Sob o Olhar de Notre Dame escrita por Lily the Kira


Capítulo 14
Santuário!


Notas iniciais do capítulo

Fortes emoções, meus amigos!!! É só o que eu tenho a declarar!



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A madrugada aproximava-se. A tempestade que ameaçara Paris desde o cair da noite finalmente despencou violenta sobre a cidade. Tudo estava escuro, as tochas e postes que iluminavam as ruas apagaram-se e a única luz a banhar aquele cenário sinistro vinha dos relâmpagos.

Claudia estava no Palácio da Justiça, após acompanhar pessoalmente o destacamento de guardas que trouxeram Esmeraldo até uma cela profunda no subterrâneo. A ministra sentia-se aliviada por finalmente encontrar o cigano, por saber que ele não podia mais fugir dela, por senti-lo tão perto, ao alcance de seus olhos.

Mas o alívio cedia à medida que a juíza conscientizava-se de que agora não havia mais nada que separasse o rapaz da morte. Ela mesma dissera isso quando o encontrara: amanhã deveria haver uma fogueira, Esmeraldo seria finalmente executado e nada mais poderia ser feito para salvá-lo. Pelo menos nada nos limites da lei.

Ansiosa, Claudia finalmente decidiu-se e deixou seu gabinete, onde estivera desde que trouxeram Esmeraldo até ali. Como um raio, a ministra desceu as escadas de pedra que levavam às masmorras e lá estava ele, sentado, olhando desanimado para o vazio. O coração de Claudia ficou apertado, ela detestava ver Esmeraldo sofrendo daquele jeito, mas a única pessoa que poderia resolver essa situação era ele mesmo. Uma palavra daquele rapaz e a ministra acabaria com aquele horror.

Torcendo para que Esmeraldo reconsiderasse o desprezo que sentia por ela, para que finalmente lhe desse a chance de salvá-lo, a juíza aproximou-se, dando ordens aos guardas.

— Deixem-nos sós. – ela disse simplesmente e os guardas saíram. Esmeraldo, que estava distraído, deu um salto do banco frio onde se sentava ao reconhecer a voz de Claudia e um arrepio desceu por sua espinha quando ele ouviu a porta fechar-se na entrada do calabouço.

 - Não. – o cigano sussurrou, o medo e o ódio fluindo por suas veias. Claudia, penalizada, aproximou-se devagar, tentando acalmá-lo.

— Por favor, Esmeraldo, não lhe farei qualquer mal. – a ministra ergueu uma mão pacificadora para ele enquanto o encarava com um misto de pena e ternura – Apenas me escute.

— Não! – ele repetiu, o medo começando a abandoná-lo enquanto o ódio crescia – Não há nada a ser dito. Já me prendeu, serei executado, então é só isso.

— Posso ajudar! – a juíza começou a falar mas Esmeraldo interrompeu-a, lembrando-se de tudo o que passara até ali enquanto um caso específico e doloroso martelava em sua mente ao mesmo tempo em que o rosto gentil e amoroso de Phoebe vinha à sua mente, as saudades e a dor de se ver traído queimavam seu peito.  

— Ajudar? – ele explodiu, despejando o que sentia sem medir as consequências do que dizia – Chama de ajuda a barganha que quer fazer? Se quisesse mesmo me ver livre, se me amasse verdadeiramente, não teria usado Phoebe e o amor que ela sente por mim para me capturar! Foi a senhora, não foi? Phoebe queria me tirar de Paris porque sabia que sou inocente mas a senhora descobriu nosso plano e armou aquela arapuca! Quase me fez pensar que a mulher que eu amo havia me traído! Usou o amor dela de uma forma baixa e ainda quer que eu seja seu? Nunca!

Claudia piscou ao ouvir aquilo, completamente confusa.

— Com é? – ela franziu as sobrancelhas, sua voz endurecendo a cada palavra – O que a capitã Phoebe tem a ver com tudo isso? E o que quer dizer com “a mulher que você ama”?

