MIB - Homens de Preto: A Síndrome da Nação Humana escrita por Agente F


Capítulo 3
O Causo de Zed




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/781276/chapter/3

Um senhor está sentado em um dos lados de uma mesa de uma delegacia. Seus olhos estão suplicantes de respostas.

Peritos olham à sua frente, passando os dedos pelo queixo.

À frente, o monitor mostra gravações de uma câmera de segurança de um estabelecimento comercial.

Um dos peritos vira-se para o senhor.

— O senhor disse que observa o incidente a partir das 20:00? – pergunta o perito.

— Exatamente.

O responsável pela reprodução da fita avança a gravação algumas horas, até o registro do horário referido.

O senhor aponta o dedo para a tela e exclama:

— Ali! Na seção das caixas de leite!  Todo dia isso acontece.

Os peritos chegam mais perto do monitor. A gravação mostra uma das caixas de leite misteriosamente sumindo, aos poucos.

— Intrigante! – diz um dos peritos.

— Problemas na câmera talvez? – pergunta outro.

— Impossível. Ela está em perfeito estado. – responde o senhor.

— Não pode ter passado por um programa de edição. É uma gravação original da câmera. – aponta outro.

Um dos peritos volta-se para o senhor, o dono da fita e proprietário do estabelecimento.

— Eu duvido muito.

— O que o senhor quer insinuar? – pergunta surpreso o senhor ao perito.

— Pessoas inventam lendas urbanas todos os dias. – diz o perito.

— Eu não posso acreditar no que estou ouvindo! - diz o senhor.

— O senhor, de alguma forma, programou a gravação para, todo dia, a partir desse horário, isso acontecer.

— Isso já é um insulto! – responde o humilde gerente do estabelecimento.

Um homem abre a porta da delegacia. Todos se viram para olhar.

— Não se fazem mais homens como antigamente. Onde estão os modos? – diz um indignado Zed.

Um dos peritos pergunta a ele:

— Quem é o senhor, por gentileza?

— Bem, eu sou alguém que tem a gentileza que o senhor não tem. – responde Zed.

Ele achega-se à vítima e a cumprimenta.

— Agente Z. Com sua licença.

Mais calma, a vítima o cumprimenta. O enigmático homem parece ter feito os ânimos de todos os presentes se tornarem amenos. Depois, volta-se para os peritos.

— Agente Z. Divisão 6. Deixem-me prosseguir com a vítima daqui em diante, por favor.

— Desculpe, mas não sei se isso será possível. – diz um dos peritos.

Zed vai até o responsável pela reprodução da fita.

— Vá até o minuto 26 do momento do dia 28. – ordena Zed.

Meio que se sentindo importunado, mas, ao mesmo tempo, desafiado, o técnico o faz.

Todos olham com bastante atenção para a tela do monitor. É a imagem de uma outra câmera de segurança.

— Mas você trocou a fita! Desculpe, mas como...?

— Não é importante agora. – interrompe Zed.

— Essa câmera mostra a prateleira de outra perspectiva. Não dá pra ver muito bem porque tem aquele painel na frente. – diz um dos peritos.

Zed vai ao monitor e aponta o dedo em um local.

— Certo. E, se você olhar atentamente, vai ver que logo aqui dá pra ver um pouco do leite sumindo, ao mesmo tempo em que isso parece tirar as outras caixas da inércia, fazendo-as caírem. – diz Zed.

Os peritos ficam surpresos enquanto observam. No exato momento em que a caixa de leite some, uma força parece ter tirado as outras caixas de leite, mais próximas da beirada da prateleira, de equilíbrio, fazendo-as caírem.

— Vocês só deram importância à primeira fita. Nela não dá pra ver isso, pois esse senhor fica bem na frente da prateleira. – diz Zed, enquanto aponta para a pessoa no monitor.

— Parece que alguma coisa invisível bateu nas caixas! – diz o perito.

— Impressionante! – surpreende-se o gerente.

— Alguma coisa não. Alguém. Deixem que cuidamos disso. Estamos diante de um caso de pequeno furto, senhores. – diz Zed, sorrindo.

— Cometido por quem? – diz um dos peritos.

— Se eu contasse, teria que apagá-los. – diz Zed.

Eles se surpreendem, franzem a testa e se olham.

— Eu quis dizer, não executando, mas utilizando um neuralizador. Até a próxima. – diz Zed.

Depois que ele e a vítima saem, os peritos continuam se olhando.

— O que é um neuralizador? – um deles pergunta aos outros.

 

Na manhã do dia seguinte, J acorda e se espreguiça, sorrindo. O despertador toca. J resmunga, ainda deitado, e vira-se para o outro lado.

