Oitava Fileira escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 20
Chama e fumaça




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Os cavalos tinham morrido de exaustão diversos quilômetros atrás. Os vinte soldados que continuaram a marcha tinham se reduzido à oito. O ferimento nas costas ainda queimava, e nada disso me faria parar.

Eu tinha falhado com minha líder, com meus homens e minha terra. Tinha perdido a força principal de ataque do exército pra dois monstros, e a última noite tinha sido uma derrota total. Fogo de dragão e ruína, e não houve nada que eu pudesse fazer.

Queria ter ao menos os gritos daquele filho de uma porca paraplégico pra lembrar, mas nem isso tive. Só aquele olhar perfurante, o maxilar trincado como se não fosse me dar o gosto de ouvi-lo. Nem quando acabei com aquele olhar de desprezo a expressão se alterou. E então mais um monstro apareceu de lugar nenhum, e esse estava realmente furioso. Os gritos dos meus soldados... esses estavam bem nítidos na memória.

“Esse é o último capítulo. Não quero um final ruim.” Foi tudo que disse, o miserável! Como se ele fosse o herói!

Tinha raiva por sentir respeito pelo homem que assassinou meus oficiais. Mas numa coisa ele estava certo: O capítulo final tem que valer a pena. Pelas minhas falhas, Maria vai me enforcar. É seu dever e direito, como rainha. Mas até isso acontecer vou lutar por ela.

Falta pouco. O dia clareou há horas, e mal via o caminho no mato. As sombras estavam mais nítidas, como se fossem a única coisa real no que eu via.

Pude ouvir os ruídos de muitas pessoas, e o barulho de… música? Estavam dando uma festa? Pra eles? As aberrações que mataram seus pais, e irmãos e filhos? Ah, eu vou incendiar aqueles dois, e espalhar as cinzas na entrada da cidade. E depois caçar cada pessoa que decidiu comemorar dois inimigos de Lady Shih e vê-los queimar também.

Mas primeiro vou até a mansão. Chegar até lá e alertar a rainha, porque é uma armadilha, posso sentir. Proteger Lady Shih de qualquer coisa que os dois cretinos estejam preparando.

Já conseguia ver a cidade, e a multidão na frente dela. Mal identifiquei que havia pessoas no descampado quando meu tenente me jogou pro lado. Forcei a vista e… maldição! Todos os fantasmas estão saindo da tumba hoje? Onde esses dois desgraçados rebeldes se enfiaram o tempo inteiro?

Denise segurava um isqueiro aceso, e Xavier estava ajoelhado no chão, atirando em nós calma e metodicamente. Ainda com a cara nas folhas, comecei um contrafeitiço. Nada vai me impedir de proteger Maria. Um último capítulo. Um capítulo brilhante.

***

Todos (quase todos, prefiro pensar assim) estão lá fora, com o Luís brincando de mestre de cerimônias. Os portões estavam fechados, então mesmo a guarda do portão estava acompanhando a folia com interesse. Ainda fingi que queria sair, os guardas não deixaram. Impossível que eu pudesse forçar a saída, então só me esqueceram lá, derretendo as dobradiças e as barras transversais. Só um pouco, pra não ser possível mover. Vão precisar de um maçarico ou um aríete pra abrir isso aqui.

Claro que existem portões menores, mas vai levar um tempo pra todo mundo dar a volta, menos chance de chegar muita gente. Olhei o relógio. Xavier já deve estar me esperando. Com sorte, Carmem deu um jeito de adoecer e faltar no trabalho, encontrou o Xav e vazamos daqui. Cássio, o Dr. Limoeiro, vai apagar a doida da história e enquanto as crianças grandes brincam, se apressarmos dá pra jantar amanhã no Robson´s Rainforest Restaurant.

Ando pelas ruas vazias, nos lugares que combinamos um encontro. Ninguém. Nem Xavier, nem Carmem, sequer um cachorro velho. Onde esses dois estão, meu Deus?

As explosões lá fora começam. Não sei se tenho mais medo do meu plano dar errado ou dar certo. Carmem, José Luís, nossos futuros, Xavier, mesmo o Cas e o Mauro: Todos eles embarcaram nessa porque eu pedi. Por que eles confiaram tão fácil em mim? Quais deles eu não veria no dia seguinte por isso?

Já tinha batido todos os lugares possíveis, dava pra escutar os gritos das pessoas. Espera… estão animados? De onde eu estava, podia ver um dragão de fogo erguer-se no ar e mergulhar. Será que pensavam que era um show pirotécnico? Gente, tanta sorte me assusta.

