A Bela e a Fera - Livro 1 escrita por Monique Rabello, Kyrion


Capítulo 8
Capítulo 7: A biblioteca




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[P.O.V. Fera]

Tentava não andar com muita pressa pelo trajeto que levava às portas da biblioteca. Pouco depois de sairmos da sala de jantar, o pequeno grupo de servos habitual reuniu-se conosco, dirigindo-se principalmente a Bela, perguntando se tínhamos apreciado o almoço, se haveria algum pedido ou sugestão para as próximas vezes... Quando me levantei e não deixei alternativa à jovem princesa exceto me seguir, também não lhe dei a chance de comentar qualquer outra coisa da refeição, nem eu mesmo agradeci pelo esforço da equipe. Sem querer lidar com todos, afastei-me até ficar à frente do restante do grupo.

“É aqui...” indiquei as portas duplas facilmente reconhecíveis quando paramos diante delas, e as abri de uma vez.

Mesmo sem fogo, o ambiente estava claro e morno, devido às grandes janelas elevadas normalmente mantidas fechadas para preservar os livros, mapas, pergaminhos e documentos protegidos da umidade. O cômodo tinha a altura de dois andares, encimados por um teto inteiramente pintado, em arcos, dividido em cinco grandes áreas: duas à esquerda e duas à direita da porta de entrada representavam a natureza nas quatro estações do ano, com árvores, arbustos, flores, folhas ou frutos, alguns animais escondidos entre os elementos. Pássaros salpicados nos galhos, uma raposa por entre os gramados do verão, um cervo e uma corça na primavera... O teto central tinha uma paisagem paradisíaca, uma atmosfera quase sagrada, como provavelmente seriam os Campos Elíseos, o Olimpo, o Nirvana ou Shangri-Lä.

Naquele nível, as paredes eram inteiramente feitas de estantes de madeira branca ondulando ligeiramente, interrompidas apenas pelas largas lareiras, uma de cada lado, com grossas grades e recuadas; e por algumas janelas mais longas que iam até o teto. O  nível superior, acessível por quatro escadinhas em espiral, seguia por corredores elevados protegidos por um parapeito elegante. Tinham menos estantes e mais janelas, além de algumas estátuas pequenas nos cantos dos arcos: bustos de pensadores, filósofos e artistas famosos, anjos guerreiros e pequenas gárgulas.

O chão era de azulejos e pedra, um pouco gastos, formando mosaicos abstratos. Cada ambiente tinha um grande tapete, em geral junto às poltronas ou sofás e longe das lareiras; estes móveis existiam em boa quantidade, confortáveis e de vários tamanhos, além de quatro mesas de trabalho.

Sem que eu precisasse mandar, os funcionários tomaram a iniciativa de acender as lareiras com fogo baixo e reconfortante e entreabrir algumas janelas para o ar circular, espalhando com a brisa o cheiro um pouco abafado de papel e tecido. Todas as cortinas foram mantidas bem abertas.

Virei-me para ver o rosto da princesa, conhecendo sua primeira biblioteca, uma que não deixava a desejar. Distraí-me por um instante das minhas preocupações, um tanto satisfeito e até com algum orgulho, como se aquele lugar realmente me pertencesse. Resolvi começar a mostrar o lugar pela esquerda, cruzando os Elíseos e passando ao primeiro ambiente.

“Aqui, no Outono, além dos livros, temos mapas de diversas terras e épocas, até mesmo de quando achavam que a Terra era plana... e também alguns globos terrestres.” Indiquei os que havia, nas prateleiras. Apontei para algumas portas, de madeira ou de vidro, que interrompiam as sessões de livros. “Guardados ficam os documentos, cartas, alguns registros mais frágeis. Também papéis, cadernos em branco, tinta e penas de escrever, para fazer estudos. Alguns instrumentos e lentes para usar nos mapas. Os outros globos, os negros, são as constelações, junto a mapas siderais. A maioria dos livros daqui está ligado a viagens, explorações, geografia, história, astronomia, roteiros, diários, jornais.”

Passamos para o ambiente de uma das extremidades. “O Verão tem tudo o que puder imaginar sobre ciências e artes. Ensaios, teoria, filosofia, matemática, experiências, guias, enciclopédias, dicionários, guias de línguas, modelos de desenho, anatomia, arquitetura... o centro de informações, se pudermos resumir. As portas e gavetas têm pergaminhos de iluminuras, ilustrações, esboços, estudos visuais, gráficos e registros técnicos.”

