A Bela e a Fera - Livro 1 escrita por Monique Rabello, Kyrion


Capítulo 11
Capítulo 9: Lampejo




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[P.O.V. Bela]

Algum tempo havia se passado desde o último acontecimento intenso do castelo. As aulas continuavam todos os dias e fui melhorando cada vez mais, tendo a gostosa sensação de Philippe entender melhor o que levava no dia para ler.

Uma ou outra vez, mais inspirada, gastava todo o meu dia nas buscas por revelações para ajuda o dono do castelo como havia prometido. Comecei pela biblioteca. O lugar mais óbvio e também mais difícil por seu tamanho. Poderia estar em qualquer lugar, desde os mais esperados até uma ilustração infantil com imagens secretas. Aquilo levaria bastante tempo... mas não me deixei desanimar, a promessa sendo mais forte em meu interior.

Passei dois ou três dias parando à frente de cada prateleira e folheando os livros um a um... mesmo sem ler, para ver se havia algum envelope, material ou anotação dentro que pudesse dizer algo. Nada. Eram impecáveis, mesmo os velhos volumes, mas não parei até terminar a primeira ala e uma ideia interessante vir à mente: se os livros que contivessem informações importantes quisessem ser encontrados, eu poderia conseguir. Não sabia se isso funcionaria fora do oceano... mas não custava tentar. Não era ainda boa nisso.

Tentei sentir algum tipo de presença ou aviso vindo do lugar, e alguns locais chamaram a atenção de meus olhos. Não percebia exatamente de que objeto vinha, mas me direcionei junto a eles, passando as páginas com mais cuidado. Esfriava um pouco e minhas pernas cansavam, então decidi sentar-me em uma das poltronas que apanhasse sol. Levava uns vinte livros para perto, olhando atentamente cada um. Até que aconteceu.

Entre as páginas de um dos livros mais antigos, ainda que bem conservado, marcações negras e falhas começaram a surgir. Perdi o fôlego, levando-o para um pouco mais perto da janela. A nitidez melhorou, mas ainda não conseguia entender... Até que percebi que podia não ser a claridade que fazia os símbolos aparecerem, e sim o calor. Fechei o livro, correndo até a cozinha.

Ao passar pela sala, Lumière e Horloge vieram atrás de mim preocupados. “Mademoiselle! Mademoiselle! O que houve?”. Já paramos junto ao fogão, que estranhava tudo aquilo. Os dois subiram na pia de mármore ao meu lado, Samovar vindo para participar.

O fogão ligou uma de suas maiores bocas para mim e eu passei o livro fechado perto o suficiente para que ficasse bem quente, mas não queimasse. “Começaram a aparecer umas marcas nele em nanquim quando ficou perto do sol... pode ser que o calor revele alguma coisa!”

Todos se animaram claramente, e mesmo quando apoiei o livro ao lado para abrir, Chef deixou as chamas bem acesas para que ainda houvesse o mormaço.

A primeira coisa a aparecer foi justamente na primeira página. Um nome. D. Hurricane. Meu coração acelerou e nós quatro nos entreolhamos... um silêncio começou enquanto eu passava as páginas, eles me ajudando a ler os títulos do que pareciam ser feitiços complexos para que pudéssemos passar mais rápido pelas páginas, em sua maioria, rabiscadas.

Alguns feitiços possuíam datas e outros, apenas sinais. Seria um material de testes ou estudos contínuos? Até que, depois da metade do livro, já sendo a terceira vez que o esquentávamos, encontramos uma página específica. Transfiguração – Homem em animal.

Lumière debruçou-se na página, lendo como funcionava, chegando à parte da azaração que fazia daquele animal primário emergir a aparência que o bruxo desejasse. Abaixo da página...

“Kyrion, 1763.” Madame leu a caligrafia do mago.

“Será possível?” Lumière levou as velas ao peito.

Minha mão já estava na boca e meu coração conseguiu acelerar ainda mais. “Preciso avisá-lo!” Madame confirmou, e saí rapidamente mais uma vez, agarrando Lumière pela base. Não fui seguida.

Chamava-o bem alto, mas demorou um pouco para que achássemos a direção correta de onde estava. Meu último “Fera!” foi ouvido de longe e ele respondeu, o candelabro me dizendo aonde ir conforme ouvíamos algum instrumento tocar. Ao entrar no cômodo, cumprimentei o cravo rapidamente antes de me voltar.

“Amo! Bela encontrou algo importantíssimo!!”

“Apenas aparece no calor!” eu estava tão nervosa que me sentia tremer. Contei cada detalhe de como encontrei a pista e apontei ansiosa para a anotação no canto da página importante. “Acredito que possa ser seu nome!” deixei o livro em suas mãos para que pudesse olhar melhor e levei novamente as mãos ao rosto, incrédula.

