Sob o Olhar de Notre Dame escrita por Lily the Kira


Capítulo 15
O Amanhecer de Sangue


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo termina o segundo ato, admito que foi difícil escrevê-lo e eu fiquei muito em dúvida se conseguira passar toda a emoção de todos os personagens, mas principalmente da Juíza Frollo, que vai protagonizar uma cena... bem, vocês precisam ler.


***********AVISO DE EXTREMA IMPORTÂNCIA!***********

Pelo amor de Deus, se você for sensível a uma cena, mesmo que sugerida, de suicídio, não leia isso sem acompanhamento de alguém, ok?

E, se precisar conversar, se passa por dificuldades, se a tristeza é grande demais, procure a Deus, sua família, seus amigos, converse, bote para fora! Não faça como Claudia fez, não se feche, não tenha medo!

Se precisar, ligue para o CVV: 188! E fique bem!



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Quasímoda ainda sorria, vitoriosa, lágrimas de alegria desciam por seu rosto enquanto ela ouvia o canto emocionado dos parisienses e ciganos na praça e sentia Esmeraldo ali com ela, salvo, protegido em Notre Dame. Ele estava ainda desmaiado e a garota, sabendo disso, rapidamente levou-o até um pequeno quarto em uma das torres. Mas o que importava era que ele estava salvo. Ela cuidaria dos ferimentos dele e tudo ficaria bem.

— Você está salvo, Esmeraldo! – ela disse para ele baixinho enquanto o deitava no colchão macio – Ninguém vai mais poder lhe fazer mal!

A sineira, preocupada, avaliou o estado do rapaz e seu coração apertou-se um pouco. As pernas dele estavam cheias de bolhas, feias queimaduras espalhavam-se por vários pontos de todo o seu corpo e só o belo rosto pareceu livre de qualquer arranhão. Mas o pior era a fumaça que ele inalara, isso certamente teria lhe causado um mal até mais sério que os ferimentos.

Sem perder tempo, Quasímoda ergueu-o novamente e colocou-o em seu colo, apoiando a cabeça do rapaz em seu ombro e, como se ele fosse uma criança, começou a dar batidinhas em suas costas para que a fumaça deixasse seus pulmões. Ela ficou alguns minutos assim mas ele não respondia, e seu corpo estava tão frio que a garota sentiu medo.

— Esmeraldo? – ela chamou novamente – Esmeraldo, acorde! Por favor!

Ela deu batidinhas no rosto dele, depois tentou dar-lhe um pouco de água em uma colher, chamou mais uma vez, implorou, seu corpo tremendo, e nada de Esmeraldo responder. Ele estava frio, não parecia respirar, e a sineira o abraçou, seu coração despedaçado.

— Esmeraldo? – ela agora chorava abertamente enquanto segurava a mão do rapaz, que pendia molemente, assim como todo o seu corpo – Por favor, acorde! Você não pode...

Quasímoda não concluiu o raciocínio mas o tempo passava e Esmeraldo continuava inerte, frio, sem qualquer sinal de vida. A garota não conseguia acreditar, não queria acreditar, mas a cada segundo suas esperanças de ver o amado vivo diminuíam. Até que a sineira finalmente baixou a cabeça e deitou o cigano novamente na cama.

— Está morto! – ela disse finalmente em um fio de voz, abraçando Esmeraldo novamente, sacudida por soluços. Não é possível descrever com palavras a dor que aquela pobre menina sentia ao ver que seu esforço foi inútil. Esmeraldo estava morto pelas mãos de sua madrinha. Ela fizera tudo o que podia mas as duas pessoas que mais amava no mundo estavam perdidas para sempre. Ele, no Paraíso. Ela, no abismo.