Fizemos a volta, retornando pelo Outono, onde a lareira já ardia e voltamos ao centro. “Os Campos Elíseos são o mundo da ficção. Contos, crônicas, romances do mundo todo, e algumas traduções. Também algumas lendas que estão nas raízes de várias culturas. Foi por aqui que li sobre seu povo, provavelmente com uma porção de enganos.”

Seguimos para o lado direito da porta de entrada, para o ambiente com a outra lareira, em suas tonalidades serenas. “O Inverno reúne obras peculiares. Livros religiosos, sagrados, de mitologia, esoterismo, culturas exóticas, filosofias orientais, outros mundos, planos astrais... coisas que se mostram mistérios, em que se acredita ou não. Acho que magia também estará por aqui, com alquimia. Guias de sonhos, meditação, psicologia, uma área que poucos exploram. Os documentos guardados mostram rituais, pontos de energia, símbolos, selos, muitas coisas que não compreendo, línguas estranhas, códigos. As imagens mostram seres místicos, deuses, monstros, anjos, demônios. Já perdi muito tempo por aqui e descobri muito, mas nada do que procurava.”

Passei para o último ambiente, na outra extremidade, a Primavera. “Poesia de todos os tipos, peças de teatro, música, cantigas, letras e partituras.” Ia falando, indicando as estantes com os dedos. “Coisas ligadas à estética e à beleza, roupas, decoração (eu nem sabia que isso já era assunto de obras tão antigas), culinária, jardinagem... tudo o que puder ser belo e sublime.” Virei-me para algumas portas na parede de fundo, junto a duas esculturas grandes e aladas, como dragões. “Esses armários eu nunca consegui abrir. Não sei onde estão as chaves. O restante tem instrumentos de desenho e pintura, algumas telas pintadas e em branco, estudos de caligrafia, obras originais.”

Indiquei a parte superior, que circulava pelos cinco ambientes, com suas quatro escadas; “O outro andar é uma continuação deste, com as obras mais raras, antigas, frágeis... e, em geral, incompreensíveis. São os idiomas mais difíceis, vários livros estão manchados ou danificados, mas muita coisa ainda é legível.” Passei os olhos novamente ao redor, para ver se me lembrava de mais alguma coisa. Alguns livros estavam separados sobre as mesas, indicando minhas últimas leituras, várias ao mesmo tempo, talvez interrompidas há vários meses, mas mantidas ali, sendo apenas limpas.

Voltei-me novamente para a princesa. “O que achou? O que gostaria de ver primeiro?”

***

[P.O.V. Bela]

Vi-o comer mais ferozmente a sobremesa e por algumas expressões, eu devia tê-lo incomodado de alguma forma com meu entusiasmo para ajudar... Minha vergonha, enfim, não precisou ser expressa, pois já me chamava para ir à biblioteca. Levantei-me com cuidado, porém rápido, para ir atrás dele.

Sorri aliviada quando Lumière, Horloge e Madame Samovar vieram ao meu encontro. Havia ficado levemente nervosa por não agradecer antes de sair e o carrinho chegando foi um alívio real. Conversamos por alguns minutos e eu comentava com entusiasmo tudo o que eu mais tinha gostado. Beijei cada um deles pelo esforço e carinho... Ser princesa naquele lugar era realmente muito mais gostoso do que eu meu próprio reino.

Perdi o fôlego por um momento. Ao voltar os olhos a ele, as portas já estavam sendo abertas e aquela imensidão de beleza se fez à minha frente sem qualquer cerimônia. Não sabia para onde olhar e quase ficava tonta de girar para ver os detalhes de cada lado. Era muita coisa incrível! Eu poderia passar dias ali – até meses e ainda descobrir algo que nunca havia notado... Eu ria de ansiedade e alegria, tapando o rosto várias vezes para minha expressão não chamar tanta atenção e os olhos brilhavam.

Quando percebi que me olhava, corri para perto, tomando seu braço: “Esse lugar é incrível! Dá uma sensação boa de ter tanto a aprender! Mal posso esperar para começar!” dei uma risadinha mesmo sozinha, envolvendo meu braço no dele quando começou a andar para mostrar os detalhes. Eu já me sentia confortável com ele para isso... e se não achasse incômodo demais, eu continuaria.