***

[P.O.V. Fera]

Às vezes, apreciava passar as tardes na companhia de Maestro Cadenza, esta figura peculiar mesmo para os padrões do Castelo. Ele não se importava que eu pouco falasse, ou que tivesse que falar por nós dois. Podia passar um longo tempo contando histórias de sua Itália natal, e nunca questionei quais eram reais. Outros dias, tentava me ensinar italiano, e várias vezes fui à biblioteca para fazer algum estudo no assunto. Um grande número de vezes, porém, apenas escutava-o tocar, praticando alguma música para que não a esquecesse, aprendendo alguma nova que eu lhe tivesse trazido, encontrada entre outros papéis. Também se arriscava a compor, de vez em quando.

No Castelo, dava-me bastante bem com ele, principalmente depois que o ajudei a desempenar uma perna. Respeitava meu humor inconstante, dizendo que era algo comum a “espíritos de grande gênio”. Achava gentil, embora sempre tenha me achado mais genioso do que genial.

Ficamos ambos bem surpresos ao ouvir Bela se aproximando com tanta pressa, e a expressão transtornada de seu rosto. Ouvi sua narrativa, sentindo a expectativa crescer diante da perspectiva da descoberta. O escrito – o provável nome – D. Hurricane trouxe uma sensação vaga ao meu espírito, inquietante justamente por ser imprecisa. Uma figura baixa, cercada de negro, tão ameaçadora estando calma quanto furiosa. Era algo que estava ali, bem no limite da mente, ainda fora de alcance. A frustração crispou minha expressão, pressentindo um culpado para aquilo...

Segui a indicação de Bela para a anotação que só se revelou sob o calor das chamas de Lumière. Fiquei um bom tempo sem reação. “Kyrion...?” Esse nome não dizia nada, nem mesmo a revolta que proporcionou o outro. Seria o meu?

“É isso o que eu sou? O resultado de um feitiço? Eu sou... ou deveria ser... um animal? É assim que sou visto... se permite deduzir que o nome é meu...”

Raiva e decepção cresceram juntas. Por quê? Por que eu teria sido amaldiçoado daquele jeito? Não sabia se, encontrando o responsável, teria tempo e discernimento para pedir uma explicação antes de pular em sua garganta. Percebi que minhas patas tremiam e que as garras começavam a furar além da capa.

“Que maldito animal ele tinha em mente quando me fez?! É um péssimo feiticeiro! Ou passou bastante tempo praticando em mim!” devolvi o livro a Bela, não com muita delicadeza, percebendo que iria destruí-lo se continuasse comigo. Vi a expressão preocupada de Lumière e Cadenza, apreensivos com minha reação; e o rosto da princesa, que dedicava tanto tempo tentando nos ajudar. Não era para eles que queria dirigir toda aquela fúria, mas tampouco conseguia me impedir de senti-la.

Afastei-me alguns passos, até parar ao lado de uma coluna do salão de música; de costas para o grupo, rugi enfurecido com toda a força que tinha, acertando o pilar com um soco que o fez vibrar. A dor aguda percorreu até meu ombro. Respirei fundo, arfando, até terminar em um suspiro que soou como um gemido.

Ainda demorei alguns instantes em silêncio, olhando para baixo, até encostar a cabeça na coluna. Pelo canto da visão, vi que o grupo continuava no mesmo lugar, aguardando. Porém, não conseguia encará-los.

“Eu só... não consigo aceitar. Ou entender.”

Sentia muito mais do que conseguia expressar com palavras. Saber que alguém tinha mesmo a intenção de me tornar um monstro... ou que não tivesse a consideração de reverter os próprios erros. “Será que sabia que eu continuaria consciente? Não tem opção melhor... entre ser intencional ou acidental.”

“Senhor. Se este livro indica mesmo o que lhe foi feito, pode também indicar como desfazer.” Cadenza se manifestou, procurando meios de me trazer de volta à parte produtiva das descobertas.

“Nenhum de nós sabe magia.” Retruquei.

“Pode haver algum jeito. Há uma biblioteca inteira para procurar, e pode-se descobrir algo mais sobre o responsável.”

Apenas bufei, com descrença. O maestro voltou os olhos a Bela e Lumière, querendo prosseguir. “Seria possível... continuar e ver... outros... feitiços?” perguntou. Sua voz parecia mostrar uma grande dificuldade para fazer esta simples questão, o que me fez voltar os olhos para ele, confuso. O candelabro pareceu compreender algo que me escapou.

[P.O.V. Bela]

“Claro!” exclamei rápido para o cravo-senhor, para tentar dar continuidade àquilo sem que pudesse controlar, ou mesmo tentar, as emoções de Fera. Era o seu momento. Eu não podia me desculpar agora por tê-lo chamado de animal. O que pensava ser? Preferia pensar que aquela era sua real vida? Fiquei sentida por nem mesmo um gesto de agradecimento ter sido mostrado, mas ao mesmo tempo entendia, mesmo que não completamente, o nervosismo que ele deveria estar passando.