Enquanto isso, Claudia caminhava lentamente pelo interior de Notre Dame, incapaz de acreditar no que acontecera, os gritos atormentados de Esmeraldo em meio às chamas ainda soavam em seus ouvidos e uma dúvida cruel assaltou-a ao mesmo tempo em que a surpresa pela atitude no mínimo heroica de sua afilhada fazia com que a ministra refletisse sobre ela mesma e suas próprias atitudes.

A ministra, nos últimos momentos de Esmeraldo, o odiara. O desprezo dele a feriu de tal forma que ela sentiu que mesmo a paixão que sentia, a causa de todo aquele sofrimento, se extinguira diante da frieza do rapaz. Ela ainda tentou mais uma vez convencê-lo a ceder, enquanto ele estava para ser executado Claudia deu-lhe uma última chance mais por vaidade do que por realmente desejá-lo, mas ele recusou, e isso colocou uma pá de cal naquele tormento que ela vivera nas últimas semanas.

E quando a pira foi acesa, quando Esmeraldo, agoniado, desesperado e tomado por uma dor insuportável, começou a gritar, ela finalmente sentiu pena. A bondade que ainda havia nela venceu o mal que a prendia e a juíza compadeceu-se dele enquanto lembrava-se dos dias em que conversaram, quando o cigano lhe dissera de forma tão convicta que era inocente. Mesmo em seus últimos momentos ele repetia isso e ela, obcecada como estava em captura-lo, em mantê-lo perto, em convencê-lo a ceder a ela, não poderia ter deixado algo importante passar em meio àquele tumultuado processo?

“Meu Deus, o que eu fiz?” ela repetia mentalmente, o medo crescendo a cada segundo “Será que realmente condenei um inocente?”

Claudia continuou andando até ouvir o choro convulsivo da afilhada, que ainda abraçava Esmeraldo, repetindo dolorosamente para si que ele estava morto. Quando ouviu aquela triste notícia, a ministra congelou onde estava, seus medos agora gigantescos como um maremoto prestes a quebrar contra ela.

— Morto! – ela disse em um fio de voz enquanto encarava o rosto lívido de Esmeraldo, um rosto puro, de criança, de um inocente, o maremoto de seus medos finalmente despencando e quebrando com força total – O que foi que eu fiz? Meu Deus, o que foi que eu fiz?

A ministra, em absoluto choque, deu um passo para trás. Agora que tudo havia acabado, agora que a paixão por Esmeraldo estava extinta, agora que nenhuma tentação ou obsessão afligiam sua alma, sua afiada mente de juíza experiente apontou-lhe a verdade da inocência do cigano, e essa percepção foi aterradora. Era a primeira vez que ela condenava à morte um inocente, e o fizera por estar entorpecida pelo conflito que vivia.

Alguns artigos da lei processual vieram-lhe à mente, em especial os que mencionavam seu impedimento legal para julgar um réu pelo qual nutria sentimentos profundos. Como ela pôde esquecer disso? Por que não recusou-se a julgar, como era seu dever, e não passou aquele caso a outro juiz? Aquela falha custou a vida de um inocente e o sangue dele estava nas mãos dela agora.

— Meu Deus! – Claudia sussurrou, seu corpo tremendo violentamente.

Quasímoda ouviu a madrinha e voltou-se para ela, notando o remorso em seus olhos. Ela finalmente percebera o erro que cometera, mas era tarde demais agora e, por mais que a sineira a amasse, era impossível não sentir indignação. Era impossível sentir compaixão sem sentir também tristeza e raiva pela tolice daquela mulher antes tão amada.

— Por quê? – a garota disparou – Por que fez isso? A senhora sabia que ele não matou aquela mulher! Agora ele está morto e a senhora acabou de tirar a vida de um inocente! O que se tornou, madame Frollo?

Claudia não respondeu. Não conseguiu responder. Apenas aproximou-se de Esmeraldo para olhá-lo mais uma vez mas desistiu, incapaz de encarar o que fizera. Ao mesmo tempo, o arquidiácono chegava ao local, apressado e preocupado, entrando no quarto sem cerimônias.

