A Bela e a Fera - Livro 1 escrita por Monique Rabello, Kyrion


Capítulo 10
Capítulo 8: Descobertas - parte 2




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/782405/chapter/10

[P.O.V. Bela]

Demorei a conseguir relaxar com tudo aquilo acontecendo, mas acabei por agradecer seu sono. Seria mais fácil assim... sem um receptor para minha intensidade.

Após terminar os primeiros curativos dele, deixei que os servos do castelo se manifestassem finalmente, entrando com o intuito de reproduzirem seus próprios métodos de cura. Permiti, percebendo como eram respeitosos e organizados mesmo em momentos de desespero. As moças vieram até mim, pedindo-me que fosse a outro cômodo mais reservado. Assim fiz, e puderam mexer em mim com mais facilidade, subindo as roupas e cuidando de meus poucos ferimentos comparados aos de Fera.

Com cuidado, perguntaram-me o que havia acontecido e contei devagar. Tinham o direito de saber os motivos de eu ter causado tudo aquilo e tentei não ficar emotiva demais.

“Oh, minha querida...” Madame Samovar falava, acolhedora. “Família não é mesmo algo fácil. Parece claro que só existe para nos ensinar algo...” falava como uma mãe, às vezes, o que era bastante reconfortante.

“Preciso de um tanto de sal marinho e um lugar grande e com água parada. Há algum lugar assim no castelo? Posso usar o chafariz, se não tiver...” as damas olharam-se por um momento.

“Princesa, existe sim...” Plumette comentou. “...Mas está nos aposentos do amo. Não sei se...”

“O amo também está sendo tratado e não parece que vai acordar agora. Precisa se recuperar.” Madame fez um sinal para as outras moças, que assentiram, e foram resolver a questão. Em alguns minutos, vesti uma camisola, tomei-a em uma das mãos e esta começou a me orientar pelo caminho até chegar ao quarto de Fera na misteriosa e proibida Ala Oeste. Tentei prestar atenção em tudo o que vi e percorri pelo trajeto mais sombrio – e talvez mais frio – do castelo. Mas sabia que não conseguiria voltar sozinha sem ajuda.

Finalmente chegamos a uma porta grande e maciça, que parecia possuir uma sombra própria. Orientou-me que já estava tudo pronto à minha espera, mas que eu deveria ter cuidado e evitar tocar nas coisas. Assenti com tranquilidade e ela saiu confiante pelos corredores quando a deixei no chão.

Já dentro, pude ver refletida toda a angústia que ele demonstrava em seus atos. Algumas coisas rasgadas, mas que os servos, claramente, tentavam manter arrumadas. Um cafofo ao lado da cama – onde dormia? – junto a coisas belíssimas. Até que olhei para a janela e vi algo apoiado em uma única mesinha que parecia flutuar. Franzi  o cenho e cheguei perto.

Uma rosa.

Algumas pétalas estavam caídas e uma redoma de vidro guardava a flor e continha seu brilho. Olhei bem de perto, mas não me atrevi a tocar. Fiquei observando por pouco tempo – menos de um minuto – antes de ir até a porta que certamente levava à sala de banho.

Encontrei aquilo que esperava. A água não muito fria e salgada. Retirei a roupa com cuidado, trincando os dentes com a ardência do sal contra a pela machucada, mas procurei acalmar-me, relaxando os músculos e deixando a água fazer algum efeito com um cantarolar baixinho, até que toda a minha pele estivesse novamente da mesma tonalidade cinzenta.

A banheira era grande e a cauda apoiava-se apenas na ponta para além da borda. Até mesmo as escamas pareciam felizes. Totalmente em paz, fechava por vezes os olhos, curtindo meu banho, ou olhava as estruturas e materiais de algumas coisas do próprio banheiro para me distrair.

[P.O.V. Fera]

Acordei sobressaltado, por não ter percebido que adormecera. Tão logo notou meu movimento, Horloge veio ao meu encontro, procurando me tranquilizar.

“Amo! Amo! Está tudo bem! Não precisa se preocupar!”

Fui me lembrando de onde estava, as peças se reunindo novamente. Notei a pele fechada, já sem os ferimentos recentes, apenas uma nova coleção de marcas até que algumas sumissem. Fiquei com uma dor muscular por todos os movimentos bruscos que fiz. Procurei com os olhos ao meu redor. “Onde ela está?”