O busto de Zed aparece no pequeno transmissor de J, que, neste momento, está acoplado a uma espécie de base, com uma cavidade retilínea - servindo como um gancho telefônico em relação ao corpo telefônico no qual se fala – que está sobre um criado-mudo.

— Bom dia, Junior. Missão pra você. Compareça ao meu escritório dentro de 10 minutos.

J agora se assusta um pouco com a voz de Zed e acorda de vez.

— Ah, oi Zed! Claro, estarei aí.

Antes que possa se despedir, Zed parece ouvir algo.

— Por que é que estou ouvindo um barulho de chuveiro? – pergunta Zed.

J gagueja um pouco.

— Ah, deve ser a L. Ela liga o chuveiro muito forte! – disfarça J.

— Mas o dormitório dela fica a dois do seu, para soar tão alto assim. O dormitório à sua esquerda é o do agente I. Ele já está em missão. E à esquerda é o do K, não mais entre nós. Que Deus o tenha!

— K morreu? – surpreende-se J.

— Eu quis dizer que não está mais entre nós como agente. K se foi, mas Kevin Brown ainda vive.

— Ah, sim! Obrigado por quase me matar de susto, Zed! Ah, então esse é o nome do K! Kevin Brown.

— Sim. Mas então, alguém fez uma reforma por aí? Pois não dava pra ouvir isso antes. - continua Zed.

— Bem, boa pergunta. Perguntarei a L quando eu a vir. - diz J.

Zed franze a testa.

— Se eu não te conhecesse, diria que usaram laser para furar a parede, do dormitório, pois estão tendo um caso. – diz Zed.

— É... Então que bom que você me conhece! – desconversa J.

— Bem, não é exatamente contra o protocolo agentes se relacionarem deste modo, mas espero que não permitam que isso atrapalhe no trabalho. Afinal, vocês são parceiros. – diz Zed.

— Mas de onde você tirou que... Ora, bolas!... Que imaginação fértil, hein, Zed?! – disfarça J.

— Engraçadinho. Eu vejo como olha para a L. – comenta Zed.

— Acho que está vendo coisas.

— Enfim, quero meus dois melhores agentes aqui em 10 minutos.

— Beleza.

Depois de dois minutos, batem na porta de J. É L.

— Oi, tigrão! Temos que ir. Nada como uma boa noite para tirar o estresse, não é mesmo? - diz L.

— Ah, oi L! Acho que nossa discrição não deu muito certo. Zed desconfiou.

— Mas como? Ainda fizemos questão de voltarmos pros nossos respectivos dormitórios!

— Barulho do chuveiro. Com o furo da parede, ele fica bem mais alto.

— Droga!

 

O casal de agentes aparece no escritório de Zed. Zed pede para que se sentem. Cada um se senta em uma das poltronas que ficam em frente à mesa dele. Ao fundo, no térreo da agência, visível através das paredes de vidro transparente do escritório, já se vê um movimentado expediente, na forma de um trânsito frenético de humanos e alienígenas pelo recinto.

As Minhocas circulam servindo copos de café a vários agentes.

É visível uma fila de turistas imensa, esperando para mostrarem seus documentos a um agente recepcionista. Do outro lado do salão, uma fila de imigrantes. Pelos cantos do corredor que dá acesso a lanchonetes, banheiros públicos e portas de acesso restrito a funcionários, agentes levam aliens criminosos detidos.

Distraído olhando para o salão, J bate um dos dedos no queixo. Zed pede que esperem por um momento, enquanto analisa alguns documentos.

J olha para um marciano sendo conduzido por um agente ao corredor que leva às prisões. Depois disso, vira-se para L.

— Por que a NASA não manda a real pras pessoas sobre a vida em Marte? – pergunta J.

Zed interrompe L antes que possa responder:

— Porque os marcianos desconfiariam que estaríamos querendo planejar uma colonização no planeta, depois de a Terra esgotar seus recursos naturais.

L olha para J, com olhar de sagacidade.

— Acredita no corredor da morte para alienígenas?

Zed interrompe J antes que possa responder:

— Depende da gravidade do crime cometido e do sistema planetário ao qual os envolvidos pertencerem. Algumas raças consideram a pena de morte de um indivíduo de sua sociedade em outro planeta um grave delito contra sua honra. Outras não.

J e L apenas se olham, constrangidos.

Zed olha para eles. Eles estão encarando-o com “cara de paisagem”.

— Desculpe. Achei que estivessem perguntando pra mim. - comenta Zed.