— O que... – ele começou, mas Claudia o interrompeu.

— Está morto. – ela disse e saiu do quarto, incapaz de permanecer nem mais um segundo ali. O padre tentou chamá-la mas ela não respondeu, dizendo apenas que desejava ficar só e o religioso baixou a cabeça.

— Vá mais tarde falar comigo, madame Frollo, é só o que lhe peço, por tudo o que é mais sagrado. – ele lhe pediu e a ministra encarou-o sem realmente vê-lo.

— Sim, sim. – ela respondeu maquinalmente e voltou a andar – Já vou.

Quando saiu, a ministra ouviu o coro de ciganos lá embaixo, que ainda cantava a Ave-Maria e foi até o parapeito, para olhar a praça. Quando a viram, os cidadãos pararam de cantar, encarando-a entre curiosos e preocupados quando ela abriu a boca para falar.

— O cigano está morto! – ela anunciou, provocando uma onda de exclamações e de choque – Não há nada mais para se ver aqui. Vão!

Ninguém se mexeu durante longos segundos, incapazes de absorver aquela notícia terrível. Todos olhavam uns para os outros, incapazes de acreditar. Os ciganos, paralisados, ainda olhavam fixamente para a catedral, esperando que alguma coisa acontecesse, um milagre, uma outra notícia, qualquer coisa que desmentisse aquela notícia terrível. Clopin gritou, sua voz desesperada, cheia de dor, seus amigos contendo-o a custo para que o rei cigano não saísse correndo e fizesse uma besteira, tamanha era a sua tristeza e seu estado desvairado.

Phoebe simplesmente se retirou do local, para ela era apenas mais uma missão cumprida. O pai de Laurette praticamente arrastou a mulher para longe dali, aliviado por finalmente ver a sentença executada. Os parisienses saíam aos poucos, penalizados, pois a notícia de que Esmeraldo podia ser inocente havia chegado até eles, que gostavam do rapaz por causa de seu carisma e beleza. Logo a praça começou a esvaziar-se

Somente uma pessoa ali estreitou os olhos e encarou Notre Dame desconfiado. Leon de Dunois escutou o que Claudia dissera, o choque o atingira também e, por um breve segundo, também ele permaneceu tomado pela tristeza. Mas sendo médico, ele rapidamente foi chamado à razão por sua mente afiada e, calculando o tempo que se passara, notou algo estranho.

— Ele ficou pouco tempo na fogueira, não daria tempo da fumaça ou do fogo matá-lo. – ele ponderou e, dizendo isso, disparou em direção a Notre Dame, abrindo caminho com dificuldade pelo grupo de pessoas que deixavam o local, o senso de urgência gritando em sua mente – Por favor, deixem-me passar! O cigano precisa de cuidados, ele não está morto!

Os que ouviram arregalaram os olhos e deram passagem ao médico, e logo Leon conseguiu avançar mais rapidamente, porém não com a velocidade que gostaria. Havia muita gente ali, a praça estava tomada de pessoas e havia pouco espaço para que eles se afastassem. Mas Leon, cada vez mais resoluto, abria caminho mesmo que precisasse empurrar alguns para o lado, pedia desculpas mas seguia tão rápido quanto possível. Se Esmeraldo estivesse mesmo vivo, precisava de cuidados urgentes ou de fato morreria.

Ofegante, Leon chegou finalmente ao pórtico de entrada da catedral e entrou, agora correndo como nunca correu em toda a sua vida, e disparou escada acima enquanto rezava para que tivesse tempo de salvar o rapaz.

O arquidiácono encontrou o médico e encarou-o surpreso.

— Onde está Esmeraldo, Eminência? – Leon perguntou, a respiração ofegante.

— Por aqui, - o padre acompanhou-o até o quartinho onde Quasímoda ainda chorava, Esmeraldo bem seguro em seu colo. O médico entrou e retirou o cigano dos braços da garota, que olhou surpresa, sem entender.

