Éter escrita por Mayara Silva


Capítulo 2
Caça ao Traidor




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“Naquela ocasião Miguel, o grande príncipe que protege o seu povo, se levantará. [...]”


Daniel 12:1

 

Ao pôr os pés no chão, Miguel, príncipe dos anjos, incorporou uma figura mortal. Diversos deveres seus são feitos, regularmente, na terra humana, embora em espírito, não permitindo tornar-se humano por muitas vezes.

Todavia, transformou-se sem nenhuma faísca de dificuldade. A luz que cintila seu corpo e sua armadura apagaram-se, dando lugar à carne, ossos e tendões. As asas, agora ocultas, encobriam sua natureza divina. Suas vestes agora eram, na medida do possível, “normais”, alvas. A aparência era masculina o suficiente para distingui-lo varão, mas os traços faciais eram sutis, perfeitos. Os olhos claros traziam consigo a luz que emanava de sua essência pura, e os cabelos pareciam tecidos em fios de ouro, caíam sob os ombros e não mais que isso.

— “Como você caiu dos céus? ... Ó estrela da manhã, filho da alvorada...”

Levantou em poder e glória, a glória de Deus, que refletia em seu rosto, em seus olhos. Era um ser tão belo, e isso era um perigo na terra mortal onde a lascívia e o desejo eram constantes entre os humanos. Todavia era Miguel, líder Arcanjo, havia perambulado por aquelas terras por diversas vezes, sabia como proceder em quaisquer situações.

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“Não vos esqueçais da hospitalidade, pela qual alguns, sem o saberem, hospedaram anjos. ”


Hebreus 13:2

 

A moça de pele clara, levemente castigada pelo sol, cujos cachos adormecidos iam até um pouco acima da cintura e os traços faciais eram joviais e alegres fora à porta, atender ao chamado. Ouviu toques sutis em sua velha porta, imaginou ser o ranger dos ventos, mas não, era mesmo alguém ali.

Era um homem. Formoso.

Chamou o rapaz.

— Alguém aí? ...

É claro que há. Ele sabia, havia a vigiado por vários dias, por semanas.

— Sim?

A garota abriu a porta, sem temer. Não sentiu ameaça emanar daqueles olhos, muito pelo contrário, eles a atraiam. O que homem tão formoso fazia ali naquele deserto? Apenas ela morava por aquela região.

— Sou um nômade. Não tenho onde ficar e vim buscar informação.

Deu-lhe um sorriso discreto, um olhar dócil, parecia um rapaz simpático e desprovido de quaisquer intenções ruins.

— Você.... Você não quer entrar? A cidade fica muito longe e já está escurecendo...

— Muita gentileza sua, mas não quero lhe causar nenhum inconveniente.

Falso. Muito esperto. Talvez aquele truque tosco não funcionaria com um corpo carnal, natural, mas ele estava jogando sujo, estava usando parte de sua essência etérea para conquistar aquela mortal.

Ele faria de tudo para tê-la em seus braços.

Depois do muito insistir da moça, o rapaz adentrou ao local simplório. Olhou em volta, havia uma mesa, cozinha, uma sala improvisada. Um quarto mais oculto, panelas e objetos artesanais enfeitavam as pobres paredes de taipa.

— Está com fome?

Indagou a moça. O rapaz reagiu depois de alguns instantes, ainda encantado com a cultura humana.

— Fome? .... Ah, sim, claro!

Um corpo humano realmente o fazia sentir fome. Era um corpo completamente limitado, cheio de imperfeições. Ele precisaria se acostumar.

Se aproximando da cozinha pequena, o anjo fora induzido a lavar as mãos. O fez com fascínio, perguntava a si mesmo quem a ensinou aquilo, e por quê, e quando, e em quais circunstâncias. Os humanos eram fascinantes.

Após, sentou-se à mesa e esperou. A pele alva e levemente rosada, os cachos perfeitamente despojados, os nós de ouro, os olhos cor-de-água-doce, tudo maravilhava aquela moça que sequer havia dialogado por muito tempo com um homem, na vida.

— Qual o teu nome?

Indagou a jovem. Logo, ele se endireitou à mesa. Esqueceu-se completamente de se apresentar, embora os anjos não costumassem fazer isso. Seus nomes eram um mistério, e por isso jamais deviam ser revelados sem permissão.

Porém, ele já estava ali mesmo. Ir contra essa condição era o de menos.

— Te direi. Mas antes, diga-me o teu nome.

Ele reformulou a pergunta. A garota, sem se importar com o pedido, o atendeu.

— Noemi. E o teu?

— Samyaza.

—------------------------- X --------------------------

Andando pelas ruas movimentadas, Miguel chamava muita atenção por onde passava. Não apenas por sua bela aparência, mas por estar ali, com roupas tão alvas, numa cidade quente e ruralista como aquela. As lojas eram triviais, o comércio era voltado para a subsistência, com um ou outro luxinho.

Os homens, olhavam estranho. As mulheres, desviavam o olhar. As crianças, encaravam. Os animais, grunhiam. Mas os bebês, riam.