— Não finja que não sabe de nada! – Esmeraldo acusou sem pestanejar, certo de que Claudia era a culpada pelo fracasso do plano de Phoebe - A senhora sabia que Phoebe queria me proteger e a seguiu, descobriu o plano dela, sabia que eu a encontraria naquela casinha e mandou seus guardas me capturarem! O que fez com ela? Por que não vi mais Phoebe? Por que ela não foi até mim? Se alguma coisa aconteceu com ela...

— A capitã Chateaupers está perfeitamente bem, e tão interessada em capturar você quanto eu. – a ministra rebateu friamente, olhando nos olhos de Esmeraldo – Mas quer dizer que foi ela quem provocou sua fuga de Notre Dame? Foi ela quem tirou você da segurança da catedral? Eu jamais permitiria tal coisa! E ela não o ama, seu tolo! Só há ódio por você naquela garota idiota!

— Mentira! – o cigano fechou os punhos, convicto – Ela me ama, eu vi isso nos olhos dela e é óbvio que a senhora diria isso para me ferir, por puro ciúme! E não tente me enganar, aquela armadilha foi coisa da senhora, madame Frollo! Phoebe jamais faria algo assim!

— Pois ela fez, e vai pagar por isso. – Claudia estreitou o olhar, o desespero e a indignação faziam-na tremer – Por causa da tolice dela você quase me escapou! Essa idiota deveria ter deixado você em Notre Dame, seguro, pelo tempo que aguentasse ficar lá mas preferiu agir por conta própria, sem me consultar, e veja no que esse rompante de vaidade culminou! Você está aqui, preso, à beira da execução! Tudo por culpa daquela maldita tola e de sua arrogância!

A ministra, furiosa, socou as grades da cela com violência e desatou a chorar, escondendo o rosto entre as mãos enquanto andava de um lado para o outro em frente à cela de Esmeraldo. Seu corpo tremia violentamente, o raciocínio era difícil e a dor era insuportável. Se Phoebe estivesse ali agora, Claudia seria capaz de matá-la.

— Ela não o ama, meu querido. – finalmente a juíza recuperou-se e voltou a falar, ainda cheia de dor – Ela enganou você. Eu não sabia desse plano estúpido e, se soubesse, eu a teria impedido! Jamais desejei verdadeiramente executar você. Mesmo sabendo que é culpado, tudo o que eu mais desejava era livrá-lo da condenação. Enquanto você estivesse em Notre Dame, estaria seguro, e eu daria um jeito de tirá-lo de lá mais cedo ou mais tarde, você me amando ou não. Mas agora... – não foi mais possível falar, o choro voltou com força e Esmeraldo apenas ouvia, uma parte de sua mente agitando-se, uma dúvida cruel a respeito dos sentimentos de Phoebe fazendo seu estômago revirar-se.

— É mentira. – ele repetiu, porém menos convicto. O desespero de Claudia não lhe parecia encenação. Ela de fato estava furiosa com Phoebe, isso era tão certo quanto o fato de que o cigano estava ali naquele momento, mas Esmeraldo, apaixonado como estava, não podia acreditar que a mulher a quem amava seria capaz de armar aquela arapuca, de mentir para ele daquela maneira e de usar seus sentimentos - Por que ela faria isso então? – ele questionou mais a si mesmo do que a Claudia, mas ela respondeu, novamente penalizada pelo sofrimento visível naqueles lindos olhos.

— Ela só tem uma preocupação, Esmeraldo: com ela mesma e sua impecável carreira. – a ministra detestava saber que machucaria Esmeraldo com aquela verdade, mas mesmo assim obrigou-se a abrir os olhos dele -  Só posso supor, mas creio firmemente que ela odiou vê-lo escapar da prisão e dela mesma na frente de uma praça lotada e a vergonha, junto com os comentários zombeteiros que certamente ouviu, levaram-na a corrigir essa falha. Recapturar você era questão de honra e isso eu vi pessoalmente. Se você a visse, de um lado para o outro, procurando-o com tamanha diligência, sem comer ou dormir, o ódio visível no olhar dela...

