A Bela e a Fera - Livro 1 escrita por Monique Rabello, Kyrion


Capítulo 12
Capítulo 10: Bola de neve




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[P.O.V. Bela]

O clima de tensão passaria apenas aos poucos, dias mais tarde. A busca começou a tomar conta de todos nós e não mais tivemos tanto tempo para trocar risadas ou assuntos mais íntimos... Porém, havia o cuidado para que isso não consumisse todo o nosso tempo.

As aulas continuavam e, em um dia específico, uma situação agradável aconteceu. Parecia que aquela seria uma das últimas neves a aparecer. Ao olhar pela janela da biblioteca, percebi-a depositada... o céu quase limpo e todo o jardim lindíssimo de branquinho.

Pus a capa quentinha por cima do vestido rosa e peguei o livro com que eu estava praticando a leitura e fui para fora. Fera e os outros me olhavam sair e, pela janela, conseguiram me ver passando as luvas na neve, fazer pegadas de formatos diferentes. Philippe apareceu, e eu sorria, abraçando seu focinho antes de abrir o livro e sentar-me no chafariz, passando um pouco de neve em sua testa. Balançou a cabeça com um baixo relinchar contrariado e eu ri, continuando a estória para ele. Encaixou-se ao meu lado para ver as figuras do livro.

“Ora, mas ela adora mesmo esse cavalo!” Horloge comentou de seu jeito, não que fosse exatamente uma crítica. Fera olhava pela varanda parecendo pensativa. Lumière e Madame Samovar perceberam, sorrindo um para o outro.

“Vá lá ficar um pouco com ela, amo... continuamos aqui. O senhor está precisando.” O bulinho disse com voz compreensiva.

Apenas notei quando ele se aproximou, enquanto tentava cantar o que via no livro para o cavalo: “Oh, mas que lindo quadro! Quando eles se encontram no jardim... é... o príncipe encantado! E ela só descobre quem ele é quase no fim...”

O rabo de Philippe movia-se um pouco mais animado e parei ao ver o dono do castelo já perto o suficiente. Sorri-lhe com toda a sinceridade que me havia.

“Ele parece entender melhor quando eu canto a estória...” ria ao falar e o cavalo continuou animado, parecendo confirmar.

***

[P.O.V. Fera]

Comecei a participar das pesquisas e buscas para descobrir mais sobre o passado do Castelo, seus antigos moradores e os feitiços ou maldições que pairavam sobre nós. Perguntei a todos os servos, e confirmei que nenhum deles conseguia falar sobre seu próprio passado, à época em que eram humanos.

D. Hurricane era então uma figura que frequentava o lugar, e não levantava suspeitas sobre o que viria a fazer mais tarde; foi de fato quem me trouxe ao Castelo, já como eu era, de modo que sempre acreditaram que aquela era minha forma real, e não sabiam mais nada de minha história. Depois desse episódio, nunca mais foi visto. Senti que sempre eram um tanto reservados quanto ao assunto, temerosos com minhas expressões, principalmente se mostrasse irritação. Mesmo frustrado, logo desistia de pressioná-los.

Cochichos e conversas entrecortadas percorriam o Castelo; pareciam decidir sobre algo do qual eu não participava. Fingi ignorá-los, mesmo que minha audição não me deixasse de fora tanto quanto gostariam. Também investi na biblioteca, não fazendo outra coisa enquanto a princesa praticava sua leitura e a escrita – cada vez melhores. Não encontrei nada, mesmo testando uma porção de livros no calor. Tentei ainda de outro jeito, quando ninguém estava por perto: fiz a experiência de farejar o livro, para descobrir se alguma outra obra teria o mesmo cheiro, algo que indicasse que fora manuseada pela mesma pessoa. Não encontrei nada além do cheiro de papel velho, pó, tinta e couro. E o cheiro de Bela, cada vez que pegava uma obra já examinada por ela.

Naquele dia, estava já cansado das buscas sem resultado. Acordar e descobrir uma nova camada de neve no jardim não foi animador. Intimamente, esperava pela primavera, quando poderia mostrar as flores a Bela e ver a sua reação. Olhava pela varanda, pouco depois da refeição, os servos me fazendo companhia. Vi a jovem atravessando o jardim, cheia de vida como de hábito. Meus olhos a seguiram automaticamente.