L responde:

— À propósito, o “acreditar” foi no sentido de literalmente crer na existência desse ato que é tão controverso, não “acreditar” no sentido de achar que isso é digno.

Zed fica olhando para L.

— Se o crime do alien for colocar em risco a raça humana, sim! – diz Zed, num tom um pouco mais alto do que gostaria de ter dito.

Isso obviamente foi subseguido por um clima de silêncio constrangedor. Até que J levante a mão, ludicamente, como um aluno do Ensino Fundamental prestes a fazer uma pergunta ao professor.

— E se o indivíduo, ou criatura – seja lá o que for – for possivelmente inocente? – pergunta J.

Zed fica calado por um tempo.

— Há requisito de provas suficientes para se requerer esse tipo de pena. Além do mais, não fui eu que estabeleci as regras, garoto. – responde Zed.

— É a lógica do “é melhor prevenir do que remediar.” – complementa L. – Só não sei até que ponto isso tem implicações positivas.

— Essa frase meio que sintetiza a noção de ilegalidade da imigração. – diz J.

— Continuando, seria necessário um projeto de Emenda Constitucional aos arquivos ultrassecretos do governo, para desfazer esse tipo de sentença. – complementa Zed.

— É. Deve ser complicado. – comenta J.

— Claro que é. Eu mesmo já tentei, sem sucesso. – responde Zed.

J e L se olham.

— Fala sério, chefe? – pergunta L.

— Sim. Nos primórdios da organização. – responde o homem, tossindo um pouco enquanto fala.

— E o que fez você mudar de ideia em relação à questão? – pergunta J.

— Uma tragédia que aconteceu. Creio que não seja o momento apropriado para falar disso agora. Vocês têm uma missão.

Zed entra em devaneio, lembrando de quando ainda era um jovem agente. De quando ainda era simplesmente o Agente Z, chamado apenas de Zed pelo seu parceiro, o agente B. Antes de ser o chefão conhecido por todos os outros como Zed, Z era apenas um jovem magro, recém-saído do Exército Americano, que pouco lembrava o homem mais robusto e barbudo que viria a se tornar.

 

Acontece que, com os primeiros estudos científicos a respeito de ÓVNIS, o Governo norte-americano passou a consultar os cientistas para estabelecer um perímetro geográfico que servisse de porto interespacial para receber a visita dessas naves que eram seu objeto de estudo, e que, até então, só pairavam pelos ares, à procura de sinalização para uma permissão de pouso.

A partir dos anos 1960, o Governo selecionou um grupo de agentes de polícia crédulos que já tinham tido – ou relatado - supostos contatos com aparições extraterrenas, ou que tivessem experiência de defesa e vigilância de residências ou áreas de provável incidência dessas aparições, e os designou para um treinamento especializado em tecnologias ultrassecretas.  Daí, se deu o surgimento da MIB. O centro de treinamento dos agentes situava-se na mesma área do porto interespacial: a chamada Área 51.

Após os primeiros contatos com alienígenas, geralmente refugiados de planetas em estado de guerra, o Governo começou a ter conhecimento de tecnologias das mais variadas, e passou a compartilhar informações e tecnologias com os imigrantes extraterrestres. 

O próprio Zed esteve entre os pioneiros que fizeram o Primeiro Contato, em 1961. Além dele, estavam presentes os agentes A, B, D, T, Q, H, um astrônomo e um jovem adolescente que, por acaso, estava dirigindo pelo local e testemunhou a aparição do disco voador, o futuro K.

Os cientistas passaram a utilizar a tecnologia alienígena para empreender viagens interespaciais secretas. As únicas viagens ao espaço conhecidas pela sociedade terráquea e transmitidas pelas redes de comunicação terráquea são as que utilizam tecnologia terráquea – sobretudo, as missões Apollo.

O que as pessoas não sabem é das viagens empreendidas por humanos em naves extraterrestres, para estudar a vida em outros planetas e sistemas planetários. O próprio Zed fez parte do corpo de agentes especiais da MIB que foi convocado a realizar essas viagens.

Apenas os planetas das raças que já haviam visitado a Terra foram selecionados para a empreitada. Os refugiados que queriam retornar a seus planetas natais, depois de passado o estado de emergência de guerras, levavam os Homens de Preto convocados para honrarias. Os humanos foram muito bem recebidos por essas raças, e ambas compartilharam informações e tecnologias com mais eficiência, além de firmarem pactos e organizações de cooperação.

A partir do mapeamento e sistematização desses conhecimentos, criaram-se as classificações terrestres desses seres, distinção entre racionais e irracionais, nomes e tipos de sistemas planetários, mapas de localização de portais multiversos presentes na Terra, bem como desenvolveram-se os livros e as enciclopédias feitas por agentes MIB para uso interno e preparação de novos médicos e cientistas especializados em organismos de raças extraterrestres.

