Paralelo 22 escrita por Gato Cinza


Capítulo 9
9




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Elisabete.

∞ Antes ∞

Ser expulsa de casa aos 20 anos quando estava cursando sua tão sonhada faculdade de direito, sem dinheiro, sem trabalho e com amigos falsos, era exatamente uma daquelas besteiras que ela dizia “isso não vai acontecer comigo”.

Bestice. Quando menos se espera algo ruim acontece e você descobre que seus melhores amigos só eram seus amigos por que te viam como um status. Afinal quem não queria ser melhor amiga da filha de... Amiga de infância da irmã de... Colega da neta de... Algum desses amigos era amigo da Elisabete?

Qual Elisabete? Não estava pronunciando o nome errado? Não seria Elizabeth?

Quando precisou lhe abriam as portas e assim que contava o que tinha acontecido, de repente, a casa tinha que passar por uma reforma ou surgiu uma viagem inesperada ou aquele parente que nunca existiu resolveu fazer uma visita e ocuparia o único quarto de hospedes... Isso quando se davam ao trabalho de inventar desculpas ou ouvir seu pedido quase implorado por abrigo.

Qual a razão da universitária rica e popular virar pária? Por que foi expulsa de casa?

Por causa de um escândalo.

Ela resolveu “sair do armário” durante um dos jantares de arrecadação de fundos para um dos projetos sociais de sua mãe, apareceu acompanhada de uma colega de quarto de sua colega do curso de direito, Júlia. Estava tudo bem enquanto todos conversavam e elogiavam a beleza das duas e falavam de seus futuros brilhantes, e era só apresentar Júlia como sua namorada que os sorrisos de admiração dava lugar ao olhar de nojo. Como assim a filha do deputado estadual e da prefeita da cidade era lésbica? Isso era horrível para o bom nome da família.

E ali estava a diferença entre se dizer e ser.

Tudo bem ser gay e ter relações com sexuais-afetivas com pessoas do mesmo sexo, desde que não fossem das suas famílias, desde que não fosse dentro de suas casas, desde que fossem daqueles desconhecidos de quem se podia falar mal depois de trocas afáveis de informações e cumprimentos.

Os sorrisos foram mantidos e a fachada de família unida e compreensiva se manteve até o fim da recepção, assim que o último convidado foi embora, as máscaras caíram. Humilharam Júlia que foi embora arrasada pedindo que nunca mais fosse á sua procura. Elisabete tentou ir atrás, mas os seguranças a impediram. Seus pais foram ao extremo de manda-la para a casa de uma tia no interior até que o escândalo acabasse, mas ela fugiu e voltou para casa, tentou encarar a situação de frente como uma pessoa madura faria.

Então foi expulsa.

O pai gritou que não sustentaria nem aceitaria aquela aberração em sua casa. A mãe não a defendeu. O irmão baixou a cabeça e a ignorou. Júlia nem lhe quis ouvir. Os amigos, um á um, lhe renegaram. Não tinha mais família, nem amigos, nem ninguém.

Estava sozinha.

E pela segunda vez seguida ia dormir na rua, desejando que nada pior acontecesse. Se não fosse covarde, se matava. Tinha tentado na noite anterior, se jogar do viaduto, mas acabou não conseguindo. Chorou e viu um pingo de misericórdia onde não esperava nada, uma senhora lhe estendeu um pão e uma garrafa de água.

Era uma pedinte que pela aparência devia estar naquela vida há muitos anos. O pão estava duro e a água tinha gosto de cachaça, mas não reclamou. Era a única coisa razoável que tinha lhe acontecido em dias.

Mas isso foi antes.

 Agora estava sozinha de novo, sem direção, com fome, com medo. Muito medo. Sentia como uma criança perdida numa cidade desconhecida habitada por monstros gigantescos que não a viam. O medo que sentia daquele mundo desconhecido aumentou quando o SUV vermelho e vagaroso passou pela segunda vez onde ela estava e parou diante dela.

Sair correndo era a melhor ideia que tinha, mas as pernas pareciam ter esquecido como funcionavam. A janela do motorista desceu, sua respiração ficou em suspenso e o coração acelerava a medida que o vidro escuro deslizava para baixo relevando o condutor do veiculo.

— Olá, menininha rica.

Engoliu em seco, quis rir da porcaria do azar que tinha. Teria dado pulinhos de alegria se fosse um serial killer ao volante.

— Você – sussurrou apreensiva, a garganta estava seca.

— Entre – disse a jovem mulher de sorriso falso.

— Eu não vou voltar para aquela casa – choramingou.

— Por acaso disse que a levaria de volta?

Ela ficaria menos assustadora se não falasse baixo e tirasse aquele sorrisinho estranho do rosto, lembrava aqueles desenhos onde o vilão contava seus planos malucos para o comparsa antes de virar um monstro e ir atrás de sua vitima.

— Não tenho para onde ir.

— Sei disso também. Eu não sou a morte te oferecendo carona rumo ao desconhecido, só estou te oferecendo abrigo por tempo indeterminado.

— Por quê? – perguntou com desconfiança – Tem um bando de gente na rua, por que quer oferecer abrigo para mim?

— A mentira? Sou a personificação da bondade que adora salvar donzelas em perigo. A verdade? Eu devia um favor á uma pessoa que não pode cobrá-lo mais, e como você é neta dele irei fazer por você o que ele faria se estivesse vivo, exceto deserdar seu pai.

