Paralelo 22 escrita por Gato Cinza


Capítulo 10
10




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Quitéria.

Dizer que sua vida foi fácil é mentira. Foi criada pela avó junto com suas irmãs gêmeas idênticas num bairro pobre de uma cidade rica. As três passavam longe se serem amigas, tinham gostos e amizades diferentes.

A mais velha gostava de dançar, de artes, de música e de estar sozinha. Seguia as próprias regras e vivia em um mundo á parte onde só era alcançada por poucos e de onde saia apenas quando queria companhia de alguém que pudesse contradizê-la o bastante para lhe mostrar as coisas de um ponto de vista diferente do seu, fosse para a melhor ou o pior. Se dispunha a começar uma batalha sangrenta apenas para testar a força de vontade alheia e despertar neles o que tinham de pior.

A do meio gostava de esportes, de estar sempre em movimento, de planos mirabolantes e romances das novelas onde a mocinha terminava sempre feliz com seu amado. Era obediente á tradição, tinha sido escolhida para assumir o lugar da tia-bisavó na comunidade e se tornar líder quando chegasse sua hora, mas suas responsabilidades não a impediam de ser perversa. Era capaz de subir ao ponto mais alto apenas para cair livremente até o mais profundo dos abismos por mera curiosidade de explorar seus limites.

 Ela, a caçula gostava de comodismo, chegar em casa e ajudar a avó Cléo com os afazeres domésticos, sentar na frente da tevê durante o telejornal para as refeições e estar com seus amigos sem necessariamente estar fazendo algo além de estar sentado e falando. Tinha abrido mão de seu legado familiar materno por que não queria se envolver naquele submundo complexo onde se tinha que equilibrar entre o bem e o mal, ser neutro nas decisões sobre o certo e o errado, permanecer no limiar da vida e da morte sempre á espera de algo que podia lhe custar a existência.

Ela queria a normalidade de uma vida medíocre na qual em um futuro distante se alguém perguntasse quem foi Quitéria Coelho, dariam de ombros. Por que não haveria nada sobre ela á ser lembrado, por que ela não havia realizado nada de extraordinário, por que não fizera nada que merecesse ser memorizado nas páginas de um livro ou na letra de uma canção. Por que tinha sido uma pessoa comum como bilhões de outros que morriam e eram esquecidos no tempo.

Aos doze anos quando as amigas e irmãs falavam sobre garotos, ela brincava com eles. Aos treze anos quando a maioria das meninas tinha a experiência do primeiro beijo ou primeiro namorado, ela fugia de tal modismo. Aos catorze anos enquanto todas pediam permissão dos pais para ficarem em casa até mais tarde, ela ia dormir mais cedo.

Aos quinze anos quando deu seu primeiro beijo, descobriu que aquilo não lhe causava nada além de curiosidade em saber se era seu parceiro quem não lhe despertava desejo. Aos dezesseis anos quando perdeu a virgindade teve a certeza de que seu corpo não funcionava como deveria. Ainda aos dezesseis anos, teve a primeira experiência lésbica de sua vida, quando por acidente descobriu que o ciúmes que sentia pela amiga de sua irmã tinha mais haver com o fato dela beijar um garoto do que qualquer coisa fraternal.

Teve medo da reação alheia. Tentou engatar um namoro com um garoto legal que gostava dela. Tentou agir como as irmãs e suas amigas. Tentou. Cansou. Desistiu. Cedeu á tentação e começou a se relacionar com uma garota. E foi descoberta. Ofendida. Humilhada. Agredida. Ela tentou a morte. Chegou perto. E foi resgatada no último segundo.

Quando o segredo foi revelado a julgaram e puniram. E foi a primeira vez que os comentários sobre suas irmãs serem perversas fez sentido. Não, elas não a condenaram, pelo contrário, suas gêmeas a defenderam. E arruinaram a vida de um professor que tinha relações com algumas alunas em troca de notas. Estragou a vida de vários estudantes que tinham segredos sórdidos. Machucaram de modo irreversível quem machucou a caçula da família e mostraram que nunca se devia mexer com uma delas sem arcar com as consequências.

