Paralelo 22 escrita por Gato Cinza


Capítulo 11
11




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/781214/chapter/11

Faltavam dez semanas e um longo dia para ficar livre do escritório. Isso parecia tanto tempo no calendário que chegava a ser torturante. Ela e Nicolas agora falavam o que era estreitamente necessário, ele com grosseria e ela com toda a inexpressividade que levou anos para adquirir. O que ela tinha considerado um acordo de convivência pacifica tinha desaparecido depois de ir para a cama com ele, fazia dias que agiam como pessoas que se aturavam por falta de opção.

Não que ela ficasse pensando nisso, não. Ela já tinha esquecido as sensações que ele lhe causava ao tocá-la ou o quão bom era seus beijos. Ela nem virava o pescoço á procura dele ao ouvir sua voz, nem prendia a respiração quando sabia que ele estava a olhando, por que ela sabia, sempre sabia quando estava sendo observada. Ela não sentia vontade de invadir a sala dele para brigar com ele por ser um cretino miserável e nem queria estragar o rostinho bonito de Pérola por ficar dando em cima dele, muito menos cega-lo por dar mole para aquela bonequinha de plástico. Não. Claro que não. Malvina não sentia nada por ele e por isso não era afetada por nada que ele fizesse.

Como ele mesmo fez questão de lembra-la, era só mais uma empregadinha que ele levava para a cama. E por que ela se importaria com isso? Nicolas Navarro não era o primeiro e nem o último homem com quem teve/teria uma noite de prazer e nada mais. O que estava a deixando naquele estado de nervos era o fato de saber que ainda tinha que aturá-lo por mais dois meses, uma semana e cinco dias. Só isso. Ela não podia se demitir por que não sabia se isso podia comprometer o emprego de Elisabete, em teoria ela era a garantia de que a moça voltaria a assumir seu cargo quando fosse liberada para tal. Teorias.

Depois de se martirizar pelos meses vindouros, sorriu, cinquenta dias tinha se passado num piscar de olhos. E mais um dia chegava ao fim, juntou suas coisas com toda paciência do mundo largando-os na mochila, seu sorriso alegre sumiu quando viu as pessoas na recepção. Se eles estavam parados ali, significava que o elevador tinha travado outra vez, olhou para o marcador sobre a porta de metal, décimo quarto andar. Verificou a hora e praguejou. Roberto riu baixo e se aproximou dela.

— Algum compromisso inadiável, nervosinha?

— Muitos – respondeu, indo em direção à escadaria.

— Vai descer nove andares de escadas? – o advogado perguntou com um leve deboche.

Malvina deu uma piscadela para ele. Podia esperar, devia esperar, mas não queria.

Subir uma escadaria correndo é divertido, principalmente quando estava sozinha e podia bancar a rainha Elsa e correr escada acima cantando Let it go. No sentido contrário, descer correndo uma escada não era divertido. Um passo em falso e a pessoa rolaria escada abaixo com risco que quebrar alguns ossos importantes, como os do pescoço.

Isso só é divertido quando você é a Nazaré Tedesco e está lá no topo assistindo a queda espetacular.

Então ignore o fato de ser feito de carne e ossos frágeis, desça nove andares saltando os degraus na maior velocidade que conseguir se equilibrando num salto reto de 11 cm. Para a grande parte da população isso é uma estupidez, Malvina estava dentre a pequena parte que já não se importava com os riscos. Ela já tinha testado muito dos seus limites e sabia que não era a prova de falhas do mesmo modo que acidentes aconteciam com qualquer pessoa, não via necessidade em evitar perigos quando se tinha a consciência de que numa escala de 0 á 10, tudo do todo, grande ou pequeno, bom ou ruim, a garantia de segurança era de 0,1.

Chegou ao térreo ofegante, mas não parou para se recuperar, seguiu em frente e atravessou a rua com mais impaciência do que era seu costume, por que teve que esperar os motoristas mal-educados que preferiam atropelar os pedestres á reduzir a velocidade e esperar que alguém passasse para o outro lado da rua. Bem, talvez eles também tivessem apressados, mas estavam de carro e podiam recuperar trinta segundos de atraso enfiando o pé no acelerador. Quando ela dobrou a esquina, xingou, o ônibus estava saindo e mesmo correndo e acenando, não parou.