Mas onde está esse estrupício loiro? Olhei com receio pros muros, ninguém pendurado, graças a Deus. A mansão, alta, sombria e antiquada, com seus quatro guardas de costume, é o único lugar em  que não procurei. Apesar da angústia, não posso entrar na voadora. Cabeça fria, Denise. Você vai achar os dois, trazer o Louco e sumir desse barril de pólvora.

***

Nero se ergueu mais uma vez, soltando fumaça e pegando seu fuzil caído. Maldição, quantas vezes vou ter que derrubar esse pirralho? Mesmo parecendo o rejeito do inferno que era, o general fazia jus à fama. Ele conseguia disparar e sussurrar feitiços ao mesmo tempo, e eu não conseguia encontrar uma maneira de matá-lo, sequer de deixá-lo no chão tempo suficiente pra arrancar sua cabeça.

Desviei dos disparos, olhando de relance pro Xavier, que se jogou nos soldados restantes depois da munição acabar. Mesmo sem o raciocínio e estratégia que o faziam tão mortífero, todos os anos de luta pareciam gravados na mente. Ele estocava e rasgava, tão perto que os inimigos não conseguiam disparar nele sem atingir uns aos outros. Não me distraí por mais de um segundo, mas foi o suficiente. Senti os dedos frios do feitiço do Nero me derrubando no chão e imobilizando minhas mãos. Ele passou uns minutos garantindo que eu estivesse bem presa antes de se aproximar.

Continuei me debatendo, mantendo uma cara de pânico perfeita, procurando Xavier com os olhos. Combater tantos ao mesmo tempo tinha seu preço, e partiu meu coração vê-lo se arrastando para longe dos cadáveres, o olhar aflito preso em mim.

“ Mate todos eles, Xavier. E sobreviva.” Foram minhas ordens pra ele, e eu sabia que ele faria o impossível para ficar em pé. Nero olhou de relance pros corpos no chão, e o rosto endureceu. Pisou na mão com o isqueiro, não se preocupou em tapar minha boca.

— Não pense que acabou, vadia. Assim que eu te impedir de fazer magia de um jeito mais... definitivo, vou cuidar do seu namorado traidor ali.

Foi difícil manter a farsa. A fúria e o fogo queimaram juntos, e não importava quão exausta eu estava, eu conseguiria fazer magia um pouco mais. Nem ferrando eu deixaria o pirralho vencer assim.

Afligo. Compello exuro — murmurei entredentes. Podia sentir o calor aumentando, meu alvo reagindo com violência, cada vez mais rápido, e me virei pra me proteger o pouco que pude.

As pequenas explosões pareceram fogos de artifício, sacudindo Bianconero. Esperava incinerá-lo, mas havia rituais protetores demais. Por outro lado a pólvora explodiu, e esses mesmos rituais impediram a dispersão da energia, tirando a consciência do canalhinha com o choque da explosão.

Me levantei, sentindo como se tivesse engolido parte do meu próprio feitiço. Joguei a arma, aquela coisa nojenta impregnada de magia negra, pra longe. Apesar do esforço, não consegui quebrar o pescoço do moleque — muita magia protetora  e quase me consumi tentando queimá-lo. Suspirei, conformada. Não conseguiria destruí-lo agora, mas não pude evitar dar pelo menos um chute forte na cabeça dele. O golpe me daria uns minutos antes dele tentar nos matar outra vez, com sorte o mataria enquanto eu ajudava o Xavier.

Continuei ignorando a dor rasgando o ombro e no flanco — o maldito realmente atirava bem — e alcancei o Xavier, coberto de cortes e perfurações, oscilando na minha direção.

— Eu sobrevivi, não foi? — ele me perguntou, a voz sonolenta.

— Sim, meu amor. Você é imbatível. — respondi com um sorriso, antes de perceber meu erro. Ele parecia tanto com o Xavier de antes que só quando eu terminei a frase entendi que não era o meu namorado perguntando, e sim um servo mágico confirmando se a ordem foi obedecida.

Foi só ouvir meu sim, e ele começou a desabar pra frente, fechando os olhos. Exausta como estava, não aguentei segurá-lo e fomos os dois pro chão.

— Xavier? Por favor, responde. Abre os olhos, Xavier.

***

— Inspeção! 

O soldado em mim responde antes que eu tenha consciência; me ponho em posição de sentido no fundo da cela. Puta que pariu, será que esse dia pode piorar? A maldita inspeção tinha que ser hoje?

Não sei o que fiz errado, mas me encontraram. Nem adiantou explicar que estava a serviço de Carmem, me prenderam mesmo assim e agora estou enfiado no subsolo, em roupas tão brancas que dariam inveja a uma noiva. O que salvou minha vida até agora é que de algum jeito esse feitiço de disfarce ainda está ativo, então um nome falso convenceu o velho Sapóleo, o responsável pela prisão, embora eu tenha que me policiar o tempo inteiro pra não fazer besteira. 