— Ele não está morto, Quasímoda, não pode estar. – foi tudo o que Leon disse em explicação e, diligente, começou a examinar o cigano sob os olhares novamente esperançosos da sineira e do arquidiácono.

Leon permaneceu um tempo ali, examinando, escutando, verificando, fazendo um pedido ou outro a Quasímoda para que ela lhe trouxesse água fresca ou qualquer outra coisa necessária, e seu rosto parecia cada vez menos anuviado. Ao final daqueles longos minutos, o médico ergueu a cabeça e disse, finalmente tranquilo.

— Ele está vivo e ficará bem. Só está ferido, em choque e um pouco intoxicado com a fumaça, mas isso poderá ser resolvido com relativa facilidade.

— Graças a Deus! – Quasímoda ergueu a cabeça e sorriu, agora chorando de alívio, e caiu de joelhos ao lado de Esmeraldo, abraçando-o com força enquanto o arquidiácono também sorria, dando tapinhas no ombro da sineira enquanto agradecia a Leon por ter agido com tamanha eficiência.

— Eu é que fico feliz em saber que consegui chegar a tempo – o médico comentou e Quasímoda ergueu a cabeça.

— Salvou duas almas hoje, monsieur Leon! – a garota sorriu e Leon entendeu o que ela queria dizer, sentindo uma repentina preocupação quando percebeu que não vira Claudia em nenhum lugar por onde passou.

— Onde está a ministra Frollo? – Leon perguntou mas nenhum dos dois sabia lhe dizer, mas nesse momento Esmeraldo se mexeu, grunhiu de leve e abriu os olhos, fraco e confuso.

— O que... onde eu estou? – ele disse, a voz rouca, a garganta seca e dolorida – Eu morri?

— Você está vivo. Está salvo, Esmeraldo! – Quasímoda respondeu com ternura, olhando para o rapaz que arregalou os olhos ao vê-la – Está em Notre Dame

— Salvo? Como? – o cigano arregalou os olhos de esmeralda e encarou-a, notando que ela o abraçava e permitindo esse gesto, a comoção cada vez mais visível em seus olhos enquanto Quasímoda lhe contava o que fizera e como o salvara das chamas. Ao final do relato, ele abraçou a sineira de volta enquanto ria e chorava de alegria, grato, aliviado e feliz.

Leon e o arquidiácono sorriam ao ver aquela cena, a pureza daquelas duas almas era comovente e o religioso fez uma breve mas linda oração, erguendo as mãos e agradecendo a Deus por livrar da morte um inocente e por dar forças a uma alma bondosa e pura para que enfrentasse tudo para salvá-lo.

— Vimos um verdadeiro milagre acontecer hoje, senhores – o velho padre, sorrindo ainda, comentou, feliz – Nada ficará tão gravado em minha mente quanto este dia.

— Nem na minha! – Quasímoda ainda sorria, Esmeraldo abraçando-a com muito carinho mas sem dizer nada já que o choro aliviado não permitia.

Leon acompanhou aquela alegria também feliz, comovido, mas seu coração sentiu uma pontada de medo. Onde estava Claudia?

— A ministra tem que ser informada de que Esmerlado está vivo, não? – o médico comentou de repente, e todos voltaram-se para ele. Quasímoda suspirou e o cigano arregalou os olhos.

— Ela acha que eu estou morto? – ele questionou, o sangue novamente gelando em suas veias, o pavor dominando-o – Por tudo o que mais amam nesse mundo, não digam nada a ela ou aquela mulher vai acabar comigo mesmo que o faça com as próprias mãos! Não fazem ideia do quanto ela está fora de si! Tirem-me daqui, façam o que quiserem mas não digam a ela que estou vivo, pelo amor de Deus!