Miguel perambulava pelas ruas, olhando cada rosto, sentindo cada presença, em busca do seu alvo. A aparição de um anjo podia ser identificada por outro a milhões de quilômetros dali, e ele só precisava estar alerta.

Foi então que, como portador de um corpo humano, sentiu fome. O incômodo incessante iniciou-se em seu estômago, e a falta de alimento lhe trouxe dor de cabeça.

— Ah.... Meu Deus...

Gemeu em baixo tom, precisava pensar em algo rapidamente. Pousou em uma loja, à sombra, e pôs a mão à fronte. Inacreditavelmente, o Arcanjo teve paz por alguns instantes até que, enfim, um funcionário da loja notou sua presença.

— Senhor?

Tratava-se de um jovem robusto. Embora corpulento, mais baixo que o Arcanjo, tinha estatura mediana. Seus cabelos eram curtos e encaracolados, castanhos de cor chocolate, olhos azuis, leves sardas pela pele rosada e um ar de inocência difícil de ver nos homens daquele lugar.

— T-tudo bem com o senhor? Quer um copo d’água??

Indagou, Miguel não precisou falar muito para provocar o nervosismo no jovem. Parecia um aprendiz, não aparentava coragem ou ousadia, e se o Arcanjo não estivesse com tudo sob controle, as reações exacerbadas do garoto poderiam fazer sua situação piorar.

Logo, antes que pudesse tagarelar mais um pouco, uma das mãos fortes de Miguel tocou o pulso do rapaz, que estremeceu com o toque. Mesmo um descrente se arrepiaria ao sentir o tocar de um anjo. Os pelos do garoto ouriçaram ao sentir o toque daquela pele macia, não parecia com nada nem ninguém que ele conhecera antes.

— Traga-me pão ázimo... e água.

O garoto procurou se afastar, ao mesmo tempo que queria ficar ali, perto daquele homem desconhecido. Porém, não podia deixá-lo ao relento, devia ajudá-lo e assim o fez. Correu para dentro do estabelecimento, onde foi diretamente à cozinha do local, até que enfim parou e pensou que definitivamente não havia uma cozinha ali. Trabalhava a tantos anos para o ateliê de moda da madame Ada que simplesmente havia esquecido daquele detalhe, sua mente estava aos bugalhos com a chegada do desconhecido.

Com a brisa suave que assoprava seus cabelos, como se Deus estivesse lhe enviando forças, o Arcanjo se recuperou um pouco mais. Ele estava prestes a se levantar quando o rapaz surgiu por trás de si.

Virou-se.

Ele lhe ofereceu uma maçã e o que parecia ser um sanduíche natural. Com exceção da fruta, Miguel sequer sabia o que era aquela outra coisa. “Quantos anos fazem que não desço à terra? ”, pensou consigo.

Sua expressão confusa logo se tornou evidente naquele rosto perfeito e quase assexuado. O garoto entendeu e então guardou o sanduíche, imaginou que ele não gostasse.

Ofereceu-lhe a fruta.

— Esse é o meu almoço. Pode ficar.

Disse. Miguel demorou a reagir, a maçã vermelha escarlate lhe trazia lembranças de tempos passados, quando a humanidade fora condenada por causa de uma pequena fruta.

Tomou-a em mãos e lhe deu uma mordida. O ato fez o jovem desviar o olhar, enrubescido.

— Qual o teu nome?

Perguntou, quase num sussurro, e por um instante o garoto se sentiu a sós com ele. A loja estava cheia, haviam clientes para atender e sua patroa era um bicho quando estava furiosa, mas por um instante todo o ambiente se tornou turvo, o som abafou-se, e só havia aquela criatura etérea ali.

Que, para ele — mero mortal — era apenas um homem muito, muito especial.

— Natan. Eu... vim... de Manchester.

— Natan...

Miguel gravaria aquele nome, como gravou outros e outros nomes de pessoas cujo coração semeavam a bondade. Enquanto supria suas necessidades físicas em cada mordida no fruto, sua mão novamente tocou o garoto, agora em seu peito, com um apontar.

— Tens uma benção da parte de Deus.

Foi a única coisa que conseguiu dizer antes que uma mulher carrancuda e enorme aparecesse e cortasse a conexão. Ela era a madame Ada, dona do estabelecimento. Embora fosse um ateliê de moda, com trajes assinados por ela, a mulher não parecia ter noção alguma de tal. Vestia-se de modo escandaloso, seus trajes coloridos rompiam o contraste do ambiente.

— NATAN!!!!

— M-madame Ada!

Correu o rapaz até o seu encontro. O Arcanjo o seguiria, mas sentiu-se atraído por outra coisa. Viu seu reflexo no espelho e notou as suas vestes.

Gastas. Não serviriam para aquele lugar. Precisava de um disfarce mais eficiente.

A tal madame Ada estava aos ataques de pelanca, quando Miguel enfim foi, de forma serena, ao encontro do seu jovem e pousou a mão em seu ombro.

Tudo pôs-se em silêncio.

