A Bela e a Fera - Livro 1 escrita por Monique Rabello, Kyrion


Capítulo 9
Capítulo 8: Descobertas - parte 1




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[P.O.V. Bela]

Cerca de um mês de aula já havia se passado. Ele dava deveres para fazer, até alguns exercícios para escrita e, aos poucos, fomos começando a ter um pouco mais de facilidade um com o outro. Já estava parando de contar com tanta precisão os dias que passavam e já não sabia ao certo o tempo que já estava ali... Mas me sentia em casa. Os dias começaram a ser mais rotineiros e tranquilos, mas até mesmo já acostumados com minha presença, os objetos ainda eram animados comigo sempre.

Eu comecei a me acostumar a fazer meus deveres ao lado de meu cavalo, que renomeei de Philippe, o único ser que parecia ter paciência sempre a me ouvir começar minhas primeiras sílabas com vagar e alguma dificuldade. Sempre estava lá... comendo seus legumes e pasto ou só olhando para mim. Sentia-me motivada. Era também um jeito de estar com ele todos os dias, já que estava sempre do lado de fora do castelo.

Foi em uma dessas vezes que algo estranho começou a acontecer. Enquanto eu lia um pouquinho já melhor uma história mais simples de guardiões da infância, Philippe começou a agitar-se, soltando ar com mais força pelas narinas, os olhos e orelhas se mexendo, o rabo agitado. Tentei acalmá-lo, perguntando o que ouvia... quando chegou a mim... um canto longo e baixo, um tanto mais grave, como um chamado esperançoso. Emily...

Cantei em resposta em um tom alto, mas que eu sabia que ela ouviria com mais clareza do que qualquer um. Tentei transmitir nos sons que eu estava a caminho e que me esperasse se pudesse. Houve uma confirmação rápida... ela havia escutado!

Segurei o rosto do bonito cavalo com esperança.

“Você a ouviu, não foi, Philippe? Leve-me até ela... siga a voz, por favor!” o cavalo levantou-se como uma montaria digna de caçada, rápido e já cheio de energia. Assim que eu subi em suas costas e segurei firme a crina, ele disparou como uma bala, os portões do jardim do castelo abrindo sozinhos apenas o suficiente para passarmos e o alazão galopou pela lateral do muro, seguindo caminho para além daquele que eu havia percorrido antes. Meu coração estava na boca, mas concentrei todas as minhas forças no trajeto, que não fora muito longo, até chegar em uma pequena praia entre duas grandes pedras. Estranhei não encontrar lobos interessados em nós... A floresta poderia mais uma vez ter se aberto para mim, da melhor maneira? Fiquei com medo da volta... de como e se eu encontraria novamente o castelo, mas não poderia me preocupar com isso agora.

Ele me levou até a areia da praia... o mais próximo que podia da sereia chocolate amargo com cabelos crespos longuíssimos atados como cordas, e cauda cor de salmão, que me esperava no rochedo onde as ondas batiam.

“Por favor, fique aqui. Descanse um pouco.” Falei ao descer do animal, beijando seu focinho. Retirei o vestido com o máximo de rapidez que consegui, pondo em cima do cavalo... ficando nua. O animal me cheirou mais uma vez como para verificar meu cheiro verdadeiro sem tantos panos e entrei andando na água até que fosse fundo o suficiente para relaxar e permitir sem receio a volta de minha cauda turquesa-prateada e minha pele mais acinzentada que rosada como humana. Apenas voltei o rosto para fora da água já na pedra ao lado de seu rabo. Subi nesta com alguma ajuda de Emily... e nos abraçamos com uma força de saudade infinita.

“Te chamei em várias praias! Como está longe de casa, Arte! Até um pouco afastada do meu reino... o que houve? Não estava naquela vila?” seus olhos amendoados me encaravam com preocupação, ainda tocando meus braços.

Dei-lhe uma versão resumida da história, mas sem livrá-la dos detalhes importantes. Seus olhos arregalaram-se e quase não respirava ao ouvir certas partes.

“...mas eu estou bem. Lá é como uma fortaleza e me sinto segura. O castelo parece se esconder na floresta... tudo lá é mágico. É amaldiçoado, claramente, mas ainda não consigo perceber pelo quê. Talvez minha tia soubesse... mas não posso levá-la até lá... desconfio de algumas coisas. E quero mesmo ajudar a tirá-los disso... se tornaram meus amigos de verdade.”