“Ela é bonita, não é?” Lumière comentou, ao meu lado no parapeito, com admiração sincera, e sem o charme conquistador habitual. Concordei com a cabeça, ainda acompanhando sua figura junto ao cavalo. Madame incentivou-me a descer, ao que Plumette concordou.

“A companhia dela pode animá-lo um pouco, senhor.”

Não encontrei resposta, e apenas desci, cruzando o Castelo, ainda um pouco distraído, até sair pela escada, com a neve gelada mordendo outra vez minhas patas. Sua voz me alcançou enquanto me aproximava.

“Ele com certeza aprecia quando você canta.” Respondi a seu comentário com um pequeno sorriso, ficando de pé junto a eles. O animal concordou com um movimento de cabeça. “Logo ele conhecerá mais literatura do que a maioria dos habitantes desse país!”

Philippe novamente se agitou, bufando, sacudindo a cabeça e olhando para mim, como se respondesse. Bufei de volta, e sacudi a minha. Ele pareceu satisfeito com nosso diálogo, o que melhorou meu humor.

Ergui novamente o olhar, contemplando a paisagem branca, o riacho carregando montinhos de neve, os galhos nus que esperava ver cobertos de brotos em breve. Dei alguns passos, prestes a recomeçar algumas reflexões, quando fui atingido na orelha e no chifre esquerdos por uma bola de neve. Sacudi-me, confuso. Bela estava exatamente na mesma posição em que a vira da última vez, e não enxergava mais ninguém próximo a nós.

“Hey! Por que fez isso?” perguntei à jovem, também pegando uma porção de neve na pata, para lançar nela. Não percebi que eu sorria. A neve acertou a jovem no ombro e ela fez – ou fingiu – uma expressão surpresa não muito ofendida. O livro foi deixado de lado, e a revanche não demorou a vir voando em minha direção. Estava declarada uma guerra.

Philippe saiu discretamente, procurando refúgio mais perto do estábulo. Bela era boa de mira, e eu era um alvo fácil, a menos que estivesse em movimento. As bolas de neve cruzavam o ar a todo momento e comecei a correr e saltar como um filhote. Tentei fazer a maior bola de neve que conseguia, mas meu plano falhou: um impacto bem na minha cara me tirou o equilíbrio e minha munição caiu sobre mim mesmo.

Quando a jovem foi procurar proteção no parapeito da pequena ponte, esperei até o momento exato para lançar um bolão sobre ela.

***

[P.O.V. Bela]

Levei a mão à boca com uma risadinha quase inaudível quando os dois começaram a “conversar”. Aquilo era de fato um amor e deixei a situação prolongar-se o máximo que pudesse para desfrutar dessa pura meiguice rara.

Quando se virou para sair, estranhei. Consegui perceber que suas noias mentais o pegavam de novo... já que claramente ele não teria entrado ali para falar uma frase, mexer com meu cavalo e ir embora. Lancei-lhe uma bolinha pequena de neve, voltando à posição antes mesmo de saber onde bateria.

Levantei-me sem pensar quando sua bolinha de neve chegou a mim. Corri atrás dele, montando algumas bolinhas para jogar, escapando da primeira bola grande que montava... mas não da segunda. Fiquei muito tempo sem olhá-lo e soltei um gritinho quando a neve veio em minha direção. Caí de bunda no chão. Tentei fazer uma maior também, mas não chegou nem perto dele quando a lancei. Ri disso, correndo para “caçá-lo” enquanto rolava na neve.

Uma vez até mesmo pulei por cima dele, dando uma bem no focinho antes de ir me esconder atrás de uma árvore. Divertia-me e meu coração estava feliz.

[P.O.V. Fera]

Fiquei um instante preocupado quando a derrubei com uma bola tão grande, mas logo tranquilizado quando se reergueu, com uma expressão determinada a me acertar. Sorrindo, decidi que não ia fugir daquele ataque, mas ficaria para ver o que conseguiria fazer. Também fiquei surpreso quando sua bola de neve caiu a apenas alguns passos da ponte, como se não tivesse motivação para chegar até mim. Soltei uma gargalhada que me fez dobrar o corpo, e ainda estava rindo e tentando recuperar o fôlego quando veio correndo atrás de mim.

Sua agilidade era maior do que pensei, apesar da neve escorregadia e do vestido; eu já não conseguia correr tanto, evitando derrapar ou me chocar contra as plantas do jardim, esculturas ou bancos, o que fez a perseguição divertida. O impacto e o gelo direto no focinho me fizeram espirrar e errar o “disparo” seguinte. Então me choquei contra uma árvore, para que derrubasse toda a neve que tinha nos galhos sobre nós. Ri para ela, deitado de barriga para cima, em parte recoberto de branco.