Com o aperfeiçoamento dos sistemas de satélites e monitoramento atmosférico, a agência passou a regulamentar o trânsito de naves e estabelecer requisitos para permissão de imigração, como, por exemplo, o reconhecimento da tecnologia da nave e identificação de todos os tripulantes a bordo, cujas presenças eram checadas por sensores de calor à distância; ou, por exemplo, serem oriundos de planetas membros das Federações Intergalácticas das quais a Terra fizesse parte.

 

Certa feita, em um de seus primeiros casos, Zed e seu parceiro na época, o agente B, cuidaram de um caso envolvendo a morte inexplicável de um rapaz fazendeiro chamado Harry, numa comunidade Amish, e supostas aparições demoníacas relacionadas a isso, vistas na vila. No pescoço do corpo da vítima, foram identificados dois furos. Não havia nenhum animal na região capaz de haver marcado daquela forma o corpo da vítima.

Ao observarem o local, encontraram nas redondezas o cadáver de uma estranha criatura que aparentava absolutamente ser um morcego. Porém, a diferença era que ele tinha uma pele avermelhada ao invés de acinzentada. Eis que eles acharam o tal “demônio”, que deveria ser um mamífero pertencente a um ecossistema de outro sistema planetário e que havia ido parar na Terra só Deus sabe como.

Ainda não havia a tecnologia de neuralização na época. Os Homens de Preto contavam com a maturidade e/ou com a força emocional das pessoas para lidarem com esses incidentes. Ao mostrarem à referida família o ser que teria matado seu filho, a mãe se assustou e foi às lágrimas. Religiosa fervorosa que era, recitou uma rápida oração de quebrantamento, pedindo que retirassem aquela criatura dali imediatamente.

— Calma, senhora! Não é um demônio, e sim um mamífero extraterrestre. – disse Zed.

— É um demônio! Eu falei ao meu filho que Deus iria castigá-lo se continuasse a sair com aquela rapariga mundana! Ele foi capaz até de xingar os versículos bíblicos de que lhe falei! Veja os senhores o que uma mulher pode fazer à cabeça de um nobre homem! É a mais astuta serpente a levar o homem ao caminho da perdição! Não nos esqueçamos que foi Eva quem levou Adão à queda. Oh, Senhor, dai-me forças, pois meu filho pecou contra Ti!

O rapaz estava em processo de desmembramento da comunidade Amish, e, ao sair da vila, havia se apaixonado por uma moça da cidade. Na mentalidade da anciã, o firmamento do compromisso com ela selaria a maldição de seu filho perante Deus.

— Senhora, a morte do seu filho não está relacionada com nada do que ele tenha feito. Ele só estava no lugar errado, na hora errada. – disse Zed.

— Ah, claro. Pra vocês, oficiais do governo mundano, tudo não passa de uma série de coisas do acaso!

O parceiro de Zed, B – ou Beta, para os conhecidos internos – pôs-se um passo à frente. Visivelmente incomodado com a maneira com que a mulher tratara Zed, ele permitiu-se assumir uma postura mais audaciosa.

— Senhora, há muito mais lá fora do que a sua cavernosa mente religiosamente fanática pode entender. – diz B.

— Como ousa falar comigo assim na minha própria casa!? – diz a mulher.

— Está claro que a senhora não faz parte da parcela de sua comunidade que votou a favor da entrada de estranhos impuros aos seus territórios sagrados. – conclui B.

— Não mesmo!

— No entanto, dada a sua extrema ignorância, é dos “impuros” que vocês dependem para investigar tragédias que vão além do que sua mente pode explicar!

— Repito! Não fui eu quem chamou os senhores aqui.

B ofegou.

— Bem, se a senhora se sente confortável com a ideia de servir a um Deus que teria matado seu próprio filho por tão pouco, não sei como ainda consegue ficar triste por ele. Parece-me que sua vida é tão banal para Ele que sequer seja digna de lamento, por esse raciocínio.

A mulher apenas abaixou a fronte e chorou, abraçando a jovem filha, irmã do falecido, que estava ao seu lado.

Zed apoiou sua mão no ombro de Beta.

— Vamos embora daqui. Precisamos examinar a criatura. – disse Zed.

B ainda insistiu em se dirigir à mulher.