“Amiga... irmã... isso pode ser perigoso demais. Você tem certeza disso? Uma criatura dona do castelo, objetos falantes, um lugar com ação própria... pode estar se metendo em uma enrascada bem pesada...”

“Posso, posso mesmo... mas eu prefiro este lugar a tudo o que conheci até agora. Fomos a vários lugares... e eu sou tratada com carinho aqui, não apenas com cobranças da realeza... e a criatura do castelo... sabe? Estamos nos entendendo e eu acho que um dia podemos vir a nos aproximar mais...” mexi no cabelo, tímida. “É a primeira vez que tenho a chance de conhecer alguém sem pressão. E acho que estou começando a gostar dele... entende?” Ela sorriu em aprovação.

“Eu quero sua felicidade... sabe que estou preocupada com você, mas vamos juntas nessa história até o fim.”

“Até o fim.” Sorri e fizemos nosso símbolo de amizade.

“Arte, sabe que eu não posso ficar muito... podem nos achar. Mas veja só... seu pai não desistiu de te procurar. O príncipe sentiu-se humilhado, mas depois que as buscas não deram em nada, ele se despreocupou e foi continuar a vida. Estão até dizendo que está sendo conhecido em outro reino próximo e vendo se se entende com a princesa... Agora, seu pai está maluco. Praticamente não há um lugar sem seus soldados e ele pretende te recuperar a qualquer custo. Você pretende voltar?”

“Não, Em... sabe que não posso...” Ela suspirou, assentindo. “Entre a prisão do meu pai e o castelo... eu fico feliz mesmo na terra. Não é nem comparável. Sabe o que meu pai faz com quem o contraria. Eu não sou a primeira da realeza a fugir... Eu não só quero, como preciso ficar.” Ela me abraçou mais uma vez, porém como consolo.

“Olha, eu vou...” ela parou por um segundo e seu corpo se empinou para cima. Havia uma presença. Quando olhei, ela já rosnava para ele, mostrando as presas e pronta para saltar para combate. Segurei seu braço forte o suficiente, para chamar sua atenção.

“Não!!” disse mais alto do que gostaria. “É ele...” as presas recuaram depois de poucos segundos e os olhos ficaram novamente um pouco mais humanos. Olhei para cima de novo com um pequeno sorriso, esperando não tê-lo deixado tão furioso... convidando-o para descer se quisesse conversar um pouco.

***

[P.O.V. Fera]

A rotina das aulas diárias fez com que eu experimentasse todo tipo de sentimentos. Várias vezes me senti um louco por ter assumido aquele compromisso, mas também sabia que me sentiria culpado em voltar atrás em qualquer momento. Passei horas na biblioteca preparando as primeiras aulas, mudando uma porção de vezes; detestava flagrar o olhar de alegria e ternura que os servos me dirigiam rapidamente, achando encantadora a cena, como se eu fosse uma criança preparando uma surpresa a um adulto, desesperado por aprovação. Detestava porque era exatamente como me sentia.

Era a própria presença dela, com seus sorrisos e sua boa-vontade, que dissolvia aos poucos meu nervosismo. No meio da aula, estava sempre melhor do que no começo. Ao final, várias vezes senti que estava acelerado, algo que tentava disfarçar enquanto almoçávamos juntos, outro hábito que adquirimos. À tarde, quando tínhamos momentos de leitura, ou mesmo depois desses encontros, saía para longos passeios para gastar energia, até mesmo correndo.

Nem sempre me sentia capaz de ser uma boa companhia, e mesmo assim não faltei a nenhuma aula; com sua paciência, Bela também respeitou os dias em que ficava mais quieto, apenas fazendo uma ou outra correção ou observação, o silêncio se instalando enquanto cada um lidava com os papéis à sua frente.

Naquele dia eu tentava decidir qual seria nossa próxima atividade escrita, quando tive uma vaga sensação de ansiedade diferente. Interrompi o que fazia, sem entender o que sentia, até perceber, vindo de fora, um som vago e estranho, mas que parecia familiar. Acho que meu coração foi mais rápido e certeiro do que minha memória: aquele som era a voz de Bela, sua voz de sereia, e daquela vez eu não sabia o que queria dizer. Sabia apenas que não falava comigo.

Fiquei imóvel na biblioteca, decidindo se deveria ir até ela ou não. Foi Chevet quem me tirou da inércia, entrando agitado pelas portas, fazendo muitos gestos com seus bracinhos de cabideiro.