“Está tudo bem, ela está no Castelo.” Horloge assegurou-me. Já o conhecia bem o suficiente para notar em seu tom que procurava esconder alguma coisa.

“Onde, exatamente, ela está?” insisti.

Vi sua expressão se preocupar e gaguejar um pouco para responder. “B-bom, ela precisava de muita água e, bem, o chafariz seria muito exposto...”

“Claro.”

“Assim, senhorita Plumette e Madame decidiram, veja que não fui consultado nesta decisão, bom, elas decidiram usar...”

“Ande logo.”

Engoliu em seco. “Sua banheira, amo.”

Minhas garras rasparam o chão e minhas orelhas se contraíram. Imaginei Bela cruzando os corredores sombrios, entrando nos aposentos caóticos, vendo os objetos destruídos... me senti mais exposto e invadido do que ao ter aparecido despido, e os dois ocorrendo no mesmo dia. A civilidade que construíra caía e me sentia um ser selvagem e estúpido.

Fui até lá mais por impulso, deixando para trás alguns funcionários preocupados. Plumette, Samovar e algumas outras aguardavam na porta do quarto, provavelmente para proteger a privacidade da princesa. Ao verem-me chegar, a senhora bule endureceu um pouco a expressão, enquanto a espanador ficou mais insegura e amedrontada.

“A jovem precisa cuidar de si mesma depois de ajudá-lo, senhor, e a sua banheira é a mais ampla do Castelo.” A mais velha disse.

“Eu não vou tirá-la de lá!” respondi, irritado com a ideia que às vezes faziam de mim. Passei a pata na cara e entre os chifres, frustrado. Não havia nada a ser feito. “Só me deixem entrar...” continuei avançando.

“Talvez ela queira ficar à vontade, amo...” Plumette hesitou.

“Talvez eu queira pegar roupas.” Passei por elas. “E é o meu quarto.”

Vi que o cômodo tinha sido arrumado dentro do possível, para minimizar qualquer impressão negativa. Minha cama no chão não fora retirada (ninguém com força suficiente devia estar presente), então a cobriram com uma colcha melhor e almofadas. Nada abandonado no chão, coisas destruídas recolhidas. Não havia como esconder todos os tecidos rasgados, os móveis arranhados. Ou a Rosa. Estava chegando a hora de conversarmos sobre outros assuntos.

Rodei a esmo tentando ver se conseguiria arrumar mais alguma coisa para quando saísse, mas desisti. Seria patético se já tivesse notado algo em sua passagem que viesse a sumir em sua saída; estaria claro que queria esconder algo dela. Fui até o pequeno cômodo com roupas para pegar algo que cobrisse meu corpo, e reuni um pouco de coragem para elevar a voz e ser ouvido de dentro da sala de banho.

“Princesa... estou aqui do lado de fora. Quando puder... gostaria que conversássemos.” Disse. Depois acrescentei rápido: “Obrigado por cuidar outra vez... quando me feri.”

[P.O.V. Bela]

 Estava tão absorta em meus pensamentos, que apenas o ouvi falar alguma coisa bem alto do lado de fora, notando assim sua presença. Derrubei um pouco de água ao recolher a cauda, encolhendo-a para caber debaixo d’água e ergui o tronco, segurando as bordas da banheira.

Esperei assim até que chegasse à porta mais próxima a mim e senti umas escamas se arrepiarem por ansiedade e, sinceramente, por um pouco de medo. Respirei fundo ao lembrar que era ele... e por sua voz aveludada, não parecia que teria a reação que eu esperava.

“Entre...” esperei-o e dei uma risadinha por sua primeira reação ao me ver, voltando os olhos para baixo e tapando o rosto com a pata. Parecia um príncipe mesmo. “Está tudo bem... pode olhar.”

[P.O.V. Fera]

Fiquei surpreso quando fui chamado, depois de ainda ter ouvido barulho de água. Imaginei que tivesse terminado e entrei, um pouco hesitante, de quatro, tão frustrado continuava. Quando entrevi seu corpo ainda nu, procurei tapar a visão, por não ter como desviar muito no espaço do banheiro.

