentes. — Me tira daqui, Wellington!

A da criança saltou fazendo com que o exorcista caísse de cima dele próprio. Do chão, o clérigo pode ver as afiadas unhas negras do endemoniado crescerem e avançarem com um bote tal qual o de um animal selvagem em sua direção.

Porém, um alto grunhido de dor foi ouvido em toda aldeia. A lâmina do crucifixo na mão do padre atingira a barriga do garoto, em seu descuidado movimento de agressão.

O possuído finalmente se calou com o sangue escorrendo em sua boca, até finalmente cair desfalecido e o som do vinil também parar.

Wellington se ajoelhou chorando sobre o peito do garoto caído.

Dois corpos sem vida.

Dois olhos com lágrimas de culpa.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "WSU's Padre" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.