“Mais devagar! Não consigo entendê-lo.” Falei, e só com muito esforço diminuiu a velocidade, e entendi que imitava alguém de vestido. “Bela?” Concordância. Saiu pela porta e eu o segui até o lado de fora, o coração já acelerado. Indicou-me o portão entreaberto.

“Ela foi levada?!” Senti meus olhos se arregalarem e os pelos arrepiarem. Negação. Indicou-me o estábulo, vazio. “Ela... foi embora?” meus braços caíram. Estava incrédulo. O cabideiro ficou furioso fazendo gestos para mim e para o portão. Queria que eu a seguisse. Mas e se não quisesse ser seguida? Ele insistia.

De repente, imagens de todos os perigos da floresta me vieram à mente. Também senti certa raiva. Querendo ou não partir, queria ouvir essa decisão diretamente da boca de Bela. Disparei até o portão, onde foi fácil captar o cheiro de cavalo agitado e o rastro que deixou no solo com os cascos, rente aos muros do Castelo. Segui-o correndo, de quatro, virando em direção aos fundos e então me embrenhando na mata.

Queria seguir mais rápido, principalmente quando farejei a adrenalina de Bela, mas várias vezes tinha de diminuir um pouco para não perder os rastros. Entreouvia animais se agitando ao meu redor, inclusive os lobos, perturbados com o segundo intruso que atravessava seu território. Não lhes dei atenção.

Em vários desses momentos, com a cabeça baixa, era atrasado pelas roupas que se prendiam nos galhos, raízes e arbustos, furando e rasgando aos poucos, até me fazerem tropeçar e escorregar vários metros junto ao rio que se dirigia para o mar. Arranquei o que sobrou, sem tempo a perder, avançando com mais facilidade.

Vi a mata se tornar uma encosta que se abria cada vez mais para o horizonte, o mar já reluzindo entre as árvores e se fazendo ouvir. Olhando ao redor, notei o cavalo, já onde o solo ficava arenoso e os primeiros rochedos se desenhavam na costa. Corri em desespero até ele, achando que Bela estava desacordada em suas costas, e minha chegada brusca fez com que se agitasse, e depois me encarasse, um tanto bravo, com censura. Vi que era apenas o vestido dela que estava ali, os calçados também não muito longe.

O animal era muito inteligente e estava muito calmo para que a princesa estivesse em perigo. Olhei para o mar que batia contra a praia, e achei que o odiaria para sempre se a tivesse chamado de volta, sem lhe dar opção...

Ouvi vozes que vinham logo atrás de um dos rochedos mais próximos. Uma delas era de Bela. Parecia explicar alguma coisa. Deixei o cavalo para trás, e me aproximei o mais silenciosamente que consegui, sobre a enorme pedra, para escutar melhor, sem me mostrar.

Entendi que narrava a invasão de Gaston ao Castelo e o que houve depois, mostrando que se sentia segura. Quem a acompanhava estava preocupada com sua insensatez... mas Bela disse que estava bem e que acreditava gostar de mim. Meu coração tropeçou em algumas batidas.

Demorei um pouco para perceber que a conversa continuava, incapaz de prestar atenção a outra coisa. Quando notei, já estava mais junto à borda, procurando vislumbrar algo da cena... mas a outra sereia me viu tão rápido quanto eu a vi. Aquela linda figura virou uma predadora em um piscar de olhos, de forma intimidadora, mesmo de longe, e senti meu próprio corpo responder, arrepiando os pelos, enrijecendo os músculos, mostrando os dentes.

Foi Bela quem interrompeu as hostilidades, acalmando a companheira com gestos e palavras e a mim com um sorriso. Convidou-me a descer, e preferi aceitar, depois de hesitar um pouco, para tentar entender a situação. Muitas coisas me passavam na mente enquanto contornava o rochedo até um lado mais fácil de descer, como perguntar sobre quantas surpresas ainda teria com sereias – Bela também fazia aquilo?; como a outra planejava me atacar daquela distância? Também sentia o constrangimento de ir encontrá-las enquanto todos nós estávamos nus.

Saltei para a areia e avancei de quatro, achando que seria menos estranha minha falta de roupas daquele jeito. Demorei a levantar os olhos para elas, cumprimentando a outra sereia (também uma princesa?) com uma reverência de cabeça, antes de me voltar para Bela. “Está tudo bem?” Ficamos... preocupados com sua partida súbita.” Deitei com a barriga para baixo sobre as dunas, a alguma distância.