— E, sejamos razoáveis, se bem entendo, demônios são seres malignos espirituais, e não criaturas palpáveis por mãos humanas. Além do mais, a senhora estaria insinuando que o próprio demônio estaria associado a Deus para cumprir com a tal sentença, o que implicaria a submissão deste ser a Deus, o que faria dele Seu servo, não Seu antagonista! – completou B.

A mulher apenas aumentou o tom de seu choro, no ombro da tímida filha, que apenas olhava para os agentes, inexpressiva.

— Venha, B! Viemos para investigar uma morte, não discutir Teologia! – disse Zed ao seu ríspido parceiro.

— Ignorância me irrita! – disse Beta a Zed.

Depois, voltou-se uma última vez para a mulher.

— Parece-me que a senhora precisa rever e refletir suas concepções teológicas antes de ensinar asneiras aos filhos! – grita B.

— Saiam de minha casa! – gritou a mulher.

— Meus pêsames, senhora! Me desculpe pelo meu parceiro. – disse Zed à mulher, antes de finalmente abrir a porta e sair da casa.

Meses depois, foi descoberto que a mulher não só renegara a comunidade e o estilo de vida Amish, como passou a ser ateia. As palavras de Beta naquele dia pareceram ter-lhe surtido um efeito considerável de reflexão que a fizeram desconsiderar tudo o que acreditara.

No dia da morte do filho, o que aconteceu foi que durante uma briga intensa com o filho por causa de seu interesse amoroso com a moça, que não compartilhava das crenças Amish, ela o fez sair de casa irritado e transtornado. Confuso sobre suas próprias convicções, tornadas ainda mais inseguras pelo alto tom de voz estremecedor de sua rígida mãe, ele foi justamente capinar em uma região isolada sobre a qual a maioria da comunidade consentia de que havia aparições demoníacas inexplicáveis, justificadas como ameaças do “Inimigo” aos seus ritos e costumes.

Cansado de viver a rigidez daquele fundamentalismo, o rapaz foi intencionalmente tentar Deus no controverso local, pedindo que se manifestasse para ele. Se o livrasse das figuras demoníacas com vida – se é que de fato existiam e viviam ali – daria por abençoado por Ele seu relacionamento com a amada. E iria em paz e viveria com ela. Se não, deixasse-o ser ferido. De preferência, morrer ali mesmo, tragado pelas criaturas, pois, de qualquer forma, não suportaria uma vida sem ela, e estaria fadado a desonrá-lO. Preferia a morte a uma vida sem a moça.

Eis que o pior aconteceu. Ao capinar ainda mais perto da tal região, uma criatura apareceu e o atacou. O rapaz caiu morto ao chão. Dias depois, sabendo do ocorrido, a moça entrara em depressão profunda. Inundada por culpa, tirou a própria vida. Um episódio lamentável.

 

Quando da fabricação dos neuralizadores, Zed ainda se lembrava daquele caso, e das palavras que seu parceiro havia dito àquela controversa mãe.

Sem que nenhum outro Homem de Preto soubesse, Zed fora visitar a tal mulher - que se chamava Catherine - e sua filha, que viviam em algum lugar no Centro de Nova York, àquela altura.

Catherine estava com a aparência visivelmente modificada, pelo consumo excessivo de cigarro e drogas. A decepção religiosa a fez não apenas se tornar uma ateia, mas uma pessoa sem a menor perspectiva de uma vida saudável e equilibrada. O exercício de reflexão, ainda que pertinente, não lhe deu espaço para processar saudavelmente os rumos e os novos limites e horizontes que sua vida poderiam tomar. Seu ateísmo, portanto, veio de uma decepção para com ideais extremamente arraigados, proporcionando-lhe uma consciência cética, mas, nem por isso, necessariamente saudável e positivamente crítica. Sua saúde física não era menos lamentável do que a saúde mental na época que ainda era uma Amish.

Além disso, a culpa pela perda do filho e pela perda da futura nora - que já era sabido se tratar de ser causada por suicídio, por causa da morte do rapaz - a fizeram se consumir de culpa ao longo dos anos, tendo pouco apreço por hábitos saudáveis.

Zed inventou para ela que seus parentes lhe pediram para ir buscá-la para um evento na vila. Ele explicou que fora visitá-la por lá, para mostrar-lhe um indício que explicava melhor as circunstâncias da morte de seu filho. 

O fato de não poderem se valer de objetos eletrônicos para se comunicarem com Catherine à distância também foi outro agravante, solucionado com a aparição de Zed. A consciência de doutrina tão sem fundamento fez a mãe soltar um pequeno riso. A coerência das palavras ditas por Zed eram o bastante para se passarem por verdade. Ela decidira, então, ir com ele.