Os próprios livros somente passavam pelos meus olhos deslumbrados, pois mesmo que eu tentasse, me frustraria por não conseguir ler os títulos... mas quando ele apontava alguma coisa que fosse objeto ou com mais gravuras, eu corria para ver de perto. Os mapas abertos e globos eram completamente diferentes um do outro e isso era incrível. Eu não sabia muito das descobertas dos homens e fiquei mais uma vez animada com o quanto ele poderia me ensinar. Voltava para seu braço sempre que íamos mudar de ambiente.

“Sério que esta área é pouco explorada? Adoro o desconhecido... nunca saber até onde vai o possível! Provavelmente passarei bastante tempo dando uma boa olhada.” Até mesmo o ambiente do inverno me atraía. Peguei-me pensando que poderia passar muito tempo ali sendo feliz no conforto daqueles livros... mas nada disse. Ele poderia desconfiar ainda mais de mim.

Senti alguma intriga pelo armário misterioso que ele disse nunca ter conseguido abrir. Será que ali dentro poderia ter uma das pistas de que precisávamos? Planejei que, em algum momento, eu tentaria procurar alguma forma de abrir e se encontrasse, teria que acelerar meu aprendizado para poder investigar.

Acompanhei-o ao centro mais uma vez, olhando o andar de cima com o sorriso constante. Soltei-o para dar uma olhada na mesa que era usada por ele, olhando as capas dos livros deixados ali. Sentei-me à mesa quando se dirigiu a mim e pedi-lhe que também se sentasse com o olhar terno:

“O que está lendo? Quais são essas suas atuais fontes de interesse?” As capas eram quase sempre rústicas e muito bonitas. Tinha cuidado ao olhar as páginas.

Soltei um suspiro feliz, olhando mais uma vez para o que tinha à minha volta. “Aprendi com alguns humanos que a maior riqueza do mundo está nesses carinhas...” acariciei uma das capas. “Estou tentando imaginar o quão incrível deve ser ter muito das duas maiores riquezas do mundo. Sabe? Só te falta uma... pelo que aprendi! Que mágico. Esse lugar só melhora!” ri para ele apoiando o cotovelo na mesa e a mão na bochecha, olhando-o até com carinho. “Obrigada por me proporcionar esse momento! ...eu nunca achei que fosse ter a chance de um dia almejar poder lê-los! Eu nem sei o que dizer...” quase sonhava olhando para cima e as prateleiras passando pela minha vista.

“A vida foi mesmo muito boa comigo por me trazer aqui...”

[P.O.V. Fera]

Vê-la encantada com o esplendor da biblioteca enquanto agia como guia melhorou sensivelmente o meu humor. Foi uma grande surpresa quando passou o braço no meu, e tive de igualar nossos passos para avançarmos juntos. Como se sentia à vontade com tanta rapidez? Era algo de sua personalidade, de seu povo, ou o sinal de algo que escondia?

Notei que mostrava interesse nos mapas e mencionei: “Os mapas seguiam os conhecimentos dos geógrafos de cada época. Alguns são quase palpites, hipóteses. Outros acompanharam os limites dos países que mudavam a cada guerra. Pode haver algum mais preciso e atual do que os disponíveis aqui, e eu não saberia dizer.”

Sentei-me próximo a ela quando me pediu, na ampla poltrona junto à mesa, e passei os olhos nos livros em que andara mexendo – ou que tinha abandonado há algum tempo.

“Os últimos que peguei foram uma peça de teatro em versos de um autor deste país, chamado Racine. A peça se chama ‘Andrômaca’, trágica. Também li poemas espanhóis variados. E procurei estudar algo chamado ‘projeção astral’, que seria um jeito de libertar o espírito deixando o corpo para trás, normalmente dormindo... parecia um jeito de... dar uma volta, sem problemas. Não consegui fazer funcionar. Acabei não terminando nenhum destes livros.” Enquanto enumerava, indicava com uma garra as obras comentadas. Sobre as outras mesas, espalhadas, procurava lembrar de outros livros escolhidos. “Quis aprender outras línguas e peguei uns dicionários. Tem um livro de contos russos traduzidos ali, e outro de lendas árabes lá. Às vezes perco o interesse, ou a motivação.” No total, haveria uns 15 livros fora do lugar.