Leon ouviu chocado aquele pedido, o medo inquestionável que Esmeraldo sentia comovendo-o enquanto ele ajoelhava-se ao lado do rapaz e o encarava nos olhos, tranquilizando-o.

— Dou minha palavra de que nada acontecerá com você, Esmeraldo, ou não me chamo Leon de Dunois. – Leon declarou convicto enquanto Esmeraldo ouvia, ainda assustado – Deixe que eu cuido da ministra Frollo, confie em mim. Está seguro e assim permanecerá.

Esmeraldo pensou por um segundo, o incidente no Pátio dos Milagres voltando à sua mente, mas Quasímoda o encarava docemente e o medo abandonou o cigano.

— Pode realmente me prometer que eu ficarei seguro? – ele ainda questionou mas a calma já o trazia de volta a razão a ponto da resposta para aquela pergunta ser inútil.

— Todos nós podemos. – foi o arquidiácono que respondeu enquanto Leon sorria e Quasímoda meneava a cabeça, confirmando.

— Então... – Esmeraldo sorriu finalmente, deitando a cabeça cansada no macio travesseiro e sentindo tamanha calma e alívio que finalmente, depois de semanas sem dormir direito, o rapaz pegou no sono.

Enquanto Leon conversava com Esmeraldo, Claudia caminhava sem rumo, o rosto frio do cigano, puro como o de uma criança, não saía de sua mente e tudo o que ocorrera até então, desde fatídico Festival dos Tolos, passava por seus olhos como um filme terrível.

“Eu daria tudo para ter aquele cigano e agora nada mais resta daquela paixão. Ah, se eu soubesse que isso terminaria de uma forma tão repentina, como se não fosse nada! Esmeraldo está morto por conta da minha idiotice!” ela pensava, mal vendo para onde ia, ainda nos arredores de Notre Dame mas sem saber dizer onde estava exatamente.

“Conseguimos o que queríamos! Agradecemos, ministra Frollo, já temos Esmeraldo agora falta a senhora!” Claudia quase conseguia ouvir e ver ao seu redor uma legião de anjos caídos que riam dela, aplaudindo tudo o que fizera com grande satisfação. Olhando ao seu redor, a visão de uma das gárgulas de Notre Dame arrepiou-a e a juíza virou o rosto, ciente de todos os pecados que cometera, esse entendimento quase sufocando-a.

A repulsa pelo sentimento que nutrira por Esmeraldo invadiu Claudia de tal maneira que ela se sentiu suja, esse tormento somando-se ao remorso por tirar a vida de um inocente, e a ministra sentia mais arrepios, agora de asco, passando por sua espinha, como se estivesse mergulhada na lama.

“Laurette estaria orgulhosa! O que vai ser quando se encontrarem no mesmo poço infernal, Claudia? Você fez o que ela queria ter feito mas não conseguiu, parabéns!” As palavras sarcásticas do lado mais sombrio de sua mente feriram-na e a ministra, aturdida, sentou-se em um banco e escondeu o rosto entre as mãos, apertando os ouvidos mas sem conseguir escapar de sua própria consciência.

O Sena brilhou ao sol que nascia, Claudia viu um raio de sol tocar as águas bem diante de seu rosto e tampou a visão para proteger-se da claridade violenta, mas as águas do rio chamaram sua atenção. Era um alívio para a sensação de impureza que sentia e ela caminhou até a borda da mureta que contornava aquele jardim ao lado da catedral e encarou lá embaixo.

Seu rosto quase desvairado olhou-a de volta, ela viu as olheiras profundas que circundavam seus olhos, as linhas de expressão visíveis e mais profundas, os cabelos presos em um penteado simples que seria elegante se não lhe parecesse uma total ironia aquele toque de beleza em um rosto tão marcado pela escuridão. Claudia já não era mais bonita e, ela não sabia dizer se era efeito de sua mente tão transtornada ou se era efeito da água do Sena, que corria lentamente, mas de repente sua própria imagem pareceu-lhe grotesca, distorcida, tão horrorosa quanto os rostos de pedra das gárgulas. E mais uma vez ela quase podia escutar as risadas diabólicas que saíam daquelas imagens milenares, que olhavam para ela sem cessar.

