Éter escrita por Mayara Silva


Capítulo 3
Carne e Espírito




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“E, respondendo o anjo, disse-lhe: Eu sou Gabriel, que assisto diante de Deus, e fui enviado a falar-te e dar-te estas alegres novas. ”

Lucas 1:19

 

Gabriel despertou em uma área de difícil acesso, localizada a alguns quilômetros da grande cidade, onde estava Miguel. Rafael despertara na floresta, cuja distância comparava-se a pouco mais 20 passos até avistar a primeira construção humana.

O anjo despertara em um extenso pedaço de terra, cuja paisagem contemplada parecia ser de um vasto jardim. Ao longe, era possível perceber a grama cortada de forma planejada, os desenhos arquitetônicos que fazia no chão, a safra fresca e o cheiro de umidade.

À sua frente, um portão de prata, estátuas etéreas, flores e uma mansão. Era um casarão enorme, em tons de um azul elegante e construído no modelo gótico de arquitetura.

— Bonito...

Elogiou o lugar, assim que pôs-se de pé. Deu curtos passos, até perceber os pés descalços. Olhou para si e contemplou-se com uma roupa alva. Soltou um suspiro.

— Estes trajes de novo, não...

Gabriel, diferente dos demais, convivia por muitas vezes com os humanos. Suas missões baseavam-se em entregar-lhes mensagens, testá-los ou levar suas orações ao Pai. Miguel pelejava no mundo espiritual, mantendo pouco contato com os mortais, e Rafael nem sempre era escalado para contatar o mundo terreno. Por esse motivo, Gabriel estava muito familiarizado com situações como aquelas.

Caminhou por mais um pouco até avistar o primeiro humano, queria ter certeza da época em que se encontrava. Analisou seus trajes e, tão logo, vestiu-se igualmente, transformando suas vestes alvas em aristocráticas. Eram roupas da Europa ocidental, mais especificamente, britânicas. Gabriel abotoou as mangas e caminhou como se fosse um varão daquelas terras. Levou as mechas longas e loiras por trás das orelhas e seguiu seu caminho até a mansão que avistara.

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Naquela noite, após um tempo sem receber contato do divino, Miguel havia sido instruído a procurar o traidor no interior rural daquele local. Redesenhou o mapa que recebera em visão, usando apenas um galho e a areia da praia.

Após bem memorizar as coordenadas, partiu. Era um caminho arisco, também cercado por rochas mais densas e estradas mais estreitas. Seriam dias de viagem e, por isso, se hospedaria na casa de quem o oferecesse. Estava pronto para prosseguir, quando, ao cair da noite, avistou o jovem Natan perambulando por aquelas redondezas. Sentiu-se instigado a perguntar.

Muitos imaginam que os anjos sabem de todas as coisas. É errôneo pensar de tal forma, uma vez que o único onipresente, onisciente e onipotente é Deus. Os anjos sabem aquilo que Deus lhes permite saber.

— Natan...

O rapaz arrepiou-se ao ouvir a voz do Arcanjo mais uma vez. Virou o rosto em sua direção e um suspiro aliviado surgiu.

— Achei que fosse um bandido...

— Me perdoe.

Miguel deu-lhe um sorriso simpático, e aquilo incendeu as maçãs do rosto do garoto.

— O que faz aqui, a essa hora da noite?

Natan não o olhou nos olhos para responder, mas seguiu percurso, enquanto dialogavam.

— Eu não moro aqui. Quando fecho o ateliê, preciso passar por esse caminho até chegar em casa. Fica fora da cidade.

O anjo aquiesceu.

— Você também não devia estar aqui, é um caminho muito perigoso. Perdi as contas de quantas vezes fui assaltado.

— Não se preocupe comigo, não tenho medo de ladrões.

Respondeu Miguel, mantendo o mesmo sorriso. Estava vislumbrado com a inocência do garoto, mal sabia ele que estava sendo protegido pelo príncipe dos anjos.

Após um silêncio que perdurou alguns instantes, Natan resolveu manter alguma conversa.

— Pra onde você vai?

— Hum.... Para uma casa, responsável por uma safra de arroz. Fica muito longe daqui, e está situada como uma das maiores plantações deste território.

Os olhos do jovem pareciam brilhar.

— Sei onde fica! São dois dias de viagem! Onde você vai dormir?

— Deus proverá.

A resposta não parecia ter convencido o rapaz. Ele soltou um suspiro frustrado.

— Pode jantar na minha casa, se quiser, e ficar pra dormir também.

Miguel ponderou por uns instantes, em silêncio. Ele não tinha condições de seguir viagem num corpo carnal, e não podia ir contra isso.

Assim, concordou em passar uma noite na casa do jovem.

Adentrou, assim que chegaram. Era uma casa de porte médio, muito bem organizada. As paredes sustentavam pinturas arcaicas de cunho religioso, principalmente com temáticas no que diz respeito a anjos. Parou para contemplar uma delas, chamou-lhe a atenção as vestes, a espada empunhada, as correntes, a serenidade e a soberania. Lia-se, abaixo da tela: “The Archangel Michael defeating Satan”.

— É de Guido Reni.

Natan invadiu seus pensamentos.

— Eu gosto muito das pinturas dele, mas esta é a minha preferida! Não acha que parece um pouco contigo?

Aquela pergunta fez Miguel voltar os olhos à pintura. O olhar sereno era, de certa forma, similar.

Após lavar as mãos e cear com o garoto, Miguel pediu para banhar-se antes de ir dormir. Logo cedo, estaria pronto para mais uma caminhada. Tirou as roupas pesadas e lavou-se, sentiu-se ligeiramente observado naquele ambiente. Faziam algumas horas que Miguel havia recebido uma mensagem celestial, mas, não era corriqueiro que ficasse muito tempo sem contato com o divino. Era um dos anjos mais requisitados, não entendia o motivo de tanto silêncio. A falta de comunicação com o empíreo o deixava vulnerável naquele mundo terreno, onde ele dependia apenas de seus sentidos falhos, humanos.

Vestiu-se novamente e foi em direção à cama cedida pelo garoto. Estava usando roupas simples, nada que o deixasse desconfortável durante a estadia. Fechou os olhos e adormeceu.

Acordou horas depois, após sentir uma presença extra no local. Era Natan.

— Miguel...

Sussurrou o garoto. O Arcanjo ainda estava atordoado, o sono lhe incomodava a vista, mas a presença do rapaz era inquestionável.

— Miguel...

Sussurrou mais uma vez, e o Arcanjo cessou com todas as suas dúvidas assim que sentiu uma mão tocar o seu braço. Virou-se para contemplar Natan, ainda desperto.

— Não consigo dormir...

Miguel entrelaçou os dedos nas próprias madeixas e permitiu-se relaxar antes de iniciar um diálogo com o garoto. Estava cansado, o corpo humano é desgastante, mas sempre estava disponível para ajudar alguém.

— Pois bem... quer conversar um pouco?

Como uma criança tímida, Natan aquiesceu em silêncio. Aproximou-se do Arcanjo e juntou as mãos nas próprias pernas.

— Posso te pedir uma opinião?

E Miguel aquiesceu.

— S-sabe... você acha errado... eu... gostar de uma pessoa?

E a pergunta havia o pego desprevenido.

— É claro que isso não é errado, Natan. Quem você gosta, para que isso fosse algo ruim ao seu ver?

— É que... é que...

Similar a uma vitrola quebrada, Natan não conseguia reformular sua pergunta ou responder ao anjo. Miguel o olhou profundamente antes de repetir suas palavras, mas o jovem acabou por falar antes disso.

— ... de você.

 


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