Esmeraldo desviou os olhos de Claudia, não queria ver e nem ouvir mais nada, sua mente recusava-se a acreditar no que a ministra dizia e ele só conseguia repetir para si mesmo que aquilo era uma mentira, como uma criança que recusa-se a aceitar a merecida bronca que recebia.

— De qualquer maneira, é tarde demais para voltar atrás. A sentença já foi dada e agora eu terei que cumpri-la. – Claudia disse baixinho, Esmeraldo ouviu e encarou-a, agora desesperado.

— Sempre pode voltar atrás. É a sua sentença, pode reconsiderar, sabe que sou inocente! – ele apelou, o desespero crescendo nele a cada segundo – Se me ama como diz, solte-me!

— Não, Esmeraldo. – a juíza respondeu - Eu investiguei o que você disse, o homem de capa marrom foi identificado como o homem que denunciou você. É o pai de Laurette, ele não teve motivos nem meios para matá-la. Eu temi por uma vez que minha sentença fosse injusta mas agora não temo mais. Só me resta a dor de aceitar que você me enganou, mentiu tão bem a ponto de me deixar em dúvida. Amanhã terá o que merece, cigano, a não ser que reconsidere e escolha a mim.

O cigano, pasmo, levantou-se do banco e foi até a ministra, encarando-a incrédulo, indignado.

— Se acha que sou culpado – ele, tomado pelo rancor, respondeu - se acredita mesmo nisso, vai arriscar que eu seja seu amante para que eu a mate também, como acha que matei Laurette? Não pensou que ela fez comigo o mesmo que a senhora está fazendo? Por que eu não a mataria também então?

Um silêncio pesado caiu entre os dois, Claudia ouviu aquele argumento e, por um momento, considerou aquela possibilidade terrível. Mas a desesperança que já a dominava há tanto tempo era uma força contra a qual ela já não podia mais lutar e, encarando o rosto amado de Esmeraldo, ela respondeu, baixinho:

— Faça isso mas antes seja meu, é só o que lhe peço. Minha alma está perdida, a morte não significa mais nada já que vivo como se já estivesse condenada. Então tenha piedade e me dê ao menos essa alegria. Depois faça o que quiser. Não me importo mais.

Esmeraldo encarou a mulher desolada à sua frente com um misto de pavor, surpresa e repulsa. Ela não estava mentindo, ali havia de fato alguém cuja vida já não importava mais, alguém sem esperanças, sem forças, sem fé. Madame Frollo era a imagem viva da mais absoluta tristeza e, por um segundo, o cigano considerou sentir alguma compaixão.

Mas assim que pensou nisso, uma onda de repulsa o invadiu, junto com uma indignação gigantesca e um ódio incontrolável.

— Não! – ele disse, categórico, toda a raiva que sentia fluindo como um maremoto – Jamais poderia ser seu, jamais cederia a uma chantagem como essa! Prefiro morrer a tocá-la. Faça o que acha certo amanhã e que sua alma vá para o abismo já que acredita nisso, mas eu não me entregarei a mulher alguma sob ameaça ou chantagem! Muito menos a uma que vai me matar apenas porque não cedi a seus caprichos!

— Você vai morrer por ser culpado, cigano, não por minha causa! – Claudia respondeu desesperada – Você matou Laurette de Beaufort, sabe disso, mas insiste nessa mentira a todo custo! Tudo o que eu desejava era vê-lo livre, dançando na praça, alegre como sempre foi, mas não posso fazê-lo a não ser que venha comigo! Não compreende? Não vê que não tenho escolha? Somente eu posso proteger você, por isso você precisa vir comigo, escolha a mim e será livre da morte, mesmo que eu mesma precise sacrificar tudo! Não entende isso? Não vê que ainda tem uma escolha?

— Nunca! – Esmeraldo respondeu com força – Eu jamais irei com a senhora, jamais escolherei uma alternativa pior do que a morte! É a senhora que precisa entender! A fogueira me assusta muito menos do que a ideia de viver a seu lado!