[P.O.V. Bela]

Emily estranhou quando pedi para que ele se juntasse a nós, mas tentou manter a calma ao perceber que eu me sentia realmente confortável em sua presença. Pareceu gostar mais do que eu de seu ato de respeito ao manter-se longe, mas lancei-lhe um pequeno sorriso de agradecimento por isso. Parecia mais inofensivo deitado daquela maneira.

Seus olhos transpareciam muitas perguntas, mas não as fez. Imaginei que faria isso depois. Ouvi sua questão, respondendo sem qualquer segredo ou mudança de palavras:

“Está, Fera...” chamei-o assim pela primeira vez, mas com carinho para que não achasse mais do que era. Fazia mais por ela... que poderia estranhar mais alguma coisa por eu não saber como chamá-lo. “...Está. Conseguimos nos falar pela primeira vez agora desde que fugi. É bom saber como vãos as coisas, mesmo me dando ainda mais certeza de que eu preciso ficar na superfície.”

Após esse momento, a conversa foi muito curta antes que tivéssemos que nos despedir. Não era mesmo seguro ficar muito mais tempo em um lugar tão aberto e começamos a ouvir chamados ao longe:

“São minhas irmãs... Eu preciso ir.” Emily abraçou-me com bastante força rapidamente, antes de pular na água. “Por favor, se cuide, Arte... E, aconteça o que acontecer, não nade para o fundo. Manterei seu segredo com a vida.” Fizemos nosso sinal de amizade novamente enquanto meus olhos marejavam. Não sabíamos se conseguiríamos nos ver de novo, mas esperávamos que sim. Ela virou-se para ele como se fosse pedir algo impossível: “Por favor, guarde-a. As coisas estão realmente complicadas lá embaixo.” Esperou sua confirmação antes de descer e só vimos sua cauda bater uma vez fora d’água antes de afundar por completo.

Eu nem queria ficar mais um segundo com o mar batendo em minhas barbatanas. Estava com medo de ser encontrada pelo cheiro ou por qualquer outro sinal. Curvei todo o meu corpo para saltar para cima do rochedo, mas fui impedida quando uma grande onda apareceu, submergindo-me nela, levando-me rápido até a praia.

Já na areia, ela se desfez recuando e me deixou deitada, bem em frente a ele. Olhei para o oceano com carinho e em agradecimento antes de começar a forçar um pouco para as pernas voltarem mesmo que estivesse molhada com água salgada.

Philippe chegava perto com vagar, baixando a cabeça até mime recebendo um carinho antes de virar de lado e deixar minhas roupas ao alcance. Agradeci baixinho à criatura que ainda estava lutando entre a curiosidade e o pudor de não poder me ver nua.

Levantei-me ainda acinzentada, mas com as pernas já firmes e as características humanas tomando conta enquanto eu me vestia, ainda molhada. Minha preocupação por sair dali era maior do que o incômodo da areia entre os tecidos.

Fera pôs-se de pé quando subi no cavalo e os dois prepararam-se para voltar para o castelo. Respirei bem fundo, olhando para o mar uma última vez antes de fazer o sinal, e Philippe disparou para dentro da mata, a criatura correndo de quatro em comunhão. Treinado para ser rápido, o animal conseguia acompanhar Fera e estávamos em um bom ritmo enquanto seguíamos.

Não demoramos a ouvir um uivo alto, e alguns da alcateia que eu infelizmente já conhecia começaram a correr e se preparar para nos encurralar. Comecei a arrumar o vestido da maneira que podia, amarrando-o nas pernas para que ele não fosse um enorme problema.

Assim que chegaram e começaram a nos atacar, foram primeiro até Fera, para que eu fosse uma presa mais fácil... Tive, assim, mais um segundo para pensar. Não desci do cavalo, mas encarei os animais com a expressão predadora de sereia, as unhas crescendo.

Mesmo sem tanto jeito, consegui pegar pela pele das costas alguns dos lobos que estavam sobre Fera, lançando-os nas pedras, arranhando e gritando agudo aquele som que só animais escutam, bem sobre seus ouvidos. Mesmo também incomodado com o ruído, Fera conseguia manter-se de pé, continuando a lutar contra os lobos que ainda resistiam.