Não era preciso dizer qualquer coisa, e o silêncio foi confortável. Não soube adivinhar quanto tempo fiquei olhando, ora para o céu, ora para ela. Um vento frio nos atingiu, mais forte que antes, gelado em nossas roupas cada vez mais molhadas. Alguns novos flocos de neve começaram a cair. Preocupei-me com ela, apesar da capa que usava.

“Suba em mim e segure-se nos chifres se precisar.” Deitei ao seu lado e aguardei que se ajeitasse em meu pescoço, antes de me erguer e me dirigir ao Castelo a passos rápidos – lembrando no meio do caminho de desviar e salvar o livro. Subi as escadas aos saltos, e só andei devagar já dentro do grande saguão de entrada, muito escorregadio. Sem tirá-la das costas, levei-a até seus aposentos.

“Coloque outra roupa quente e seca. Vou encontrá-la no salão de visitas.” Disse, deixando-a descer antes de seguir para meu próprio quarto. Deixei a roupa secando perto do fogo (e meu próprio corpo, por alguns minutos) antes de escolher outro casaco e novas calças. Meu armário já tinha novas opções feitas pelos servos, algumas até decoradas de maneira sóbria, mais ao meu gosto, pelo que era muito grato. Tentei baixar o cabelo-juba, que já vinha tentando manter desembaraçado. Desci para esperar por ela.

Estava sentado na poltrona quando ela chegou e perguntei-lhe qual livro tinha escolhido para ser sua leitura atual. Enquanto conversávamos, Lumière, Plumette, Horloge e Madame Samovar entraram no carrinho da senhora bule, todos com expressões que iam da determinação ao nervosismo.

“Bela, amo, gostaríamos de contar mais algumas coisas das quais sabemos em relação ao antigo dono deste Castelo e do feiticeiro que o visitava, e que atendia pelo nome de Hurricane.” Madame começou, de jeito calmo e sério.

“Primeiro, precisávamos ter certeza de algumas coisas, e a concordância de todos.” Lumière explicou.

“Temíamos pela segurança... bem... de todos nós.” Interveio Horloge.

“Teriam um tempo para nos escutar?” Madame tornou a falar.

Assentimos, curiosos, em expectativa.

[P.O.V. Bela]

Posicionaram-se todos à nossa frente e Lumière pegou o chapeuzinho, olhando para baixo, nervoso. Arrumei-me confortavelmente, mas ainda tensa, para escutá-los. Madame adiantou-se. Estava claro que ela havia sido a escolhida como porta-voz.

“Nosso rei, a quem servíamos diretamente... era um feiticeiro. Por isso o lugar tem coisas sobre o tema. Magia. E o príncipe não possuía essas habilidades. Nosso próprio senhor era frustrado ao dizer que possuía muita dificuldade no assunto. Era mais estudo do que dom.”

“Este menino chegou ao castelo de repente. Não era de família nobre... falava inglês e tínhamos bastante dificuldade de entendê-lo. O rei era encantado com ele. E por mais que fosse amigo de nosso amo, sabíamos que esse interesse começaria a nos dar problemas. Era claramente favoritismo e não entendíamos o motivo. Até que um dia...” trocaram um olhar entre si e Plumette continuou.

“Até que um dia eu estava limpando as janelas da biblioteca e vi o jovem que respondia pelo nome de Tsumo levitando a mesa. Nosso amo não era apenas obcecado pelo poder que o menino possuía... mas também o estudava para entender o que faltava em si mesmo. Acabamos tendo medo de ele ser convertido e usado em caças, batalhas e...” sua voz travou.

“... E o que, Plumette?” perguntei.

“... torturas... que nosso amo fazia com os animais e pessoas que considerava inimigas.” Ela falou baixinho, com vergonha, e Madame retomou a palavra. Baixei meus olhos com isso.

“O menino sempre foi muito doce, mas melancólico, e passamos a ter um pouco de respeito e medo dele, cada vez maiores. Frequentava bastante o castelo e, por ciúme ou inveja, sua relação com o príncipe começou a piorar.” Lumière, a seu lado, suspirou. “Começaram a ter grandes brigas e um ano apenas havia se passado...”