Ao chegarem lá, Catherine e sua filha tiveram um longo momento de conversa amistosa com seus familiares, ansiosos até então por vê-las novamente. Em algum momento do almoço em família, permitiram-se também debater sobre a doutrina da aversão à luz elétrica e às tecnologias pós-Revolução Industrial, cogitando a possibilidade de possíveis exceções.

Abrindo espaço para tais exceções, Zed, que, até então, apenas observava tudo do jardim, como se fosse um guarda-costas da ex-Amish, ao ouvir as conversas, permitiu-se chegar próximo a eles e convidou os presentes a posarem para uma foto. Todos olharam para ele, estupefatos.

— Será a única recordação material que terão delas, depois que se forem. – lembrou Zed.

Todos pareceram entender. Depois de muita hesitação e de processarem lentamente a informação, concordaram em tirar uma foto.

Zed era um homem de postura serena, mas também, em certa dose, audaciosa. Não conformado apenas em simplesmente proteger os humanos de possíveis ameaças alienígenas, também tinha o desejo de proteger os humanos de seus próprios demônios internos. Ainda assim, algo fora de suas obrigações protocolares, mas que considerara pertinente às suas funções não só profissionais, mas humanas.

Ao pegar uma máquina fotográfica, então, se posicionou para tirar a foto dos membros da vila. Todos sorriram. Foi a primeira vez que havia visto os dentes da mãe e da filha da vítima, através de seus sorrisos, desde a primeira vez que as havia visto. O brilho em seus olhares momentaneamente felizes chegava a ser emocionante.

Zed tirou a foto, sem o uso de flash. Em seguida, fingiu preparar-se para tirar uma outra, agora com flash. Ele deixou a máquina fotográfica em algum lugar, retirou de seu bolso seu neuralizador e colocou seus óculos escuros. Não sabendo diferenciar um aparelho de outro, já que não tinham a menor experiência com esses equipamentos, os Amish simplesmente posaram novamente, para uma segunda foto.

Mesmo Catherine tendo morado na cidade há poucos meses, não tinham familiaridade o bastante com equipamentos eletrônicos para saberem que o que estava agora nas mãos do agente não era mais uma máquina fotográfica.

— Nunca vi esse tipo de máquina! – chegou a comentar a mãe da vítima, para Zed.

— Ah, não se preocupe. É de um novo tipo que começou a ser fabricado agora no Japão. – disse Zed.

— Ah, sim. É claro. É diferente! Cilíndrico! – assentiu a mulher.

— Sim, a diferença no formato é o seu charme. – disse Zed.

Ele regula o número de meses do equipamento para antes da descoberta e apreensão dos Morcegos Vermelhos na vila, feitas por ele e Beta.

— E agora, uma com flash. Digam “xis”!

As pessoas obedeceram. Zed acionou o neuralizador. Em questão de segundos, as memórias da comunidade inteira, reunida ali, referente ao tempo em questão, foi apagada.

— Seu filho foi um herói. Ele salvou a vida de uma criança durante uma excursão florestal que estava fazendo com sua namorada perto de uma caverna que era um ninho de morcegos, que ele empreendera nos tempos em que estava fora da vila. Porém, ele acabou ferido no lugar da vítima. Havia veneno no morcego, que demorou alguns dias para fazer efeito, fazendo-o cair morto no dia em que estava na vila. A namorada do rapaz levou o menino para um lugar seguro e voltou depois para prestar socorro ao rapaz, mas também acabou sendo alvo de um outro morcego, também vindo a falecer pouco tempo depois. Os dois selaram, infelizmente, sua morte, um ao lado do outro. Assim como gostariam de ter estado em vida. – explicou Zed.

A mulher se emocionou e foi consolada pela filha. Zed achegou-se a eles para mostrar fotos do que seria um exame do corpo da namorada do rapaz, mostrando dois furos no pescoço da moça. Depois, mostra uma outra foto, do pescoço atacado do rapaz. Este, verdadeiro, porém da mordida do Morcego Vermelho, e não de um morcego comum. O outro, falso, forjado para validar a narrativa de Zed.

Em seguida, mostra uma foto do casal com a tal criança que encontraram perdida na floresta. A verdade, porém, era que a criança em questão era o próprio filho do casal, cuja existência Catherine desconhecia, e que teria lhe rendido um infarto, dado que não aceitava a relação que julgava profana, muito menos uma que já houvesse sido preenchida com a consumação do ato carnal antes do casamento.

Encontrando mais beleza na relação dos dois, pela forma como as coisas aconteceram, através da narrativa romanticamente bela, apesar de trágica, a mulher satisfez-se e conseguiu encontrar sua paz. Agora que ela achava saber que não tinha nenhuma culpa pela morte do filho, o remorso que reinava em seu interior não mais existia agora.