As pessoas as temiam.

Os boatos insinuavam que as estudantes idênticas eram as culpadas pelo que aconteceram com aqueles adolescentes, os amigos daquele rapaz bonzinho que tinha namorado aquela gêmea quietinha que mora naquela casa azul de porta e janelas vermelhas. Os dedos apontavam para elas, todos sabiam que a “gêmea quietinha” tinha partido o coração do bom garoto e ele não reagiu bem ao saber que tinha sido trocado por uma vendedora de loja de perfumes, todos sabiam que Patrick se sentia ofendido pela troca e que fora ele quem espalhou para todos que ela era sapatão.

O que ninguém sabia era o que ele, Patrick, o bom garoto e seus amigos tinham feito num cômodo sujo de uma casa abandonada com a adolescente inexperiente que se assumiu lésbia. E o que ninguém nunca poderia provar era o que duas meninas de dezesseis anos eram capazes de fazer com algumas cordas, facas e fogo.

Quitéria teve apoio psicológico e familiar para superar o trauma de se assumir. Reaprendeu a aceitar que não tinha nada errado em ser quem era. Foi morar noutra cidade com a mãe para poder terminar o último ano do ensino médio longe do que tinha virado sua vida social. Quando retornou para casa, já tinha superado aquele passado e nem as fofocas que seu retorno principiou causaram efeitos na jovem que agora sabia lidar com o medo, a raiva e a dor. Sua vida até ali não tinha sido fácil.

Mas aprendeu a vivê-la.

Conseguiu emprego como garçonete enquanto fazia um curso de culinária e depois entrou para a cozinha de um restaurante renomado que estava abrindo uma filial na sua cidade. Conheceu novas pessoas que com o tempo passaria á chamar de amigos. E um dia, quando acordou descabelada e com preguiça demais para se arrumar, conheceu a pessoa que faria seu coração bater descompassado e seus sonhos se tornarem quentes e lascivos.

Ela estava tomando café, enquanto sua avó e irmã conversavam sobre Artur, o único homem na família, que na verdade ainda era um menino de quase cinco anos, filho adotivo de Dandara, a gêmea do meio que estava terminando o curso de enfermagem e vivia como uma vampe-zumbi querendo fazer tudo ao mesmo tempo sem ter tempo para tudo.

— Bom dia vovó – cumprimentou a senhora com um beijo no rosto e depois a irmã – Bom dia, Rainha Má, pensei que fosse voltar ontem para o reino proibido de Oliverlândia.

A mais velha e o cientista maluco para quem trabalhava tinham um caso perigoso de insanidade compartilhada que chamavam de “alma gêmea”, claro que eles nunca admitam isso. Preferiam dizer que mentes brilhantes pensavam iguais.

— Ia, mas tive um contratempo – disse apontando para a garota de cabelos castanho, sentada á mesa – Elisabete esta é minha irmã, Quitéria.

E naquele segundo, ao olhar para a garota que parecia assustada com o mundo, sentiu que podia ser tudo que ela precisava, queria ser tudo para ela. A respiração mudou, a mão começou a formigar e com muita dificuldade conseguiu abrir um sorriso.

— Vocês são gêmeas? – ela questionou surpresa.

— Não! Eu estava brincando com a copiadora e por acidente me dupliquei – Malvina comentou num tom disciplinado que, se o que tinha dito não fosse impossível, acreditariam.

Revirou os olhos. Malvina e seus malvinismos.

— Não ligue para a Rainha Má, ela acorda mal-humorada. Pode me chamar de Kira.

— Elle – se aproximou dela e sussurrou curiosa – Por que a chama de rainha má?

— Por que são duas gêmeas más e como ela é mais velha, o titulo de Princesa das Trevas fica para a gêmea do meio e eu sou a gêmea boa.