Horloge pousou a mão nela, querendo continuar, para livrá-la do mal-estar. “Eles estavam conversando nos estábulos e lá passaram muito tempo até que ouvimos um jovem gritar com pavor. Corremos para lá e vimos o filho de nosso amo caído com olhos bem abertos, uma pedra grande na mão, e o jovem Tsumo desacordado, com a cabeça sangrando. Foi Chevet quem viu primeiro e me chamou. Ainda tentamos reavivá-los dentro do castelo. O rei gritava... gritava que não o matava por precisar dele.”

“Fui eu quem o viu acordar.” Madame Samovar estava tentando manter-se tranquila para continuar. “Tentei cuidar dele, alimentá-lo... e o rei veio como uma fera descontrolada quando o ouviu falar. Gritou e socou-o no rosto, segurou-o pelos braços... gritando e gritando de novo, querendo saber o que havia acontecido com o filho. Quando bateu na ferida, eu já estava chorando... mas não fiz nada.” Eu sabia que, se a bulinho pudesse, derramaria uma lágrima. “Subitamente o rei foi à parede com um olhar fixo do jovem e morri de medo... mas ele apenas me encarou... e disse que nós e o castelo pagaríamos por aquilo. E desapareceu.”

“Vocês o viram depois?” meu coração estava na boca.

“Apenas quando o senhor foi trazido para cá, amo...” ela respondeu, referindo-se a Fera. “O senhor estava desacordado e foi deixado sobre o trono, com magia. Recebemos ordens específicas de que deveríamos obedecê-lo, e não tivemos chance de falar com ele antes de sumir novamente.”

[P.O.V. Fera]

Acompanhei aquela história tensa sem ousar fazer qualquer interrupção, concentrado apenas em aprender o máximo possível. Conseguia perceber o esforço que era para os servos relembrar e expor tudo aquilo, o sofrimento que a ação lhes causava. Não imaginava o tipo de passado que pairava tão próximo, no local em que vivi todos aqueles anos.

Quando ergui o olhar, percebi que alguns outros funcionários tinham entrado silenciosamente na sala, mantendo-se afastados, às vezes nos olhando ou apenas encarando o chão. Chevet e o pufe que agia como cão foram os que chegaram mais perto, embora até ele mantivesse silêncio, talvez percebendo a seriedade do momento.

Troquei um olhar com Bela quando o silêncio caiu na sala. Até minha respiração pareceu ruidosa. “O que houve com o príncipe depois de ser encontrado daquele jeito? Estava morto?” perguntei quase em um sussurro. “E o rei, depois de ser lançado contra a parede, chegou a tomar alguma providência para se proteger ou ir atrás do jovem feiticeiro?”

Minha própria mente tentava trabalhar para preencher alguns espaços vazios. Tentei unir aquela narrativa com a minha chegada e com a rosa, acontecimentos criados pela mesma pessoa, mas não consegui. Temi estar ligado àquela família real tão egoísta. Havia ainda outro ponto. “Posso entender a fúria deste tal Tsumo... ou Hurricane, em relação aos nobres. Mas vocês não eram culpados. Se o que vocês passam é uma punição, ela não é justa.” Disse, e aguardei. Não sabia se havia mais do que aquilo que fora dito, ou mesmo se eram capazes de dizê-lo.

[P.O.V. Bela]

“Estava sim, amo. Estava. Nós o observamos por uns dois dias pensando ser algum feitiço que pudesse se desfazer. Mas ele não respirava e o enterramos. O rei ficou arrasado e não dormia... jurou encontrar o garoto e tirar a história a limpo. Passou a beber, não se alimentar direito e seu poder mágico, que já não era muito, começou a diminuir, o que o deixava ainda mais furioso. Quebrava tudo.” Madame Samovar respondeu à primeira pergunta, pensando sobre a segunda. “Não... o rei ficou paralisado. Eu tenho uma teoria, mesmo sem entender de magia. Poder mágico se manifesta sozinho?” ela lançou a pergunta diretamente a mim.

“Sim... o poder da pessoa pode agir em intensidades inimagináveis quando esta corre perigo... mesmo que não consiga controlá-lo.” Respondi.

“Então tem fundamento.” Ela respirou, aliviada. “Acho que o jovem tem um poder assustador e... acredito, sim, que ele tenha sido atacado pelo nosso jovem amo. Muitos de nós achamos que o grito foi dele. Mas não sabemos se foi quando apanhou... ou quando sua magia se manifestou. Não consigo acreditar que tenha feito isso conscientemente. Não tão jovem. Mas, voltando ao rei... ele um dia pegou seu cavalo, sozinho, e foi atrás dele. Alguns acham que estava bêbado... e nunca mais voltou.”