Ainda respirei fundo antes de reerguer a cabeça e fixar nela o olhar. Vi primeiro sua expressão simpática e um pouco risonha, os cabelos molhados colados para trás com as pontas ondulando sob a água, deixando o pescoço, colo e tronco bem à vista. Mesmo na luz do fogo que clareava o banheiro além da janela, sua pele era cinzenta, com uma textura úmida e lisa que parecia escorregadia. Tentei não olhar muito tempo para os seios, o que poderia ser visto como um interesse diferente da curiosidade, mas notei a falta dos mamilos. Observei que a cauda brilhava muito mais quando estava submersa, em tons que eu não sabia como chamar, ora mais verdes, azuis, ora mais metálicos, a pele aos poucos se pontilhando de escamas até ser recoberta na metade do tronco, depois se transformando de novo na pele colorida da barbatana da cauda, toda ela em curva para caber na banheira. Não tinha reparado antes o quanto seu corpo era longo.

Era estranho vê-la tão diferente, e ao mesmo tempo perceber que eu a teria reconhecido imediatamente em qualquer lugar, mesmo sem saber explicar o porquê. Aquele corpo nem parecia ter passado tantos dias fora da água, metido em vestidos e babados.

Não sei quanto tempo fiquei observando, mas esperava que não tivesse exagerado. Cheguei um pouco mais perto, voltando a encarar apenas seu rosto, sentando no chão. “O que aconteceu? Por que saiu do Castelo? Está correndo algum risco?” fiz as primeiras perguntas, enquanto o pedido de sua amiga voltava à minha mente.

 

[P.O.V. Bela]

O sorriso que eu tinha sumiu, sendo substituído por um suspiro longo enquanto eu levava uma das mãos aos cabelos para trazer uma mecha para frente, já que costumava mexer nos fios quando estava um tanto ansiosa. Olhei para baixo um pouco antes de responder, ainda envergonhada por minha atitude brusca.

“Emily é uma amiga de infância. Houve um tempo em que nossos reinos eram parceiros nos negócios... posso dizer que até amigos. Nos conhecemos em uma das festas e dali em diante somos praticamente irmãs. Houve uma guerra... já tem uns seis anos que somos inimigos, mas sempre demos um jeito de nos comunicar e nos ver em segredo. Criamos um canto específico... para que só a outra entendesse o significado. Foi com ele que ela me chamou hoje.”

“Era som de preocupação... Perguntava se eu estava bem e se poderia me encontrar. Desde que fugi... não nos vemos. Não pensei e simplesmente parti. Faz quase quatro meses desde que saí da água e não voltei. Entendo o desespero para saber se eu estava viva ou não... o que teria acontecido.”

“Acredito estar, sim, correndo risco. A última vez em que uma mulher fugiu do casamento arranjado em meu reino, ela foi presa e depois morta por desonra. Foi minha tia-avó. Ela serviu de aviso... como eles costumam dizer.”

“Eu não queria dizer isso para não parecer que estou usando vocês... mas de alguma forma... estou.” Procurei nos seus olhos o perdão. “Eu realmente amei o lugar, as pessoas... nunca fui tratada por ninguém como sou aqui. O carinho, a preocupação... não é apenas ordem e ordem e ordem, disfarçadas de amor. Aqui tenho amigos de verdade, conheci você... Você me protege, de alguma forma tem receio de mim...” sorri, meiga. “... eu nunca vivi isso. E ao mesmo tempo é muito conveniente estar em um castelo que se esconde. Principalmente neste momento, em que me sinto caçada por todos... Desculpe.” Olhei novamente para baixo, passando os dedos pelos cabelos.

[P.O.V. Fera]

Acompanhei sua história, enquanto a realidade que narrava de sua família e de seu reino se tornava cada vez mais terrível. Não parecia estar mentindo... De onde vinha sua doçura, em meio a tudo aquilo?

Ainda estava decidindo se me sentia usado como ela mesma sugeria, quando mencionou minha insegurança e virei minhas orelhas para trás. Desviei por um momento os olhos enquanto terminava de falar, não respondendo imediatamente.

“O Castelo... lhe ofereceu abrigo por conta própria. O que os servos... ou eu fazemos, também é decisão nossa, e não foram exigências. Eu só não toleraria se o perigo chegasse até aqui. Preciso proteger os outros que, como eu, não teriam outro lugar para ficar. E eles têm suportado minha companhia por todos esses anos; é o mínimo que devo a eles.”