Claudia ouviu sem reagir, sentindo como se mil facas a atingissem ao mesmo tempo. Contrariando todas as suas expectativas, Esmeraldo preferia a morte pelo fogo a uma vida com ela e isso era doloroso demais. Quem preferia a morte, ainda mais daquela maneira cruel? Ela era realmente tão terrível assim a ponto daquele belo cigano, tão cheio de vida, optar por jogar tudo para o alto?

E sua mente lhe respondeu prontamente aquele questionamento: “Sim, você é. Transformou-se no que existe de pior nesse mundo. Quem a amaria? Ele é bondoso e gentil demais, belo demais, não merece ser contaminado pelas suas trevas!”

— Ao menos então... – vencida, Claudia apelou pela última vez - Ao menos diga que me perdoa. Por favor, se não pode me amar, se é tão repulsiva a ideia de ser meu, ao menos imploro que me perdoe. Por favor, não ousaria pedir mais nada a você, preferia morrer no seu lugar amanhã e sinto que de fato morrerei. Não poderei suportar isso, já não posso suportar seu ódio, isso me fere mais do que a fogueira que será acesa amanhã, então não me despreze tanto. Tenha alguma piedade por quem só está cumprindo seu dever e o faz com o coração partido. Diga que me perdoa, ao menos me dê uma palavra de bondade, uma sequer e não lhe pedirei mais nada. Por favor!

Claudia já não conseguia se sustentar de pé e, enquanto falava, caiu de joelhos, segurando-se fracamente, encostando-se contra as barras da cela de Esmeraldo, as lágrimas fluindo sem qualquer controle, o peito explodindo em uma dor tamanha que teria enlouquecido muitas mentes mais fracas. A ministra tremia convulsivamente, os olhos cinzentos pregados em Esmeraldo, que ouvia e via sem dizer palavra.

Quando ela concluiu, ele abriu a boca para falar e esse pequeno gesto foi suficiente para que Claudia se empertigasse e esperasse ansiosamente, desesperadamente, pela palavra de bondade que viria, agarrando-se a isso como se fosse sua última esperança, como quem morre de sede no deserto e, de repente, avista um oásis.

Mas o ódio é um sentimento capaz de encher de trevas até um bom coração, e Esmeraldo estava repleto de ódio. A condenação injusta, a chantagem, o beijo roubado, as semanas engaiolado, a traição de Phoebe, a terrível execução ao raiar do dia, tudo pesava em seu peito e ele não conseguia sentir qualquer compaixão por aquela mulher desesperada que implorava a ele por uma simples palavra de bondade. Tudo o que lhe aconteceu até então era por culpa dela, então Esmeraldo concluiu que ela merecia sofrer tanto quanto ele sofreria no dia seguinte.

O cigano abriu a boca novamente, Claudia olhava petrificada. Mas o rosto de Esmeraldo fechou-se em um expressão de total desprezo, seus lábios se crisparam e ele disse finalmente, em um rosnado cruel enquanto via Claudia empalidecer ainda mais:

— Jamais a perdoarei. – e afastou-se dela, encarando seu olhar e tendo absoluta certeza de que a ferira profundamente – E espero que viva muito ainda antes de lançar sua alma nos abismos, para que a lembrança do que fez comigo a atormente durante cada um dos seus dias. Jamais a perdoarei nem serei seu. Pertenço a Phoebe. Minha Phoebe! Não quero ouvir mais nada!

Claudia ouviu paralisada aquelas palavras duras e, assim que o eco da última palavra morreu no silêncio sepulcral que se seguiu, algo se quebrou dentro dela. A violência daquelas palavras foi demais para que a ministra pudesse suportar e uma chama ainda mais poderosa do que a da paixão que sentiu acendeu-se em seu peito, como um fogo negro saído do abismo mais profundo. Era um ódio tão violento que qualquer um poderia facilmente compará-lo com a ira do Vesúvio, que devastou Pompeia.