Elisabete abriu um sorriso trêmulo, o avô com certeza deserdaria o pai se soubesse que a tinha expulsado de casa e com certeza a acolheria.

— Conheceu meu avô?

— Veja, Salles-de-Nogueira-Figueroa seja lá qual for seu primeiro nome, está ficando tarde, estou com fome e você está me chateando. Se não quer ajuda e prefere ficar na rua, diga.

Elisabete engoliu em seco, limpando o suor das mãos na calça imunda e olhando para os lados. Estava apavorada. Cansada. Faminta. Desamparada. Não conhecia a mulher do carro vermelho e a única vez que a viu na vida a mesma estava fazendo algo que ainda lhe causava pesadelos ás vezes. Ela era a razão por qual evitava ir a toaletes, ainda lembrava o seu reflexo no espelho do banheiro do clube, o dedo sobre os lábios num sinal claro de que devia fazer silêncio enquanto ela saia daquele cubículo privativo...

Havia metido na cabeça que tinha sido coisa da sua imaginação. Quando a viu no espelho se virou rápida para oferecer ajuda, o cabelo bagunçado e o corte na testa fazia parecer que tinha sido agredida, só que atrás dela não havia ninguém. Olhou em volta e viu apenas a mão de luva preta fechando a porta do banheiro, correu para fora e ela já tinha ido. Devia ter deixado passar, mas sua curiosidade idiota a guiou para o cubículo onde aquele homem... A razão de seus pesadelos desde então.

Ela gritou. As pessoas vieram. Policias a interrogaram. Ela se lembrava da jovem do espelho com sua luva preta, mas nunca foi capaz de falar sobre ela. O dedo sobre os lábios parecia invadir sua mente toda vez que tentava falar algo sobre a assassina no espelho. Então se obrigou a crer que tinha imaginado a desconhecida, afinal ninguém podia ser tão rápida e silenciosa.

Agora... Bem, talvez ela estivesse delirando com a morte.

Pelo conjunto da obra, julgava que ela devia ter mais ou menos sua idade, ainda assim... Fosse ela quem fosse não era uma pessoa legal, ela era perigosa... Mas conhecia seu avô e tudo bem que as más línguas diziam que seu avô era metido em negócios ilegais e que era daí que vinha sua fortuna, mas ninguém nunca provou nada contra ele. Ela tinha ótimas lembranças do avô, nenhuma que fosse infeliz ou que lhe causasse menos que saudade de tempos bons.

— Pare de pensar, criatura – deu um pulo com a voz alta da motorista – Entra logo.

Ainda com medo, mas deixando prevalecer todo o resto, ela abriu a porta de trás do carro e entrou. Tentou não pensar em bobagens como ser achada no dia seguinte mutilada ou que talvez já estivesse morta. Aos poucos foi se acalmando, enquanto a motorista cantarolava seguindo a música no rádio. A tranquilidade que sentiu depois da motorista ter parado num carrinho de lanche e lhes comprado comida foi sendo substituído pelo medo novamente à medida que notava para onde estava indo.

O chamado bairro dos Ipês, por que realmente tinha vários pés de ipês espalhados pelas ruas como se cada casa tivesse seu próprio pé de ipê plantado na porta-da-rua, era um lugar hostil. As pessoas evitavam passar por ali e quando o faziam eram por pura necessidade. Criminosos de outros bairros não entravam ali e diziam que aquele lugar tinha a própria lei, o bairro pobre era uma cidadezinha assombrada dentro da grande cidade litorânea.

E o medo desapareceu assim que colocou os olhos claros na casa azul com portas e janelas vermelhas. Um conforto anormal se espalhou pelo corpo e algo lhe permitiu crer que estava tudo bem, estava em casa.

∞ Agora ∞

— Kira, falava sério mais cedo?

— Eu falo o tempo todo sobre tudo, amor, seja mais especifica.

O pior é que não era uma piada, Quitéria falava muito, só perdia para Maria que além de falar demais parecia que achava que vivia um musical e do nada começava a cantar.

— Sobre nós nos mudarmos quando Rafael nascer.

Os olhos da parceira brilharam de entusiasmo quando começou a falar.

— Sim, era sério, mais do que sério. Já entrei em contato com um corretor de imóveis e ele está procurando nossa nova... O que foi?

— Procurou um corretor sem mim?

— Sim. Desculpe não ter contado, era para ser uma surpresa. Tecnicamente será uma surpresa por que você só verá nosso novo lar quando nos mudarmos, então não estraguei a ideia original – disse tão rápido que se não tivesse acostumada teria ficado perdida na conversa.

— Sem me consultar?

— É a parte da surpresa – riu – Não precisa entrar em pânico, conheço todos seus gostos, te conheço melhor do que á mim mesma e por isso posso garantir que tudo será como se fosse você quem tivesse escolhido.

Quitéria beijou a barriga proeminente e os lábios da esposa, sorria como se quisesse mesmo compartilhar sua felicidade com o mundo, mas o sorriso diminuiu quando notou que a gestante parecia não estar tão feliz quanto devia.

— O que há?

— Você não me conhece como imagina Kira. Se conhecesse um terço do que julga conhecer sobre mim saberia que este é nosso lugar e que me recusarei a sair daqui – com um gesto delicado, se soltou da outra e saiu do quarto.

Ela estava em casa.


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