Voltei a encarar seu rosto, mais sério do que já fizera até então. “Vou acreditar que essa amiga tão antiga é digna de confiança. Mas não vou aceitar qualquer ataque ou invasão, causados por ela ou qualquer outro. Quero continuar a protegê-la, mas Gaston foi o último invasor que ainda tentei, mesmo em vão, poupar.”

Cheguei um pouco mais perto do fogo, vendo as chamas dançarem na área protegida junto à parede, as formas inconstantes das luzes iludindo meus olhos. “Já tantas vezes quis sair daqui... me reintegrar num mundo que pudesse me receber... mas as sociedades continuam decepcionando minhas expectativas. Talvez meu lugar fosse mesmo uma caverna, e vivesse menos mal sendo mais animal... do que menos monstro.” Voltei a olhar para ela. “Eu é que sinto muito, que tenha que preferir um lugar como esse do que aquele de onde veio.”

[P.O.V. Bela]

Conforme falava, meu coração foi acelerando e os olhos acabaram por lacrimejar um pouco. Tentei me conter para o drama não ser muito grande:

“Não vai tolerar? Quer dizer... eu sei que trouxe problemas para o castelo pela segunda vez, mas, por favor, não me mande embora! Farei tudo para não me expor novamente...”

Assenti com aquilo que dizia sobre o animal e o monstro, além de sua última fala. Olhei para baixo por alguns instantes, ouvindo-o ainda um pouco temerosa.

[P.O.V. Fera]

Franzi o cenho, até perceber que não fui totalmente compreendido. Soltei um suspiro, novamente me aproximando da banheira, pousando a pata bem lentamente em seu ombro. “Eu disse que quero continuar a protegê-la e vou fazê-lo. Fiz uma promessa. Só não estou na melhor disposição para intrusos... e o que é ter disposição?” acrescentei bem baixo, para mim mesmo.

Tentei acariciar sua pele sem arranhar com as garras, usando mais as almofadinhas da palma; seria melhor mudar de assunto. “Que bom que conseguiu curar seus próprios ferimentos nessa água.” Olhei as marquinhas visíveis sob a superfície. “Espero que sumam...” pensei um pouco sobre quando eu estivera sendo tratado por ela. “Deve ter notado as minhas... são vários anos me metendo naquela floresta, com seus habitantes... alguns tombos e testes infelizes... já que o Castelo não é bem feito para alguém do meu tamanho. E, bem, outros tipos de erro também...”

[P.O.V. Bela]

Ouvi-o com atenção, percebendo o quanto eu estava nervosa e, assim, acabando por não compreendê-lo adequadamente. Respirei lentamente e fundo para me acalmar enquanto ele falava tocando meu ombro. Fiquei feliz pelo toque... havia sido o primeiro de sua vontade? Mas não consegui sorrir ainda por tudo o que se passava dentro de mim.

Assenti mais uma vez, entendendo de fato suas intenções. Agradeci pela promessa, baixinho, antes de suavizar a expressão quando comentou sobre minha cura. “Também espero que sumam, mas pode ser que eu fique com uma marquinha clara...” falei com um pequeno sorriso, também olhando para saber como estava agora. “Mais um pouquinho e está perfeito. Não é como água do mar, mas ajuda bastante.”

Cheguei ainda um pouco mais perto dele para olhar também sua pele, debruçando os braços na borda da banheira. Pus a mão que me acariciava à frente, passando a mão nos pelos que grudavam à toa na minha palma com membranas. Apontei para uma de suas marcas com delicadeza:

“Só reparei nestas assim... onde o pelo acaba não crescendo mais por cima. Mas não são tantas.” Continuei passando os dedos pelos fios devagar, acabando por notar mais algumas. Segurei-o com carinho: “Sua história é bem intensa, não é mesmo?”

Estava começando a sentir alteração em sua pele. Arrepio? Fingi não perceber, mas lhe sorri, de fato agora o afagando um pouco. “Ah, tem uma coisa que não deve saber sobre nós! Curiosidade!” quis trazer mais doçura ao diálogo. Retirei parte da cauda da banheira e passei sua pata levemente pelas escamas, que mexeram como se fossem lantejoulas.

“Não são grudadas!” esperei sua reação como um bichinho na expectativa após uma brincadeira.

[P.O.V. Fera]

Fiquei aliviado quando pareceu se acalmar e entender melhor minhas palavras e intenções. Acompanhei seu olhar sobre o próprio corpo, verificando os machucadinhos restantes, sentindo nova onda de raiva contra os lobos da floresta. “Ainda acho este dom incrível... é somente seu, ou é mais comum?”