Elisabete riu e ali nascia uma amizade que em poucos meses viraria um amor com chances de se tornar eterno. Elisabete se habituou a família, com os humores instáveis das gêmeas, com os amigos que surgiam aos poucos e os que vinham e iam tão rapidamente que podiam ser personagens de ligação entre um arco e outro de uma história sem fim.

Quitéria se apaixonou e se torturou achando que estava sendo burra e ficou surpresa ao saber que o que sentia era correspondido. Quitéria a pediu em namoro e tempos depois foi pedida em casamento. Juntas decidiram que queriam um filho, mas ambas compartilhavam o desejo de ter um bebê nos braços e assim chegaram á decisão de uma inseminação artificial, o escolhido para ser doador foi Henrique, pelo simples fato que ele pediu e elas aceitaram depois de pensar em todos os prós e contras de tal decisão.

Sim. Elas brigaram bastante nos três anos de relacionamento. Afastaram. Terminaram. Choraram. Retomaram o romance. Brigaram novamente, choraram... Um romance digno dos que Dandara adorava, com direito á ex-namorada tentando uma reaproximação, por que Júlia descobriu um dia ao encontrar Elisabete por acaso quando a mesma ia para o cursinho de administração, que ainda sentia algo por ela.

Direito a pais da noiva tentado impedir o enlace-matrimonial e sendo expulsos do casamento por uma noiva furiosa que estava obcecada por um par de sapatos perfeitos que era um numero menor que o seu e estava lhe apertando os pés. Direito á uma lua de mel na Itália patrocinado pelos amigos que adoram amores impossíveis. E direito á brigas do cotidiano por coisas bobas como toalha molhada na cama ou esquecer um compromisso por que estava com os amigos.

Quitéria gostava de dizer que conhecia bem a esposa, mas aquela decisão da mulher amada em querer permanecer naquele bairro? Ipês não era um bom lugar para criar um bebê, não importava o que as mães que moravam por ali diziam e muito menos o fato delas terem crescido ali. Ipês não era um jardim-encantado que surgia ao anoitecer repleta de seres fantásticos e desaparecia ao amanhecer. Aquele bairro não tinha sido apelidado de cidadela maldita por maldade alheia, os segredos que povoavam aquelas terras eram antigos e perigosos.

Ela queria, podia e daria á Rafael tudo do que foi privada na infância pela decisão de sua mãe e avó em torna-las parte de algo que não escolheu para si. Se um dia seu pequeno resolvesse que queria assumir o legado de seu povo seria uma escolha dele e não pela influência dos seus. Bastava o que sabia que o menino passaria quando crescesse e as pessoas o apontassem como filho das lésbicas. Não. Rafael teria a vida que ela não teve e essa era uma promessa que fizera a si mesma.

Infelizmente convencer Elisabete que ela tinha razão e aceitar que precisava se mudar daquele lugar se mostrou impossível ao longo dos dias seguintes e para variar, as irmãs e os amigos apoiaram a decisão de Elisabete. Até Amanda, sua mãe, criticou por tomar a decisão de querer ir embora do lugar. Por que não entendiam? Ela não estava fazendo isso por não gostar de suas origens, pelo contrário, tinha orgulho do caminho que trilhou até chegar onde estava. Ela só queria oferecer á sua família algo melhor.

— Kira, preste atenção no que está fazendo – Henrique reclamou tirando das mãos dela o maçarico e terminado de gratinar o queijo – Está distraída demais, Ian está de olho em você.

Olhou sobre o ombro para o chefe que verificava um prato. Ian era perfeccionista ao extremo e não permitia erros. Ela tinha errado algumas vezes e uma besteira como destruir um prato simples como aquele, derretendo o queijo mais que o adequado, seria demissão na certa.

— Desculpa, vou prestar atenção.

— É melhor mesmo.

Ele se afastou levando o prato e gritando que estava pronto.


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