Fiquei surpreso quando mencionou que eu tinha muito de duas das maiores riquezas do mundo. “Riqueza material... conhecimento...” resmunguei comigo mesmo, pensando ter compreendido. Seria o amor a terceira, que me faltava? Se fosse, continuaria faltando por tempo indeterminado.

“Não sou eu que... proporciono isso. Mesmo assim fico feliz que esteja gostando tanto.” Preferi não tecer nenhum comentário sobre o quanto nossas opiniões divergiam sobre a vida no Castelo; não queria comprometer um instante agradável, ilusório ou não. “Gostaria de... explorar algum livro ou começar a aprender?”

[P.O.V. Bela]

Ouvi-o com toda a atenção enquanto respondia sobre suas leituras, como sempre, debruçando-me um pouco sobre a mesa para chegar um pouco mais perto dele e poder ver os livros. Interessante essa ideia de viagem astral... eu nunca havia ouvido falar.

Concordei com um sorriso, escolhendo não perguntar nada sobre sua trajetória naquele dia para não tornar-me indelicada... mas já sabia o suficiente para insistir no sorriso carinhoso mesmo ele dizendo que não havia sido quem proporcionava tudo aquilo.

“Claro que é... Partilhando disso comigo e querendo me trazer toda essa alegria com o que está aqui... pode não ser o dono de tudo, mas foi quem decidiu abrir as portas.”

Era o melhor modo que eu havia encontrado de responder àquilo. Com seu chamado por minhas escolhas mais uma vez, pedi um pouco tímida:

“Posso apostar que após tantas leituras, você possua alguma ou algumas favoritas... Poderia escolher uma dessas estórias e ler para mim? Caso seja grande... pode ler para mim sempre um pouco antes das minhas aulas? Eu adoraria conhecer um pouco do conteúdo dessas estantes enquanto aprendo... Por mim, poderíamos marcar um horário diário para isso... o que acha? Conseguiria me ver todos os dias?” passei a mão nos cabelos levemente temerosa com a resposta.

[P.O.V. Fera]

Não tinha como discutir com sua visão generosa e com a imagem gentil que fazia de mim, e apenas sorri, como podia, discretamente. Seu pedido seguinte me fez erguer as sobrancelhas, desconcertado, e cocei a cabeça por entre a juba de cabelos.

“Sim, claro, mas... não sei se meus favoritos serão também os seus.” Percebi o quanto parecia´intimo compartilhar minhas leituras favoritas e o quanto aquilo dizia de mim, de quem eu era. “Podemos tentar. E... sim, claro! Não seria um problema vê-las todos os dias!” Achava difícil dizer aquilo e não soar estranho. Um lado meu desejava justamente aquilo, enquanto outro tinha a mesma insegurança de Bela. Eu não sabia se tinha capacidade de conviver com qualquer um, por melhor companhia que fosse. Aquele seria meu aprendizado, tanto quanto a leitura seria a novidade na vida daquela jovem.

“Se vamos fazer isso todos os dias, pode ser melhor marcarmos de manhã, antes do almoço. Sua mente estará descansada, e teremos tempo suficiente para remarcar ao longo do dia para alguma eventualidade. Teremos luz natural... a menos que se sinta melhor e mais produtiva à noite. Podemos trocar, claro...” dei de ombros. “Podemos começar com duas horas de aula por dia. O tempo de leitura que lhe agradar. Aumentamos ou diminuímos conforme quiser.”

[P.O.V. Bela]

Fiquei feliz com seu aparente e discreto entusiasmo em fazer aquilo. Tinha medo de estar forçando-o a algo... mas parecia que não. Concordei com sua ideia de horário e questionei se já poderíamos começar na manhã seguinte, afinal... teria mais tempo para preparar alguma coisa se desejasse e escolher que obra começar a ler para mim sem pressão de fazer tudo na hora. Quase bati palmas de ansiedade e alegria quanto aceitou.

Peguei sua pata e apertei com algum carinho antes de sair, mesmo que minha real vontade fosse dar-lhe um beijo no rosto. Cedo demais. Deixei-o com sua biblioteca, quase saltitando para fora ao tomar Lumière nas mãos, os objetos me seguindo cheios de perguntas.


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