O toque frio de sua mão me surpreendeu. Notei melhor o formato de suas unhas e as membranas entre os dedos enquanto acariciava a pelagem do meu braço, fazendo com que me arrepiasse aos poucos. Assenti quando mencionou o número de cicatrizes e o que isso representava. “Sim... é um jeito de dizer.”

Ergui as sobrancelhas com sua animação súbita, deixando que sua mão guiasse a minha ao acariciar as escamas de baixo para cima, pinicando minha palma. A surpresa do gesto, sua expressão depois cheia de entusiasmo, a facilidade com que mudou o assunto para apagar o peso do que vínhamos dizendo... tudo isso me deixou um momento sem reação, até que caísse em uma risada rosnada e barulhenta.

Senti todo o nervosismo e a ansiedade das últimas horas escapar naquele riso bobo e um tanto descabido, deixando os olhos fechados. Quando fui voltando ao normal, fiz um esforço para continuar o assunto dentro desse espírito de “análise”, já que a visão dos corpos e o contato físico não pareciam ter para Bela o mesmo significado a que eu tinha me acostumado.

“Realmente, não são como esperava... e são mais brilhantes também. Não que eu tivesse qualquer referência confiável... Acho que esperar que você seja como um peixe é como esperar que eu fosse como um urso.” Comentei. “Vocês trocam de escamas às vezes? A cor depende da família?”

Acomodei-me junto à banheira. “Não sei se teria algo interessante para informar...” pensei por um momento. “Ah, meus olhos. Nenhum ser vivo de que eu saiba, na terra, tem estava parte dos olhos negra. São sempre claras, como os seus.” Olhei para outra direção, para que as íris claras se desviassem, destacando o preto. “E... só esta parte do meu pelo cresce sem parar.” Segurei a “juba” com a pata ainda seca, mostrando o quanto era mais longa na cabeça, no pescoço e ao redor da mandíbula. Aqueles “cabelos” desciam pela linha da coluna até o meio das costas, onde já estava vestido. “Aliás... preciso cuidar melhor disso...” pensei em todos os nós que tinha e ignorava.

[P.O.V. Bela]

Senti o alívio pousando em meus ombros quando ouvi sua risada. Eu havia conseguido! Ri também um pouco, mas não tanto quanto ele. Senti que relaxou, estando ainda mais capaz de interagir.

“Acredito que seja como os pelos... umas pequenas soltam vez ou outra e são repostas. Mas nunca vi ninguém com falta de escamas, mesmo os mais doentes.” Dei uma risadinha e confirmei sua próxima pergunta. “Você é muito bom em palpites, realmente! Depende, sim, da genética, mas ainda mais da profundida da água. Todas as sereias do meu reino tendem para os tons frios e desbotados de cauda, peles variando do acinzentado ao amarelado... porque nosso reino é localizado bem no fundo da costa do oceano Atlântico. Um pouco antes da costa, na verdade... e precisamos de mais claridade na pele para sermos vistos. Emily, por exemplo, é de uma área bem mais acima do Mediterrâneo e por isso é laranja. Sereias de água doce são mais próximas a essas que são comentadas nos livros.” Sorri.

Debrucei o corpo um pouco para frente para ver melhor as escleras negras. “Nooossa!” olhei por alguns segundos antes de voltar à posição em que eu estava e observar os pelos-cabelo.

“Minha espécie... ou raça... de sereia, tem guelras aqui.” Mostrei a região inferior dos pulmões, levantando o braço. “E também respiramos na água doce... mas incomoda.”

[P.O.V. Fera]

Acompanhei suas explicações, assentindo às vezes com alguns gestos de cabeça. Fazia sentido que fosse adaptada a seu ambiente, como qualquer ser deve estar. Exceto eu, que não era adaptado a castelos. Fiquei um pouco encabulado de ser examinado, mas tentei ignorar, e ouvi com atenção as informações seguintes. Contive a curiosidade de tocar nas guelras, uma área sensível (eu imaginava), com patas que não estavam perfeitamente limpas... afinal, ela respirava por ali. “Deve ser... curioso respirar de dois jeitos diferentes.” Pensei em voz alta.