“Alguns de nós achamos que ele não passou nem dos lobos, amo...” Plumette complementou. “Foi logo em seguida que...”

Ouviram calados a declaração de Fera, fitando o chão melancólicos.

“Vocês se sentem injustiçados pelo que aconteceu?” perguntei.

Non, chérie. Nós merecemos.” Lumière segurava ainda o chapéu sem me olhar. Cruzei um olhar com Fera.

“Provavelmente não podem dizer o exato motivo...” Silêncio. Suspirei, pensando. “Acha que ele vai quebrar a maldição?” mais um silêncio, mas com uma pequena esperança.

“Seja como for, nós merecemos, chérie...”

[P.O.V. Fera]

A confirmação da morte do príncipe e o sumiço do rei responderam algumas questões, e fizeram nascer outras. Era estranho vê-los todos se culpabilizando tão claramente, quando estava acostumado a vê-los sempre como positivos, animados, com bons corações e as melhores intenções. Não conseguiam falar mais sobre o tema, logo, de nada adiantaria ir mais fundo. Correspondi ao olhar de Bela, e passei a pata na cabeça.

“Os demais envolvidos estão mortos ou desaparecidos. Não deve haver pistas ou registros úteis do ocorrido, a menos que o rei mantivesse um diário.” Falei, sem muitas esperanças. “Vocês parecem mesmo achar que o feiticeiro é alguém bom. Que matou por acidente ou por autodefesa, e que o que fez com vocês é merecido.” Pensei em voz alta, sem conseguir evitar alguma descrença. Não me separava inteiramente de algum antagonismo junto a essa pessoa. Desconfiança... Esperava que fosse apenas por saber que era responsável por tantos acontecimentos caóticos, principalmente meu caso, ainda não explicado. Mas e se houvesse algo mais?

Procurei disfarçar minha preocupação, sacudindo a cabeça e focando em outro assunto. “Vocês sabem – ou podem dizer – por que ele enfeitiçou também o Castelo? Consigo entender os objetos mágicos que cuidam dele. E as estátuas, que me vigiam e o protegem. Entendo até que seja difícil encontrá-lo, para que sejamos mantidos aqui sem interferência. Mas duvido que já fosse tão... sinistro antes. Nas esculturas, nos vitrais. Ele é todo habitado por monstros. O clima nele é mais agressivo. Mais de uma vez achei que tivesse consciência própria. O quanto dele já era assim?”

[P.O.V. Bela]

“Não sabemos ao certo o que ele se tornou, amo... mas achamos que, naquele momento com o jovem príncipe, foi defesa. Não podemos mesmo saber o que houve depois. Queremos acreditar que continua um bom homem, senhor... só queremos. Mas quanto a nós, sendo ruim ou bom... não tiramos sua razão.” Desta vez era Plumette que defendia um ponto de vista quase geral. “Já nos vitimizamos por muitos anos, amo, mas tendo a esperança de o feitiço ser quebrado. Imaginamos que não queira nos manter para sempre assim.”

Madame tomou a vez para responder sobre o castelo. “Quando... aconteceu... o castelo era belíssimo e demoramos a perceber suas primeiras mudanças. Achamos que tem algo a ver conosco. Não sabemos. Ele ficou feio bem mais rápido depois que o senhor chegou.”

“Ele lançou o feitiço em cada um ou no castelo?” perguntei, e movimentaram-se para que eu entendesse ser a segunda opção. “Isso existe, sim... ele pode ter dado certa vida aos muros e estes correspondem à energia de vocês. As casas de algumas bruxas do mar são horrendas por conta da quantidade de sofrimento que acontece no ambiente. Pode ter acontecido o mesmo aqui.” Avançávamos tanto que eu acabava me empolgando.

[P.O.V. Fera]

Percebi a mensagem que me era transmitida delicadamente, e só suspirei, incapaz de responder. Mesmo achando meus sentimentos justificáveis, não conhecia o bruxo bem o suficiente para emitir qualquer opinião. A explicação sobre os efeitos no Castelo prendeu novamente minha atenção.