Comecei a passar as páginas do livro com mais rapidez, Lumière lendo os títulos para nós, mantendo as mãos próximas às páginas: “Transfiguração objeto-pergaminho; objeto-pena; animal-objeto; objeto-metal... sólido-líquido; líquido-sólido; humano-ob...” o candelabro tremeu, não conseguindo continuar. Maestro Cadenza quase gritou perguntando o que era.

“Transfiguração humano-objeto.” Li trêmula na voz, levando mais uma vez a mão à boca, os olhos enchendo de água. “Está escrito ‘castle’ ao lado, senhor Cadenza.” Então era isso? As chamas de Lumière apagaram. “É isso o que aconteceu com vocês?” já perguntei chorando. Nada saiu deles. “E não podem falar sobre o feitiço... oh, Deus...” abracei o objeto dourado nem sabendo como me expressar.

“Fera...” chamei chorosa, medrosa até, levando o livro ao peito. “Vocês foram amaldiçoados pela mesma pessoa... mas por quê?” olhei para as páginas novamente. “Algo precisa me dizer, já que vocês não podem...”

Recebi um olhar de esperança e angústia dos dois servos. Eu precisava conseguir. Dessa vez eu de fato possuía uma grande responsabilidade ali.

[P.O.V. Fera]

Acompanhei ainda de longe a leitura dos outros itens do livro, pressentindo que algo mais se revelaria naquele dia. Não estava enganado. As reações dos servos fizeram com que me reaproximasse, mesmo que relutasse em fazê-lo. Estiquei os olhos para confirmar o que estavam dizendo, e vi a marcação na página, semelhante à primeira. Com as chamas de Lumière apagadas, a tinta escura logo começou a desaparecer, e o ambiente mergulhou em uma tonalidade mais fria.

“É verdade que não conseguem falar sobre o ocorrido?” indaguei. Seu silêncio e seu olhar foram mais eloquentes do que qualquer resposta. “Foi realmente o mesmo responsável por ambos os feitiços? Já sabiam disso?” Senti novamente um ódio profundo amargar até o fundo de minha garganta contra aquele nome... Até algo mais forte tomar conta de mim.

Era o mais completo pânico.

Arrebatei o livro das mãos de Bela, começando a folheá-lo desesperadamente, lendo tão rápido quanto podia, algo quase irreal. Virei páginas freneticamente, implorando por estar errado em minha suposição.

Finalmente achei e li em voz alta, quase um sussurro rouco: “Conceder movimento a objetos inanimados. Obedecer a ordens. É isso que os demais objetos são? Aqueles que respondem... mas não falam e não têm rosto? Esses já foram alguém?” a angústia me consumia, e trocava olhares com Lumière e Cadenza. Aparentemente, aquela era uma pergunta que podiam responder, por não dizer respeito a eles mesmos.

“Não, senhor. Estes são apenas objetos. Como o Castelo precisava cuidar de si mesmo, era preciso alguma autonomia. E ajuda mágica.” O maestro-cravo explicou. “Obedecem aos funcionários... e ao senhor, ou a quem mandar. Sem consciência.”

Consegui respirar de novo. Tremia mais uma vez. Notei que Lumière tentava ser tranquilizador; também devia uma explicação à jovem. “Graças aos céus... Eu nem sei o que faria se...” também os meus olhos marejaram. “Eu já destruí objetos animados, que se mexiam cumprindo algo a mando de Madame Samovar, ou Plumette. Quando insistiam que eu deveria comer, ou tentavam limpar o quarto em que me encontrava. Eu não sabia desta maldição, sobre vocês. Que eram humanos. Por um momento temi que todos fossem e que eu tinha...”

Interrompi a frase, incapaz de verbalizar a culpa que teria me atravessado se aquilo se confirmasse. Os servos compreenderam meu desamparo e incentivaram meu alívio.

“Podemos garantir que nenhum de nós já foi atingido em uma situação destas, meu caro.” O cravo disse, em tom pacificador, com seu sotaque mediterrâneo. “Pelo menos, em nenhum outro lugar que não fosse o ego!”

“Isso! Isso! Não se preocupe, monsieur!” o candelabro se manifestou em apoio. Consegui um mínimo sorriso pela simpatia que recebia. Ergui os olhos até a princesa, bem à minha frente.

“Vou... recomeçar as buscas. Vou ajudá-la. É preciso acabar com isso. Descobrir o máximo possível para então tomarmos decisões. Obrigado... por ter descoberto. Foi fundamental. Só preciso de um tempo.” Pensei em ir aos meus aposentos refletir um pouco, mas sabia que apenas mergulharia em meus sentimentos de novo. “Vou dar uma volta. E me dirijo à biblioteca em no máximo duas horas.” Decidi, por impulso. Desci pela sacada, saltando direto ao pátio lateral. Saí pelos portões, preferindo correr sem me afastar das muralhas, ainda desconfiado do comportamento dos lobos.

Queria que a esperança e o foco motivassem mais minhas buscas do que o fervente ódio que sentia por “D. Hurricane”. Torcia também para encontrar sentido suficiente em mim, no tal “Kyrion” que pudesse ter sido e talvez voltasse a ser.


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