Lembrei-me de quando pretendia sair da praia, e uma onda “pegou-a”, depositando seu corpo bem além das pedras. Por sua expressão, aquela não parecia ser sua intenção. “Como aquilo, o mar vindo pegá-la, aconteceu? Ele está... vivo e consciente de algum jeito?” perguntei. Para ficar justo, acrescentei depois. “Se quiser saber mais do Castelo, posso tentar explicar, mas prometi que não me intrometeria nos assuntos particulares de nenhum outro habitante.” Concluí.

[P.O.V. Bela]

“Ah, isso!” comentei com sua pergunta que, logicamente, em algum momento iria aparecer. “O oceano, mesmo nomeado de várias formas e dividido em pedaços pelo homem, é um só. Está sim, consciente e é como Deus para nós... a única diferença é que ele se expressa. Chamam-no por várias maneiras de acordo com as crenças. Alguns acreditam que seja algo ou alguém que o controla, já outros – como eu – acreditam que ele seja uno. Ele se controla... por isso não o chamamos com nenhum nome de deus específico, apenas o clássico Oceano! Tudo sabe e tudo vê como deuses... e acreditamos que seja parcial. Escolhe o que afunda, o que boia, o que lhe pertence, ataca com ondas gigantes. Então, se ele me ajudou a chegar na praia mais rápido para eu fugir e nunca impediu meus encontros com Emily... provavelmente ele queria assim. Acredito que o Oceano escolha os seus, e tenho a esperança que ele também esteja ajudando para que eu me esconda. Se for justo, como acredito que seja... meu pai perderá a guerra.” Fui mais sincera do que esperava neste último comentário.

Fiz alguns movimentos para poder sair da banheira ao ver que estava totalmente curada. Olhei-o de forma que entendesse que poderia ficar. Fechei os olhos e me concentrei, a cauda diminuindo rapidamente e as pernas ressurgindo. Tudo se fechou e ficou no formato humano antes de a pele mudar de tom. Respirei fundo, sentindo os pulmões e movi-me para levantar e ir até a parte do chuveiro para tirar o sal que ainda me envolvia.

Ao ligá-lo, pedi que falasse com seus servos e pedisse comida, já que eu gostaria de repor as energias depois de tudo aquilo. Ergueu-se imediatamente, saindo do cômodo. Meu banho foi rápido, mas não quis deixar de cuidar dos cabelos. Sequei-me, pus o vestido rosa quentinho que ali haviam colocado para mim e fui encontrá-lo na varanda pequena de seu próprio quarto, com o sorriso que ele via com mais frequência.

“Você me perguntou sobre a cura... não são todas nós que podemos fazer. Geralmente é quando há parentesco mágico na família. Isso é exclusivo das mulheres... não sei o motivo.” Olhei seu jardim com certo carinho e encanto ali de cima. Lembrei-me de algo importante, falando com pressa, mas classe, antes que trouxessem a comida.

“Eu gostaria, sim, de perguntar sobre algo... o quanto souber ou puder responder. Há uma rosa flutuante e brilhante no seu quarto. Ela é curiosa. O que é?” apontei-a por estar perto. “Não me traz receio... mas apenas consigo sentir que é poderosa. Tem relação com sua sentença aqui ou com o próprio castelo?”

[P.O.V. Fera]

Minha surpresa tornou-se assombro ao ouvi-la falar do Oceano, não só pelo respeito com que se referia a ele, ou mesmo a devoção que cheguei a ver brilhar em seus olhos, mas com maior intensidade ao receber a informação de que se tratava de uma verdadeira entidade, com vontades e um poder difícil de imaginar. Não conseguia lidar facilmente com manifestações divinas tão claras, ficando cada vez mais sem palavras.

“Não sei como... digerir isso.” Passei a pata na cabeça, batendo com a garra em um dos chifres. “Eu acredito em você. Só não estou acostumado a ver... esse tipo de coisa confirmada. Nunca fui além da existência da magia. Mesmo assim não me vejo capaz de controlá-la. É bem diferente de ter um deus em nosso mundo... cobrindo dois terços dele.”

Pensamentos rápidos cruzaram minha mente. E o céu? A Lua e o Sol? A Terra? Seria algum outro deles realmente divino? Gaia era real? Senti um arrepio percorrer meu corpo, um misto de respeito, encantamento e medo diante de possíveis existências que sequer poderia entender...