Ainda xingava alguns minutos depois, enquanto massageava os pés cansados. Tinha sentado no banco metálico do ponto de ônibus para se recuperar da correria. Tudo era culpa de Quitéria que tinha dado defeito outra vez, brigou com a mulher e pegou sua moto para dar uma volta e sabe-se lá como, conseguiu quebrar uma peça. Em dois dias já a teria de volta, pelo menos foi o que o cara da mecânica disse quando a deixou lá no dia anterior. Pegou o celular na mochila para pedir para que alguém viesse busca-la, o próximo ônibus passaria ali dentro de duas horas e a linha não passava nem perto de seu bairro ou do apartamento de Henrique. Estava enviando a mensagem para as irmãs quando aconteceu:

— Assalto! Assalto!

O homem de capacete e armado tomou o celular da mão dela e a mochila do seu colo, correu para a moto pilotada por um cumplice e fugiram, tudo em pouquíssimos segundos. Suspirou aborrecida. Detestava quando esse tipo de imprevisto acontecia com ela, pegou o sapato que tinha tirado quando se sentou e descalça voltou para o escritório, ia pedir o telefone de alguém emprestado.

Deveria estar assustada? Muito.

Estava? Nem um pouco.

Estava com raiva.

Se tivesse esperado o elevador nada disso teria acontecido, teria perdido o ônibus de qualquer modo e inda teria suas coisas. Se... Riu. Tinha tatuado essa pequena palavra que abria universos paralelos da imaginação para tudo, por que quando foi fazer sua primeira tatuagem ficou em duvida de começou a se perguntar e se tatuasse algo que lhe trouxesse arrependimento depois, e se marcasse a pele no lugar errado, e se...

Dandara se irritou com suas perguntas e sugeriu que ela tatuasse essa insegurança questionadora que tinha sobre o mundo. E Se... Era um leque de improbabilidades de coisas que nunca aconteceriam por que não se podia mudar o que já havia acontecido. Ainda ria de sua estupidez quando esbarrou em alguém que estava distraído com seu celular assim como ela estava distraída com seus pensamentos.

— Desculpe – ele pediu sem desviar a atenção do aparelho.

— Senhor Navarro – ela o chamou, podia não estar sendo nem um pouco gentis um com o outro, mas ele já estava ali mesmo.

Ele se virou e franziu a testa, os olhos baixaram para os sapatos na mão dela.

— O que houve?

— Assalto. Pode me emprestar o seu celular?

Ele se aproximou.

— Você foi assaltada? Está bem? Te machucaram?

— Fui. Estou zangada. Não me machucaram. Vai me emprestar seu celular ou não?

Nicolas revirou os olhos, nem naquela situação ela agia como uma pessoa “normal”, cadê o pânico, as lágrimas, a tremedeira, a histeria. Desbloqueou o celular e entregou para ela que ligou para a primeira pessoa em quem pensou desde o assalto, e se afastou para conversar com seu mentor/chefe/alguma-coisa-indefinida-que-os-tornava-mais-que-amigos.

Aleksander— era assim que ele atendia as chamadas desconhecidas.

— Oliver, sou eu, Malvina.

Coelhinha! Já está sentindo saudades de mim? Essa palavra não é linda? Saudade.

— Não é não – ele riu – Eu fui assaltada há poucos minutos.

E quer que eu ative seu Lusipher.

Sorriu, a telepatia bizarra deles funcionava mesmo separados por milhares de quilômetros e uma linha telefônica. Ouviu sons de teclados.

— O que estava fazendo?

Por mais incrível que pareça, estava trabalhando. Suria está pirando e deixando os outros irritados e eu tenho que estar monitorando as coisas para ela não jogar ácido em alguém acidentalmente.

Suria Bahir era uma biotecnóloga genial que conseguia igualar Oliver em surtos de brilhantismos e necessidade de comer porcarias enquanto pensa, e só tinha uma pessoa capaz de levar a cientista á ter pensamentos homicidas.

— Ettiénne?

Estevão, ou eles se matam ou se casam ou me enlouquecem de vez.

Oliver tinha o hábito de traduzir o nome de algumas pessoas para o idioma que falava no momento. Ettiénne Sade era o administrador do laboratório canadense onde Suria trabalhava, seu passatempo preferido era irritar a cientista por quem tinha um tombo, não que ele fosse admitir isso.

Lusipher ativo. Só isso?

— Só. Tenho que devolver o telefone ao dono, agradeço.

Disponha.