— Graças à Tecnologia, é possível fazer registros de imagem e desvendar casos como este, levando a verdade aos implicados. Também é possível tirar belas fotos como essa de seu filho, alegre num passeio, e como esta, que vocês acabaram de tirar. - diz Zed.

Uma das anciãs levou a mão ao peito.

— Quando foi que começamos a usar esses artifícios malignos? – perguntou ela, confusa, referindo-se às máquinas fotográficas.

Zed mostrou um gravador.

— Ué! Numa reunião que fizeram agora há pouco. – respondeu Zed.

Em seguida, reproduziu uma gravação, com a parte da conversa que a comunidade teve sobre a provável permissão de luz elétrica.

A mulher ficou ainda mais confusa. Todos da comunidade se olharam, sem entender nada.

— Aliás, gravações como essa também só são possíveis graças à Tecnologia. Não se preocupem, a mudança de hábito realmente nos faz ficar confusos e atordoados. Não é fácil renegar velhas tradições assim. Além do mais, o luto pela morte do jovem Harry mexeu muito com seus corações, fazendo-os terem algumas perdas de consciência momentânea.

Catherine olhou para a filha, com um olhar mais vívido e um semblante mais esperançoso e sereno.

— Seu irmão foi um herói! - disse Catherine para a filha.

— Sim, mamãe! - respondeu sorridente a filha.

E lembrem-se: Não existem demônios encarnados; alienígenas talvez existam, mas não vagando pela nossa Terra; Deus ainda é bom, e o desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia são um bem para a humanidade.

Zed, então, sentindo-se um bom samaritano oculto - um anjo interiormente luminoso, humildemente ocultado pelas vestes pretas - foi embora.

Passados alguns meses, a Catherine e Susan, sua filha, cientes da importância da Revolução Industrial, optaram por – novamente, nesse reboot de realidade – desconverter-se da religião Amish, agora por um impacto de choque de consciência mais feliz.

O fato era que o agente B, por mais razão que tivesse naquela ocasião, disse as palavras certas para o coração errado. O terreno da alma da anciã Amish precisaria ser arado de uma forma mais cuidadosa, para receber de maneira mais produtiva aquela mesma semente de verdade.

Ao terem intentado sair da vila para fazer a vida na cidade, a mãe pediu para a filha fazer uma ligação para aquele simpático inspetor, chamado apenas de Zed. Ele havia deixado com elas um número e um celular - para eventuais necessidades - que elas já se permitiam usar. Ao ir até lá, Zed se propôs a atendê-las naquilo que desejassem. Elas pediram orientações e transporte para migrarem para a cidade. Ele convenientemente disse que conhecia um lugar perfeito em que elas podiam ficar.

Como o caro leitor já poderia inferir, tratava-se exatamente do mesmo apartamento no qual elas já haviam residido antes – só não lembravam disso.

Enquanto arrumavam a mobília, a mulher até chegou a dizer:

— Nosso Senhor! Tenho a impressão de até já ter estado aqui antes!

— Eu também! – disse Susan.

Enquanto as ajudava a desempacotar as coisas, Zed apenas deu um sorriso.

— Isso é um sinal de que é o lugar certo para vocês morarem! – disfarçou Zed.

Renegando o estilo de vida e os pensamentos Amish, não se sabe com muita certeza que visão de mundo a mulher passara a adotar. Se ainda era uma cristã, porém de uma visão reformada; ou se apenas uma mulher espiritualizada, sem uma religião definida; ou ainda, uma agnóstica; quem sabe, até uma ateia? Não se sabe. O que se sabe é que era uma mulher de paz.

Em sua vida na cidade, a mulher passou a fazer parte de uma ONG filantrópica, e a filha ingressou na faculdade, realizando o curso de seus sonhos. Viviam uma vida estável e tranquila. Zed jamais esperaria que o primeiro uso de seu neuralizador seria de uma natureza tão sublime e controversamente redentora assim. Estava feliz em ver que seu plano deu certo.

O que Zed não esperaria, porém, era que, mais tarde, todos os membros daquela comunidade resolveriam também deixar de pertencer à religião Amish. Não contava ele que, ao alterar a realidade daquela mãe e filha daquela forma, permitiria também a alteração de realidade dos outros membros – “sujeira” essa que ele teria que, de alguma forma, colocar para debaixo do tapete.

Por sentir que tinha responsabilidade com relação ao destino daquelas pessoas, Zed providenciou residências para cada uma delas. Afinal, dificilmente eles teriam se desconvertido da seita e teriam deixado a vila, se não fosse por aquela intervenção de Zed na vida daquela mãe e da filha.