Ainda estava muito absorto com minhas divagações quando realmente entendi seu último comentário, em relação ao pai e àquilo que ele promovia. Estava para lhe perguntar mais sobre essa figura tão difícil, quando vi que se preparava para sair. Ia começar a perguntar se queria que eu saísse, ou a ajudasse a se locomover a algum lugar, até que sua transformação bem diante de meus olhos me distraiu.

Acompanhei aquela metamorfose que parecia inexplicável para a natureza; a mudança de tamanho, de textura, de cor. Continuei tão absorvido que não notei que não tinha fechado a boca, e que logo estava diante de uma mulher que parecia ainda mais nua do que antes, sendo isto possível. Tive sensações incomuns, o sangue fugindo para o rosto... e antes fosse apenas ele. Minha respiração aqueceu as narinas.

Quando falou comigo, senti como se um raio me atingisse, fazendo com que voltasse à realidade. Saí para atender a seu pedido quase correndo, antes de ter respondido qualquer coisa; achei melhor dar um pulo na varanda para pegar um ar fresco no rosto e amenizar a expressão antes de tentar sair do quarto.

As moças ainda estavam bem ao lado da porta de meus aposentos, coisa de que já havia me esquecido. Ficamos nos encarando em silêncio por alguns segundos, situação que se tornava cada vez mais constrangedora, já que imaginava que conseguissem ver como estava perturbado por minha expressão. Logo eu pareceria culpado ou suspeito.

“Está tudo bem?” Madame Samovar perguntou, para tirar de mim alguma resposta.

“Sim, sim... está.” Eu disse.

“Ouvimos o senhor rindo.” Plumette comentou, com grande estranhamento pela frase que dizia.

“Esse tem sido um dia... surpreendente.” Bufei, sacudindo um pouco a cabeça. “A princesa está bem. Estamos esclarecendo algumas coisas. Pediu algo para comer. Eu gostaria de acompanhá-la. Vamos comer na varanda.”

“É para já!” Madame respondeu prontamente. Já sabia que uma refeição completa estaria a caminho em poucos minutos. Vi o grupo desaparecer no corredor antes de retornar para o quarto. Decidi esperar por ela naqueles últimos minutos já na varanda.

Quando veio até mim, saindo do banheiro com seu vestido rosa, eu já estava recomposto, olhando por cima do parapeito para as plantas abaixo. Puxei para ela uma cadeira junto à mesa de pedra esculpida, enquanto continuei sentado no chão; aqueles assentos eram muito pequenos para mim.

“Certo... existem outras diferenças entre os sexos do seu povo?” indaguei, depois que respondeu a minha pergunta anterior. Lembrava que a magia estava em seu sangue, e que já mencionara uma tia.

Notei quando seu olhar desceu ao jardim como eu estava fazendo pouco antes que chegasse. “O inverno daqui é longo, mas já vejo o verde retornando em alguns pontos. Pode ser que tenhamos uma primavera mais cedo desta vez, e ficarei feliz em mostrá-la...” sorri levemente.

A comida chegou e nos foi servida rapidamente, pratos simples e de preparo rápido, com saladas, pastas, opções de pães e ervas aromáticas, queijos e caldos. Começamos a comer, enquanto Bela fez sua pergunta e eu pensava na resposta.

“Sim, é algo fácil de notar.” Disse, rindo pelas narinas. “E ela de fato está ligada à magia do Castelo. Deve ter notado que já perdeu um bom número de pétalas, mas está aberta desde que cheguei, sem murchar. Tudo de que me lembro... é que ela conta a passagem do tempo para algo importante que vai acontecer. Os demais servos também sabem... e há uma grande ansiedade para quando nosso tempo acabar. Não sabemos se será algo bom ou... terrível. A espera é angustiante. Não ousamos mexer muito nela e correr o risco de... algo acontecer de errado. Fica aqui apenas porque a mesinha onde repousa está presa por magia. É como um constante lembrete.”

Voltei a comer, pensativo. Outro tema voltou a minha mente, um que não ousava perguntar. Se fosse questionado, não poderia mentir: diria tudo o que ouvi do diálogo de Bela e Emily. O que então me ecoava no espírito era o que a jovem dizia sentir em relação a mim... a nós... e o que aquelas palavras significavam. O que eu acreditaria que significavam.

E o que eu sentia em resposta?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Bela e a Fera - Livro 1" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.