Ela devolveu o celular de Nicolas e agradeceu pela gentileza. Devia ter ligado para uma de suas irmãs? Sim. Mas não ia adiantar nada por que Quitéria estava sendo dramática de novo e Dandara não atendia chamadas de desconhecidos o que não fazia sentido considerando uma situação como a dela no momento, em que precisou do telefone de outra pessoa para pedir ajuda. O que faria agora? O apartamento de Henrique ficava longe para ir á pé. Estava sem dinheiro, então nada de táxi.

— Quer carona?

Olhou para Nicolas que estava saindo e voltou. Com um dar de ombros aceitou, não sabia quanto tempo levaria para conseguir uma carona e esperar não era seu forte. Gastaram quase uma hora da delegacia pra registrar a ocorrência, na maioria das vezes Malvina preferia pular essas burocracias, infelizmente ela sempre tropeçava nos detalhes e não podia contornar todas as coisas que atrapalhava seu caminho, então usava dos métodos antiquados e politicamente corretos de agir. Depois finalmente foram para casa, mais ou menos, a casa de Henrique não era sua. Ele entrou na garagem do prédio e ela franziu o cenho.

— Você mora aqui?

— Moro – admitiu.

Não falaram mais nada até chegarem ao segundo andar e ela o agradeceu novamente pela ajuda. Deu alguns passos quando lembrou que a chave do apartamento estava na mochila, deu a volta e a porta do elevador estava se fechando, então tudo o que conseguiu dizer foi “Pode”.

Voltou para a porta do apartamento de Henrique, será que seu amigo ficaria muito incomodado se ela arrombasse a porta? Ela ficaria se arrombasse a casa dela sem uma boa razão, algo do tipo vida ou morte. Só por garantia tocou a campainha e bateu na porta, naquela hora quem não estava no trabalho estava na casa das gêmeas. Ouviu a porta do elevador abrindo e pela visão periférica viu o contador se aproximar:

— Empresta o celular outra vez? – pediu sem olhar para ele.

— Imaginei que fosse isso – ele estendeu para ela seu celular – Você não quer subir e esperar no meu apartamento até que alguém venha?

Malvina lhe dirigiu toda sua desconfiança, parando de digitar sua mensagem. Avaliou a proposta antes de questionar:

— Em qual andar você mora?

— Cobertura.

— Só para constar, é muito preocupante você sendo legal comigo depois de agir como um babaca por dias, contudo, agradeço pela oferta e aceito – finalizou devolvendo o celular dele.

— Fique com ele, caso a pessoa retorne sua mensagem.

— Não vai retornar. Avisei que ia estar na cobertura esperando.

Se ela tivesse imaginado como seria o lugar onde Nicolas morava seria mais ou menos como estava vendo no momento, a cobertura era espaçosa com mistura de móveis antigos com eletrônicos supermodernos, tudo em tons de marrom e cinza que vinha da madeira e do aço, e as paredes eram rosa-clarinho. E tinha coisas demais o que deixava claro que ele não havia recorrido á um decorador, era tudo espalhado de modo que parecia ser aleatório.

— Quantas pessoas moram aqui? – perguntou confusa.

— Moro sozinho.

— É um acumulador – ela comentou, mais para si do que para ele.

— Não sou não.

— É sim – ela gesticulou para as coisas – Tem excesso de tudo, coisas demais para alguém que vive sozinho.

— Isso não me torna acumulador.

— Você compra coisas que não usa ou versões diferentes da mesma coisa que vai ficar guardado sem utilidade. Tem problema em abrir mão das coisas que te pertence. Acumulador.

— Não sabia que é psicóloga.

Noção de psicologia fazia parte de seu aprimoramento, assim como primeiros socorros, pilotagem de máquinas diversas, sobrevivência em ambientes incertos e um amplo conhecimento de venenos e antídotos.

— Não sou. Já leu todos esses livros?

Malvina se aproximou do suporte na parede, as prateleiras cheias de livros formavam uma moldura para a televisão enorme.

— Alguns, eu já não tenho muito tempo para leitura. E você? O gosta de ler?

— É um bom passatempo, estou relendo O Hobbit.

— Ainda não li esse, mas gostei dos filmes.

— Que ofensa – ela brincou – O livro foi escrito antes dos filmes e nunca o leu?

— O filme é mais fácil de acompanhar, são poucas horas de duração.

— Com intervalo de anos entre o primeiro e o último.

Nicolas riu se aproximando dela.

— Tinha me esquecido disso.

— Do espaço de tempo?

— De como é conversar com você sem precisar agir como um idiota mandão.

E tocou o rosto dela numa suave caricia.

— Não faz isso – ela pediu sem se afastar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Paralelo 22" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.