No final das contas, não foi tão difícil assim. Ele só teve que disponibilizar aos ex-Amish residências que um dia haviam sido de pessoas que se tornaram Homens de Preto.

Foi até mesmo uma bênção isso ter acontecido. Para explicar o “estranho sumiço” daqueles homens – os recém-tornados Homens de Preto – de dentro do seio da sociedade, há algumas semanas, era só criar a narrativa de que haviam participado de um intercâmbio de residências para com uma comunidade de Amish recém-desconvertidos.

O próprio Zed tirara a foto de todos os novos agentes após a Fundação - algo em torno de 15 homens - reunidos na tal vila, para enviá-las às suas respectivas famílias. Era a satisfação que eles deveriam dar de que “tudo estava bem”. E estava mesmo, mas não da forma que as famílias pensavam.

Com exceção dos Nove Fundadores, a saber, Z - que "se mudou para a China"; Q - que "era um preso político no Vietnã"; T - que "quis velejar pelo Ártico"; D - que "sumiu na selva de uma base militar americana"; B - "cujo corpo sumiu numa queda de avião"; A - que "ficou soterrado quando do desabamento de um prédio"; H - que “forjara a própria morte” (ele não tinha ninguém que se importasse muito com ele); e K - que “sofreu um acidente de carro e estava em coma”, todos os outros seriam apenas "homens que queriam a paz de uma vida interiorana".

Ponto de novo para Zed. Nem é preciso dizer que a tal vila depois tornara-se um novo centro de treinamento e simulações de embates de campo para futuras gerações de Homens de Preto. O lugar, absolutamente isolado, seria um palco para muitos experimentos que a sociedade nem sonha em descobrir.

 

Finalmente voltamos agora para o bom e velho Zed, que, após ouvir J e L insistirem a que contasse a história que o fizera entrar em devaneio, acabou cedendo. Principalmente depois de ter achado o papel que procurava e dizer que a missão que os esperava era nada mais que a apreensão de um ladrão de leite numa loja de conveniência.

J e L, estupefatos, fazem um silêncio de algumas décadas de segundo.

— E... me diz uma coisa, Zed. E o tal menino órfão? O que aconteceu com ele? – pergunta J.

Zed olha para fora do escritório.

— Estão vendo aquele homem loiro perto da sala de memorial de ex-agentes? É o tal. Ele me chama de pai.

J e L levantam as sobrancelhas, surpresos.

— A própria mãe, antes de cometer a tragédia, deixou uma carta me pedindo para cuidar dele. – complementa Zed.

— Bem que eu percebia uma certa aproximação maior entre vocês. – diz L.

— Então, um dia, o agente P irá conhecer a avó? – pergunta J.

Zed ofega.

— Talvez. Se ele quiser se aposentar um dia. – diz Zed.

— Ele sabe de toda a verdade? – pergunta L.

— Sim. Eu nunca escondi a verdade ao garoto. Ele concordou que minha realidade alternativa para a avó dele foi melhor para ela. Se um dia ele cansar daqui, poderá encontrá-la. Quando eu me tornei seu tutor, ela era um tipo de mulher. Depois daquela neuralização, porém, ela foi se tornando gradativamente outra. Descobrir que seu filho havia chegado a ter-lhe dado um neto pode não ser algo negativo para a Caterine de hoje como era para a Caterine Amish.

— E, deixa eu adivinhar? Você mesmo foi o mentor do garoto? E o treinou na região que antes era a tal vila? – pergunta J.

— Exatamente.

As Minhocas chegam ao escritório com bandejas e alguns pratos contendo o café-da-manhã de Zed.

— Uau! Podia compartilhar um pouco disso aí. Iríamos sair a campo sem comer nada antes. – resmunga L.

— Concordo. – diz J.

Zed olha para eles, como que considerando a questão.

— Tá bom, vai. – diz Zed.

J e L começam a pegar alguns pães que estão sobre a mesa.

— A história foi muito emocionante e interessante, Zed. Muito mesmo. Mas não explica nada sobre o tema que estávamos discutindo antes. – diz J.

— É porque essa leva a uma outra história. – diz Zed.

— Acho que dá tempo de nos contar enquanto tomamos o café. – diz L.

Zed ofega.

— Depois disso, vocês vão logo resolver o caso do ladrão de leite e me deixam em paz?

— Humrum. – diz J.

— Considere isso uma revisão de arquivos. – diz L.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "MIB - Homens de Preto: A Síndrome da Nação Humana" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.