Depois da morte de alguns a alcateia retirou-se rapidamente, rosnando para nós do alto da montanha. Fera, claramente a mais machucada, mesmo que eu também estivesse, apoiou-se em uma árvore. Philippe chegou perto dele, e eu pude erguer seu rosto para que me olhasse: “Veja, o castelo já está à vista... ele apareceu. Vamos. Não estamos longe. Segure-se nele...” Fiz carinho nos pelos, saltando do cavalo para que apenas os dois se equilibrassem. “Por favor, Philippe...” pedi ao animal e ele bufou pelas narinas, respondendo, e consegui entender que estava tudo bem.

Não demorou muito para atravessarmos os portões, que se fecharam com força atrás de nós, e eu corri para dentro do castelo enquanto meu querido alazão ainda andava com ele calmamente.

Cheguei rápido à cozinha, começando a preparar minha água para conseguir nos curar, os objetos já aprontando o que precisavam para os primeiros socorros sem sequer perguntar. Sabiam bem quando agir.

Chevet veio ao meu encontro e pedi que ajudasse Fera a entrar no castelo quando Philippe não pudesse mais continuar. Assim foi feito.

“Meu cavalo... meu cavalo está ferido. Cuide dele, por favor...” pedi quase chorando e Madame Samovar começou a dar ordens, alguns panos e objetos indo com ela, trazendo comida, água e material para ajudá-lo.

As coisas já tinham se posicionado ao lado da criatura que estava novamente ferida em frente à lareira por minha causa... Senti uma culpa tremenda e as lágrimas vieram. Ajoelhei-me ao seu lado, chorando e segurando sua pata em meu peito, abraçando-a.

“Me desculpe... você se machucou de novo por mim... Eu vou cuidar de você. Vai ser rápido, não vou deixar você sentir dor por muito tempo...” Minhas mãos tremiam um pouco e as lágrimas ainda rolavam, mas eu conseguia agir, molhando a toalha para limpá-lo.

Muitas coisas vinham à minha mente naquele momento... Temi por minha ingenuidade – aquilo poderia ter sido uma armadilha e eu teria sido capturada facilmente. Temi pela segurança de Emily por agora saber tanto. Temi pelas consequências da raiva que Fera poderia estar sentindo de mim. Temi por meu povo e o que ele poderia estar passando enquanto o rei me procurava... E o pior de tudo... o que aconteceria se ele me encontrasse?

***

[P.O.V. Fera]

Foi com alguma surpresa que me ouvi ser designado como "Fera", mas não expressei qualquer reação. Não havia ofensa ou crítica, e era uma boa saída para quem não tinha um nome ou título. Eu seria A Fera, e não uma fera. 

Assenti quando Bela me tranquilizou e garantiu que estava tudo bem. Não disse mais nada, tornando o olhar para o horizonte e a costa como forma de deixá-las à vontade para continuar a conversa, sem parecer que estivesse bisbilhotando. É verdade, porém, que não conseguia ignorar as palavras que me chegavam. Os chamados longínquos captaram também a minha atenção e me preocuparam, botando-me de pé. 

Ouvi o apelo da sereia amiga e li a preocupação sincera em seus olhos. Novamente assenti com a cabeça, e as palavras me escaparam da boca, mas tão baixo que não sabia se foram ouvidas: "Com a minha vida se preciso..." Mas foram. Ela parecia acreditar em mim quando partiu.

Já me preparava para ajudar Bela a sair dali se necessário, quando o próprio oceano o fez, e não soube como reagir. Surpresa, medo e desconfiança me passaram muito rápido pelo espírito, na fração de segundo em que não sabia se as águas tentavam capturar de volta a sereia. Ainda me aproximei com pressa quando ela foi depositada na areia, demorando um pouco a relaxar. Só mais tarde pensaria se o mar sempre protegia seu povo, independentemente da situação ou do risco que assumiam.

Assim que a jovem reassumiu a forma que eu conhecia, e procurava alcançar suas roupas oferecidas pelo cavalo, procurei me virar, indo para trás do animal, sacudindo o corpo e tentando espanar com a pata um pouco da areia presa nos pelos do peito e da barriga. Resmunguei uma resposta ao agradecimento que eu mesmo não entendi e sentei sobre uma pedra.