Imediatamente a ministra Frollo ergueu-se do chão, suas forças renovadas, seu orgulho ferido servindo de combustível para aquela fornalha. Agora seus olhos cinzentos brilhavam assustadoramente, ela erguia-se como uma sombra, alta, sinistra, como um anjo da morte, um espectro, a imagem viva da ira. Esmeraldo recuou involuntariamente, o medo vencendo o ódio. E que ódio fraco e pueril era o que ardia no coração do cigano! Comparado com aquele visível nos olhos assustadores de madame Frollo, o que sentia não era nada além de birra infantil.

— Então morra, feiticeiro! – ela disse finalmente, sua voz ecoando sinistra, mais terrível que o pior dos pesadelos – E que sua alma arda em aflição para sempre!

Dizendo isso, Claudia deixou a cela para trás, seus passos martelavam na mente de Esmeraldo que, paralisado, vencido, desolado, caiu no chão frio da cela e não se mexeu mais até o raiar do dia.

A praça em frente a Notre Dame estava lotada. O sol nasceu e lançou nos céus de Paris um brilho de fogo. Mais um dia sinistro cairia sobre aquela cidade, o clima de morte contaminava a todos. A própria Notre Dame estava tingida de vermelho, seus sinos silenciosos.

Tambores soaram e quebraram o silêncio que reinava na praça, assustando os que assistiam àquele terrível espetáculo. Arautos anunciavam a execução do cigano acusado de matar Laurette de Beaufort, cujos pais estavam na praça, bem diante da pira. E Esmeraldo, vencido, tremendo de frio e de medo, já estava atado à estaca de pedra com correntes de ferro.

— A ministra acertou na pena, desgraçado! – monsieur Beaufort gritou para o infeliz cigano, que virou-se para ele, assustado, seu estômago se revirando de ódio – Queimado! Uma pena perfeita para o feiticeiro que é!

Esmeraldo não respondeu, seus olhos voltavam-se para todos os cantos da praça em busca de Phoebe, que certamente viria. A presença dela seria o único conforto que ele teria naquela hora. O rapaz recusara-se a acreditar no que Claudia lhe dissera, preferindo agarrar-se a essa última chama de esperança. Saber que era amado por Phoebe, que realizara seu sonho de ter alguém para amar, o reconfortava. Ao menos uma coisa valera a pena em sua vida sofrida.

E lá estava ela, a capitã cavalgava em seu cavalo branco em direção a seu lugar próximo à pira. E Claudia seguia a seu lado, rodeada por guardas. Esmeraldo sentiu um espasmo de fúria ao olhar para o rosto da juíza, mas obrigou-se a pensar apenas em Phoebe e no amor que sentia por ela.

A oficial e a juíza subiram um pequeno lance de escadas que dava acesso ao patamar de pedras onde a pira de Esmeraldo havia sido montada. Quando Phoebe se aproximou, o rapaz sorriu, encarou-a e sentiu lágrimas queimarem seus olhos.

— Phoebe! – ele gritou, suplicante – Phoebe, por favor, fique perto de mim!

A garota, surpresa, voltou-se para Esmeraldo e imediatamente seu olhar endureceu. Voltando-se rapidamente para outro lado, ela não viu o choque nos olhos de Esmeraldo, que insistiu, incapaz de acreditar no que via.

— Phoebe! Você disse que me amava! Por favor, por tudo o que e mais sagrado! – ele disse mais alto e a oficial mexeu-se, visivelmente incomodada, e encarou a ministra Frollo, que meramente ergueu uma sobrancelha.

— Calado! – ela finalmente virou-se para Esmeraldo e respondeu, em um sussurro furioso. O rapaz empalideceu.

— Você disse que me amava quando me incentivou a fugir da catedral! – ele respondeu no mesmo tom, ciente de que tanto Phoebe quanto Claudia ouviram – Você mentiu?