“É uma de nós! Falta só você vir nos encontrar. Já conseguimos o que queríamos, não precisamos mais de você, assim como você não é mais digna de estar no mesmo mundo que pessoas tão bondosas como Leon, Quasímoda, o arquidiácono...”

Claudia, de repente, lembrou-se de que o religioso disse apenas alguns minutos atrás que queria falar com ela e uma pequena luz acendeu-se em seu coração, mas no mesmo momento ela percebeu que teria de confessar a ele absolutamente tudo o que fizera, e ela não suportou a ideia de dizer em voz alta que desejara ter como amante um jovem cigano e que, por conta desse impulso, perdeu-se de tal forma que chegou ao ponto de tirar-lhe a vida injustamente. Para Claudia, seria menos doloroso apenas saber de tudo o que fizera mas sem dizer em voz alta, sem ouvir-se confessando aquelas coisas.

Mas sua mente transtornada estava ainda gritando por socorro, lançada em um verdadeiro furacão, assim como as almas que pecavam pela luxúria eram atormentadas no Primeiro Círculo do inferno e Claudia lembrou-se do dia em que lera a Divina Comédia, de Dante Alighieri, e pensara “como alguém pode atirar-se no inferno, sabendo quais pecados o leva até lá?” Agora ela sabia como.

Como que guiada por uma disposição realmente maligna, a ministra finalmente levantou-se do banco onde estava sentada e encarou Notre Dame, o local que mais amava no mundo, e duas coisas destacaram-se em sua visão: a grande cruz de ferro no alto do pináculo central da igreja, que se destacava contra o céu cinzento, e uma gárgula horrorosa, sua bocarra aberta, iluminada pela claridade de fogo que ainda tingia os céus e a cidade.

Claudia olhou apenas brevemente para a cruz, a vergonha esmagadora por tudo o que fizera finalmente derrotou-a e a imagem da gárgula, de boca aberta, agora tomava toda a sua visão e, por efeito do estado de desvario em que estava, Claudia sentiu que aquela estátua sinistra ganhava vida e que sua boca abria-se ainda mais, seus olhos queimavam em chamas e que ela mesma, Claudia, caía em um precipício ao mesmo tempo em que algo pesava incomodamente em sua cintura.

A ministra tocou distraidamente o peso em sua cintura e sentiu o metal frio de sua adaga, a arma que sempre a acompanhava em todos os atos oficiais externos que realizava. Ela retirou a arma da bainha enquanto a gárgula ainda a encarava faminta e a arma tiniu.

“Já chega.” Foi a única coisa que Claudia disse antes da arma descer com violência e do sangue espirrar. E a última coisa que a ministra Frollo viu antes de sua visão escurecer foi o rosto desesperado de monsieur Leon de Dunois no exato local onde um segundo atrás havia apenas a carranca da gárgula. 


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Notas finais do capítulo

Foi pesado escrever isso... Claudia teve todas as chances, tantas pessoas disseram a ela para falar... mas ela não conseguiu. Não a julgo, falar nem sempre é fácil, ainda mais quando você sofre com um mal que você mesmo causou ou com algo que te desperta tanta vergonha...

Se era pecado desejar alguém como somente um amante, se essa obsessão levou Claudia à loucura, ao mesmo tempo havia pessoas que desconfiavam e até sabiam disso e estavam dispostas a ajudar.

O que eu quero dizer: nunca pense que está só porque você não está. Ela não estava, nem você está.

Palavra de quem um dia já pensou que estava só e descobriu que não estava e se sentiu muito feliz com isso...

Veremos agora o que será desses personagens no terceiro ato, que se iniciará no próximo capítulo. Que todos eles sejam felizes, não?



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