“Esperem, então o Castelo também ficou mais feio e assustador por minha causa?!” a indignação foi minha primeira reação, mas depois a racionalidade foi me fazendo repensar, mesmo a contragosto. “Se o lugar reage a tudo o que vibra aqui... pensamentos, sentimentos, lembranças... principalmente se pega algo deste passado tão turbulento, tudo estaria explicado. Também faz sentido que pareça tão agressivo... e ameaçador... por minha causa.” Admiti, contrariado. “Realmente, já vejo as estátuas daqui como meus irmãos e irmãs.”

Acabou me ocorrendo a ideia: “Podemos tentar comprovar esta teoria. Contem imediatamente qualquer mudança que chegarem a perceber. Verificaremos se essa atmosfera mágica continua.” Ordenei. Toda a equipe assentiu. Outra espanador, da equipe de limpeza, adiantou-se timidamente.

“Senhor... em geral sou a responsável por limpar várias escadas e as estátuas nas colunas. Elas sempre me assustaram... mas, ultimamente, tenho achado suas expressões mais serenas.” Ela disse, causando alguma surpresa.

“É possível. Vamos continuar observando.” Eu disse, e mais uma vez concordaram. “Agradeço que tenham dado essas explicações. Quero que trabalhemos juntos e compartilhemos todas as informações que tivermos, pelo bem de todos. Por favor, contem sempre tudo o que lembrarem e puderem.” Insisti, e recebi uma confirmação geral. Pareciam aliviados e motivados com este objetivo em comum. “Contem e peçam o mesmo aos demais.”

O grupo começou a se retirar, deixando apenas os companheiros mais íntimos na sala. “Gostariam de comer alguma coisa? Uma barriga cheia e uma bebida quente podem ajudar em momentos assim.” Madame Samovar sugeriu, amigável.

“Sim! E é bom repor um pouco da energia depois de tanta correria na neve!” Lumière acrescentou, sorrindo largo. Senti as orelhas queimarem de constrangimento por ser sido observado. Concordei que trouxessem a refeição.

Ficamos novamente Bela e eu, sozinhos na sala, e um monte de ideias na cabeça. “Sabe...” comecei, depois de alguma espera. “Estou com medo de... ser este rei desaparecido. Não tenho memória... e vejo que me comportaria de modo bem semelhante ao dele. Ele nunca foi encontrado depois de partir.” Confessei a ela minhas preocupações. “Sei que não adianta pensar só naquilo que fui... mas se isso pudesse me orientar sobre o que fazer daqui para frente!”

Torcia para ter alguma nova descoberta ou revelação em breve. Com a possibilidade de o Castelo “interagir” com seus moradores, tive esperança de que viesse a nos ajudar de alguma forma, correspondendo a nossas expectativas. Era uma busca por todos nós.

“Agradeço por estar aqui. E ter mudado tanta coisa.” Peguei sua mão, tão pequenina contra a palma escura de minha pata.

[P.O.V. Bela]

Acompanhei as últimas informações compartilhadas sem tecer um comentário, despedindo-me carinhosa e agradecida a eles. Trazia as mãos no peito quando perguntaram se queríamos comida. Com tudo aquilo, eu nem havia pensado. Agradeci por serem sempre solícitos e o silêncio se fez.

Virei-me para ele, as mãos ainda no peito, atônita com aquilo que começara a dizer. Soltei um sutil suspiro. “Eu... também pensei nisso. Acho que todos nós pensamos. A probabilidade de ser é grande... e de não ser, também. Torçamos para que não. Pode ter destruído coisas... mas seu desespero quando cogitou ter machucado alguém não combina com um cérebro de torturador.” Falei doce e dei-lhe um sorriso, tentando confortá-lo da maneira que podia, mesmo ainda preocupada e então notando que realmente acreditava naquilo que eu mesma havia dito.

Era uma luta por todos. Não sabia se o castelo havia tido em algum momento um entendimento assim... era uma só causa e até mesmo essa atitude poderia mudar tanto os resultados... Com essa esperança no coração, olhei-o novamente para ouvir suas palavras.

Pus outra mão por cima da dele, ficando de frente, apoiada. Sorri olhando a pata tão maior e mais escura que minhas mãos. Falei sem lhe direcionar o olhar.

“É o melhor que posso fazer por aquele que salvou minha vida duas vezes.” Quando direcionou o sorriso aos seus olhos, o alimento chegou. Retirei as mãos lentamente, com tranquilidade, e fomos para a mesa ter a última refeição antes de encerrar aquele dia tão importante.


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