— É mentira! – Phoebe respondeu mas não para Esmeraldo, mas para Claudia, que a encarou com expectativas, seu rosto se fechando – Ministra Frollo, por tudo o que é mais sagrado, eu...

— Não! – a ministra ergueu uma mão em advertência mas sua voz soou calma, sem qualquer traço de ira ou de descontentamento – Não blasfeme, capitã, e tome seu lugar.

Esmeraldo agora sentia que as lágrimas desciam sem controle pelo seu rosto. Ele finalmente foi obrigado a entender que Claudia estava certa sobre Phoebe, aquela última decepção o quebrou e ele agora desejava que aquela fogueira fosse acesa de uma vez para que ele partisse logo. Para coroar seu desespero, o cigano teve tempo de notar o olhar significativo de Claudia para ele quando Phoebe se afastou. Seus olhos cinzentos claramente lhe diziam “eu avisei você” e havia certa piedade naquele rosto pétreo, sentimento que Esmeraldo absorveu mesmo a contragosto como um alívio ao seu sofrimento. Ao menos alguém ali sentia compaixão dele, mesmo que fosse a mulher que o colocara naquele tormento.

Mais uma vez os tambores retumbaram na praça e a ministra Frollo, vendo que estava na hora, adiantou-se até a beirada do patamar de pedras, ao lado da pira, e olhou para os cidadãos de Paris.

— O cigano Esmeraldo foi considerado culpado do crime de homicídio. – a juíza anunciou, sua voz forte enchendo a praça – A sentença para tal crime é a morte!

Mais uma vez os tambores retumbaram sinistramente enquanto os ciganos ali presentes, em especial os que estavam em Notre Dame no dia anterior e cantaram a Ave-Maria com tanta fé, choravam desolados, sentindo que suas preces foram em vão. Eles elevavam a voz, implorando, mas a ministra não os ouvia, restringindo-se a ler a terrível sentença maquinalmente, agora sem qualquer traço de sentimento pelo pobre condenado, seja amor ou ódio.

Já Esmeraldo, ouvindo aqueles clamores, olhava na direção da praça e viu os rostos familiares dos amigos que choravam. Clopin estava lá, dividido entre a fúria e a tristeza, contido pelos amigos que, se o soltassem, veriam o rei cigano sair desvairado, atacando a tudo e a todos. E na frente da pira, fazendo arrepios descerem pela espinha do cigano, estava o carrasco com a tocha na mão, que olhava para ele sem qualquer emoção. O rapaz tremeu mais, sentiu que desmaiaria a qualquer momento tamanho o pavor que sentia.

A ministra Frollo, assim que leu a sentença, aproximou-se do carrasco e tomou a tocha de sua mão, caminhando lentamente até Esmeraldo, que encolheu-se o quanto podia, temendo que a pira estivesse para se acender, acuado e apertado contra a estaca de pedras que feria suas costas. Mas a juíza não acendeu a fogueira. Ela parou diante do pobre rapaz e o encarou, seu rosto avermelhado pelo brilho do fogo, seus olhos cinzentos faiscando.

— Muito bem, cigano, está na hora. – ela disse baixinho, para somente ele ouvir – Você está à beira do abismo. No entanto – um sorriso cruel surgiu em seu rosto e sua expressão tornou-se absolutamente sinistra – eu ainda posso salvá-lo.

Esmeraldo sabia o que ela diria, o pavor o dominava e sua mente era um verdadeiro turbilhão de emoções. E ela continuou, sua voz não passando de um sussurro venenoso.

— Escolha a mim – a juíza deu mais um passo, o rosto quase colado ao de Esmeraldo, e sua mão seguiu até ele, a tocha bem segura, e o rapaz sentiu o calor mortal do fogo, o rosto ardendo, a dor fazendo-o suar frio – ou ao fogo!