A corrida de volta teria sido um alívio, mesmo que breve, se o cheiro dos lobos não me chegasse a poucos passos já dentro do bosque. Não achei que ousariam atacar, mas estava enganado: aqueles animais pareciam maiores e mais agressivos do que os lobos que vi em minhas breves caçadas ou mesmo nas leituras. Cheguei a pensar que talvez sofriam de algo ligado à maldição, para aumentar o isolamento do Castelo. Também não parecia natural que tantos deles fossem brancos...

Vários tentaram me atacar nas pernas até que eu caísse, e então subiram em minhas costas. Foi Bela quem me ajudou a tirá-los, até que me lancei contra as árvores para tirar os últimos. Estava dividido entre o alívio de ter sua ajuda e o medo do risco que ela corria. Vê-la com a mesma expressão predadora que vira na outra sereia, lutando e reagindo, me inspirou confiança, e desmotivou os lobos, que não esperavam dois adversários.

Sempre que possível, eu evitava matar. Mas cada vez que via um deles subindo com as garras no flanco do cavalo sentia uma fúria crescente me consumir enquanto os arremessava com cada vez mais força no chão. Com a adrenalina, não sentia mais a dor das mordidas, ignorando se o sangue que tingia meus pelos era meu ou deles. Cada vez mais era tomado por fúria.

A alcateia não mais insistiu, afastando-se rapidamente e abandonando os companheiros mortos. Não senti vontade de segui-los, continuando em alerta, com a respiração acelerada, o corpo todo tensionado; olhei ao redor, procurando algum perigo, porque o cheiro de sangue e adrenalina encobria quase totalmente os demais. Como um peso jogado subitamente em meus ombros, o cansaço me atingiu no momento em que consegui relaxar, a ponto de me tirar o equilíbrio. Escorado em uma árvore, meu fôlego era um ofegar rouco. 

Bela e seu cavalo se aproximaram e não gostei de ver que estavam feridos. Era como ter falhado, ao menos em parte. Tentei responder ao que a jovem me disse, conseguindo apenas grunhir. Quis negar quando me ofereceu o apoio do animal, aceitando apenas quando percebi que levaria muito tempo avançando sozinho: ver-me fraco e nosso grupo lento poderia incentivar os lobos a avançar outra vez contra nós. Com a ajuda do cavalo, tentei me deslocar o mais rapidamente que podia, para não deixar Bela seguir muito tempo a pé, esforço cada vez mais difícil enquanto as dores finalmente se acumulavam, me obrigando a mancar.

O retorno ao Castelo foi breve e penoso. Perto da escada, liberei o cavalo da função de bengala enquanto vários objetos vinham prontamente tratá-lo. Notei o olhar preocupado de Mme. Samovar, que liderava o grupo.

Chevet veio até mim aos saltos; usei o solícito servo quase como um cajado de andarilho para conseguir subir as escadas e atravessar o salão, sendo guiado à lareira que me trouxe lembranças não tão distantes. Deitei no chão com menos delicadeza do que pretendia, e reclamei com um rosnado. Cautelosamente, outros servos e objetos encantados começaram a limpar minhas patas e o chão da lama que eu trouxe para dentro. Depois, panos úmidos foram limpando levemente meus pelos do sangue seco, parando no momento em que Bela chegou.

Estava muito cansado e confuso para entender por que ainda sentia tanto cheiro de medo em seu corpo, ou o motivo de chorar tanto, por isso não reagi imediatamente. Com suas palavras, comecei a entender; não movi a pata, com medo de sujar ou arranhar seu peito.

"Não peça desculpas... Não há razão..." tentava dizer, tolamente. "Você primeiro..." procurei indicar um de seus machucados, para que se tratasse antes de mim.

Queria conversar com ela, tranquilizá-la, e ao mesmo tempo fazer as perguntas que vinha segurando desde que a vi acompanhada junto ao mar. Mas a exaustão e o contato leve de suas mãos, o cheiro que era de sua pele, do mar e da mata, o calor suave da lareira enquanto as dores cediam... tudo aquilo turvou minha mente.

Com a outra pata envolvi suas pernas como em um abraço sem jeito. "Você está bem... Estamos seguros... aqui. Não vou deixar... nenhum perigo... entrar."

Sem nem mesmo perceber, acabei adormecendo com a cabeça ainda junto de seu corpo. As patas ainda tremiam de leve quando me tocava para me tratar com seu dom curativo, mas não despertei em nenhum momento do sono sem sonhos em que mergulhei. Aos poucos, outros servos preocupados aproximaram-se das portas, sem se atrever a entrar sem serem chamados, comunicando o ocorrido aos outros.


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