Aquela mulher áspera e grosseira calou-se ao contemplar a beleza e presença do Arcanjo ali, presença e beleza essas quase sobrenaturais. O corpo delineado e esculpido com perfeição, o rosto sereno e sutilmente assexuado, a presença quase sufocante, os fios de ouro, os olhos que emanavam a glória de Deus.

— Preciso de roupas.

Foi a única coisa que disse. A mulher, ainda em choque, demorou para desviar os olhos em direção ao seu funcionário.

— O que está fazendo aí parado?? Atenda esse senhor, imediatamente!

E Natan foi-se, ainda arrepiado pelos toques de Miguel. Seguiu, em silêncio, até uma área do salão onde haviam trajes dos mais diferentes tipos.

— Senhor, tem alguma preferência? Qual sua cor preferida? Posso trazer o que mais o agradar! Com ou sem casaco? Usa colete? Gosta de preto? Lenço ou gravata?

Miguel definitivamente não estava em si quando o jovem começou a falar com ele. Seus pensamentos estavam nos trajes daquele local, em modelos que ele desconhecia. O mundo estava se modernizando, e por um instante notou os homens e as mulheres vestidos como europeus ocidentais, embora não necessariamente estivessem na Europa. Era bonito e tinha um ar de cavalheirismo.

Mas, antes que o rapaz prosseguisse, o Arcanjo pousou serenamente o dedo em seus lábios, pedindo para que se calasse. O toque suave fez as bochechas de Natan incender em rubor e por alguns segundos ele contemplou os seus olhos, sentindo todo o seu corpo queimar.

— Não tenho dinheiro para estas. Me.... me perdoe por fazê-lo perder seu tempo comigo.

Disse-lhes. Miguel tinha a intenção de livrar aquele garoto dos gritos e ofensas frias e autoritárias de sua patroa, único motivo para pedir por seus serviços. Ele virou-se, para se retirar, quando sentiu as mãos mortais do rapaz agarrar as suas com um vigor que Miguel não vira quando o conheceu.

— E-eu...

O rapaz sequer sabia por que motivo fez aquilo, apenas seguiu o impulso. Apertou a mão do Arcanjo, com um carinho estranho, como se o conhecesse a tempo. Os seus dedos quase se entrelaçaram, porém Miguel prudentemente rompeu o laço.

— Eu te dou.

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Se eu estive com vocês, não foi por vontade minha, mas de Deus. [...]

Tobias 12:18

 

Pousou ao chão, e assim que o fez, a morte consumiu a terra. A caminho do mundo mortal, Rafael rompeu o invólucro e tomou para si aquele atemorizante poder sobre a vida de todas as criaturas. Era tão forte, que a flora e os pequenos animais que habitavam ali, ao seu redor, morreram sem nenhuma possibilidade de reação.

Transformou-se em corpo carnal. Anjos eram muito parecidos uns com os outros, porém, comparado a Miguel, Rafael era menor, como um garoto. Cabelos curtos e encaracolados, brilhantes como o sol. Os olhos em tons de azul escuro, lugar onde, da morte, saía seu poder.

O rosto era muito mais sereno e infantil que o do príncipe Arcanjo: esbanjava inocência, pureza e doçura. O leve rosar de suas bochechas, o olhar meigo, o corpo de aparência frágil, tudo entrava em contraste com o poder que exalava de si.

As asas se dissiparam e o corpo fora coberto por vestes alvas. Agora, ele precisava se infiltrar no meio dos ímpios sem chamar atenção.

— Ah, Pai... O que eu não faço por ti? ...

Murmurou, levando o rosto ao céu e contemplando a sua casa, sob o ponto de vista daquele mundo. Teria muito o que fazer ali, a começar por controlar aquele poder e evitar mortes desnecessárias.

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Embora trajado à época, Miguel ainda se destacava entre os homens. Aquela virtude encontrada apenas em si jamais podia ser disfarçada, nunca pôde, em quaisquer momentos.

Preparado para partir, novamente fora impedido pelas mãos quentes do mortal. Natan havia se conectado ao Arcanjo de uma forma que jamais se repetiria com outro mortal.

— Ore por mim...

Suplicou, como se Miguel fosse algum tipo de religioso ou padre. De qualquer forma, não estava totalmente errado.

— Deus te ama. Fique com Ele...

Miguel tendeu a afastar-se novamente, mas a tentativa falhou quando sentiu os dedos de Natan pressionarem os seus. Estavam a curta distância e o Arcanjo começou a sentir que estava falhando em sua missão.

— Eu... queria saber o teu nome.

Não. Não podia contar. Miguel não pode revelar-se a ninguém a quem Deus não tenha permitido. Era o Arcanjo mais obediente, rigoroso e metódico em todo o empíreo.

— Não importa, meu nome. Agradeço pela tua bondade e, decerto, serás compensado por isso.

— Eu... já ficaria feliz o suficiente, se pudesse ver-te de novo.

Miguel deixou escapar um sorriso sincero com a frase que ouvira. Apertou a mão de Natan em resposta, de forma tão indiscreta, que o rapazinho enfim o soltou, pela força do Arcanjo.

— Ore a Deus e, certamente, estarei ao teu lado.

Com isso, ele se afastou, enfim permitindo que Natan refletisse em suas palavras.


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