O cigano olhou para a ministra, avaliou-a, seu rosto ainda ardendo pela proximidade com a tocha e, por um segundo fugaz, ele imaginou-se livre, ao lado dela, salvo do tormento. Mas aquele rapaz era feito de uma fibra muito mais forte do que a de muitos homens mais velhos e ele era do tipo que sonhava, que vivia pelo que acreditava e, surpreendendo até a si mesmo, percebeu que morreria pelo que era certo. Uma vida ao lado de Claudia não era realmente uma vida: era a certeza de que renunciaria ao que mais prezava no mundo, ao que mais desejara e jamais teria: o amor verdadeiro. E se era essa a vida que o aguardava, de que adiantaria escapar da morte agora?   

Resoluto, ele encarou a ministra, o medo abandonando-o de vez, seu rosto se fechando.

— Escolho ao fogo! – ele declarou com total convicção e Claudia, sentindo aquele último golpe em seu orgulho, o ódio acendendo-se novamente junto com o desprezo, sentiu que todo o encanto que Esmeraldo lhe lançara quebrou-se ali. Não restava mais nada da paixão que sentira, somente seu dever a cumprir.

— O cigano Esmeraldo recusou-se a confessar o crime! – mais uma vez a voz da ministra elevou-se acima da multidão -  Esse assassino colocou a segurança de toda Paris em perigo mortal! E agora, pela justiça, por Paris, pela segurança e proteção deste povo, é meu dever mandá-lo para os abismos!

E, com um único gesto, Claudia depositou a tocha acesa na lenha e, diante daquele amanhecer de sangue, da silenciosa Notre Dame e da multidão que assistia desolada, a fogueira finalmente se acendeu.

Quasímoda estava atada a uma coluna de pedra por uma resistente corda. O guarda a prendera ali no momento em que trouxera de volta ao campanário, pensando ser essa a melhor forma de cumprir a ordem da ministra Frollo, que desejava sua afilhada ali, assistindo a execução de Esmeraldo. A garota tentara de todas as formas mas não conseguira romper aquelas cordas. Agora só lhe restava ficar ali, desanimada, presa, apenas aguardando o pior acontecer.

“Vamos, tente mais uma vez!” uma parte da sua mente lutava, ainda acreditava que algo podia ser feito, mas a sineira meramente deixou-se ficar inerte.

— Por que é que eu ainda tenho esperanças? – ela murmurou cansada, enquanto ouvia sua madrinha ler a sentença de Esmeraldo, uma lágrima descendo pelo seu rosto – Está acabado!

Um silêncio caiu sobre a praça, madame Frollo se calara e Quasímoda recusava-se a olhar, com medo do que veria. Seria agora? Será que a fogueira já estava sendo acesa? Ela sentiu-se fisicamente doente, o desespero sugando suas energias, mas logo Claudia voltou a falar.

“Esse assassino colocou a segurança de toda Paris em perigo mortal!” Quasímoda ouviu aquela frase incapaz de resistir à fúria que sentia por saber que um rapaz inocente, tão doce e gentil, era obrigado a suportar tamanha injustiça. Seus grossos punhos se fecharam, seu corpo começou a tremer e ela tomou coragem para se aproximar, para encarar a praça. Sua madrinha, Esmeraldo e o horror do que estava para acontecer.

 E agora, pela justiça, por Paris, pela segurança e proteção deste povo, é meu dever mandá-lo para os abismos!” Claudia concluiu, Quasímoda sentiu um choque atordoante sacudi-la quando viu claramente a tocha ir da mão da juíza para a pira, que se acendeu na mesma hora. Esmeraldo arregalou os olhos, Claudia desviou o rosto e a cidade ali presente ergueu um alto clamor.

O homem que Quasímoda amava estava morrendo injustamente pelas mãos de sua madrinha que transformava-se ela mesma em uma assassina. A sineira perdia definitivamente as duas pessoas que mais amava em uma trama maligna enquanto aquela maldita corda ainda a prendia. Mas quando a fogueira se acendeu, é impossível descrever com precisão tudo o que se seguiu na alma daquela pobre menina pois, quando um milagre acontece, a razão recua, vencida, incapaz de apresentar qualquer explicação.

A sineira gritou, sua voz era poderosa e cheia de amor por aquelas duas infelizes almas ali, presas naquela trama, que se perdiam à medida que o fogo ganhava forças. Esmeraldo também gritava agora, tossindo e suando, vítima das chamas e da fumaça intoxicante enquanto Claudia, o orgulho estilhaçado pelo primeiro grito agoniado do pobre rapaz, tremia violentamente, incapaz de desviar o olhar.

A sineira deu um puxão violento na corda, toda a sua força empregada nisso: em livrar-se. Ela gritava, olhava para os céus, desesperava-se enquanto sentia que seu esforço era inútil. Mas aí ela gritou com toda a fé que tinha, recorrendo a única pessoa que poderia ajuda-la: Deus.

— Libera me, Domine! – ela recitou parte de um dos salmos que aprendera, repetindo a frase enquanto puxava com força total a corda que a prendia. E, para sua alegria, ela sentiu-a ceder. Mais um puxão violento, sua força aumentada em sete vezes, a fé e o amor a fortalecerem seu corpo e sua alma, e a corda estava prestes a partir-se.

Um último esforço, um outro rolo de corda intacto ali próximo, um plano na mente de Quasímoda, e a corda que a prendia finalmente se partiu. Rápida como um raio, a garota pegou a corda próxima e atou-a a uma coluna.

Esmeraldo já perdia a consciência, a dor tão insuportável que a razão o abandonava.  A fumaça avolumava-se ao seu redor e ele não conseguiu ver que havia alguém ali que estava chegando para salvá-lo pois Quasímoda, experiente como era em escalar aquelas paredes de pedra de Notre Dame, descia pela corda com tamanha destreza que fez os expectadores exclamarem surpresos. Em poucos segundos ela estava no patamar de pedras, atrás da pira, arrancando as correntes que atavam Esmeraldo e a última coisa que o rapaz viu antes de desmaiar por completo foi o rosto dela, sorrindo.

A sineira roubara o condenado de sua pira e agora erguia-o com facilidade, colocando-o em seu ombro enquanto agarrava a corda que a levara até lá embaixo e subia novamente por ela, sobre os olhares estupefatos de todos. Os guardas tentaram pará-la mas ela os golpeou com força, fazendo-os despencar da pira. Claudia, pasma, sem reação, congelara onde estava enquanto sua afilhada mais uma vez arriscava tudo para salvar aquele cigano.

E, em um último ato de bravura, assim que a sineira retornou à varanda bem na frente de Notre Dame, vitoriosa, ela ergueu o corpo desfalecido de Esmeraldo e gritou para todos ali, um sorriso enorme no rosto, os aplausos ecoando como um mar tempestuoso.

 -Santuário! – ela comemorou, Esmeraldo salvo em seus braços, Claudia livre de tornar-se uma assassina, todos os presentes comemorando aquele ato de heroísmo.

Por três vezes ela gritou, os ciganos emocionados respondiam ao grito dela, olhavam para seu amigo e sorriram, aplaudiam, agradeciam a Notre Dame. Logo os vivas foram substituídos pela Ave-Maria que cantaram na noite anterior, e era uma cena linda e comovente aquela: Quasímoda erguendo Esmeraldo acima de sua cabeça enquanto lá embaixo quase todo o povo agora cantava a Ave-Maria, os corações cheios de gratidão por aquele salvamento milagroso de um inocente da morte certa.

Mas a ministra Frollo ainda estava lá, Phoebe também, e os pais de Laurette agora estavam ao lado das duas.

— Isso não pode ficar assim! – Claudia ouvia-os falar mas não reagiu com a razão, limitando-se a andar até a catedral como quem sonha, enquanto os felizes parisienses ainda cantavam a Ave-Maria, a entrar no tempo e a desaparecer na escuridão. 


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Notas finais do capítulo

Então? O que acharam? Essa cena da animação simplesmente PRECISAVA estar nessa história! Não é O Corcunda de Notre Dame sem a famosa cena do Santuário!

Mas e Claudia? O que será que ela vai fazer?



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