Não bastava ter sido preso com um nome falso e um uniforme de oficial, o que já é péssimo; ou que tenha descoberto hoje que toda minha equipe foi dividida entre a vigilância das prisões, então todo mundo com quem eu me importava (e que me conhece bem que só a porra) foi punido, deslocado pra um trabalho de merda com um soldo de merda depois que Nero não conseguiu me executar.

Mas espere! Isso não é o bastante pra minha sorte fodida! Tenho que ter as duas chefes mais loucas e atentas a detalhes da história olhando pra mim e pra esse lugar justo HOJE! 

Lara e Luísa devem ser as duas únicas generais de qualquer exército que inspecionam as prisões pessoalmente. Não falo das celas com prisioneiros importantes, ou da prisão de segurança máxima — que não existe; pessoas perigosas demais encontram uma corda bem depressa por aqui — as duas vistoriam todas as prisões. Pra elas, o mundo inteiro precisa estar limpo: Não vou me surpreender se um dia elas decidirem vistoriar o esgoto da capital e limpá-lo.

Se alguém nessa porra descobre que eu sou o Xavier… Não pensa nisso, droga. Se concentra e fica quieto. Sua cela está dentro do padrão, sua roupa está limpa, elas não usam magia: Não pareça o cara que planeja um golpe de estado na merda do dia de hoje e fica tudo bem. 

Nenhum de nós nem respira quando ouvimos a escolta no corredor. Faço minha melhor cara de paisagem, apesar de estar quase me borrando de medo. 

Não da morte: Eu sei que vou morrer nessa porra, já tive minhas experiências com as previsões de Sarah e elas dão um jeito de acontecer. Mas pensava que seria de um jeito, sabe, mais heroico. Agora estou aqui trancado no pior lugar da Terra, esperando as piradas não encrencarem comigo, descobrirem minha identidade e investigarem quem me pôs pra dentro da cidade. A essa altura, Denise já está dentro dos muros, não posso deixar que uma busca chegue até ela ou a Carmem. 

Merda, a loira metida não podia ter ficado mais cinco minutos acordada e combinado algo pra eu dizer se me pegassem? Sou um merda contando mentira no improviso, e se elas me entregam pro Ner… Sem pensar no Bianconero agora, seu imbecil! Esquece o filhote do demo e tenta não ser pego! Você já ouviu histórias dessas duas condenando à morte por coisa mais besta que esse suor nervoso que tá escorrendo pelas suas costas, então segura a onda, caralho! 

O barulho dos saltos parece uma contagem regressiva, quando surge a ideia mais insana do dia: Será que foi isso que a Sarah viu? Eu dando um jeito de morrer sem foder com o resto da missão inteira? 

É possível. É só eu jogar o bom senso e minha dignidade pelo ralo e sujar a cela, ou mesmo uma das duas. Qualquer coisa, até saliva serve.  Depois é só engolir a droga do saquinho mágico e Maria e sua corja não podem mais ganhar. Como dizia meu capitão, quando o meu maior problema era sobreviver às hordas de zumbis: 

“Quando você vai sozinho, é um herói. Quando leva outros, é só um idiota.” É uma merda — tudo nessa situação é — mas é o que tem pra hoje. Elas estão quase aqui, eu olhando pro chão enquanto junto coragem pra sair do jogo desse jeito constrangedor, mas o medo ainda ameaça congelar meu peito quando escuto apenas uma porra de par de sapatos seguir em frente. 

Puta merda. 

Travo e não consigo seguir com a porra do plano, sentindo o olhar crítico de alguma delas travado em mim. Minha boca parecia cheia de algodão. Molenga. Frouxo. Filho da puta demente, você esqueceu como se cospe

Então alguém sussurra algo pra ela, e as duas saem apressadas. Graças a Deus. Espero vários minutos até levantar os olhos, ainda não acredito que escapei dessa e vejo... uma mosca?

E outra. Mais uma. Como se fosse um sinal, todo mundo começou a falar, tão espantados quanto eu. Por instinto, cobri meu nariz e orelhas com a camisa. De onde vieram todos esses bichos?

— O que vocês estão fazendo? — Ouvimos de um dos guardas. — Que barulheira toda é... Porra, o que vocês fizeram? Como trouxeram essas merdas pra cá? 

Ele tem motivo pra ficar assustado. As gêmeas vão surtar se souberem, capaz de fazerem os guardas comerem os insetos todos. Ou de encher o lugar de pesticida com todos nós dentro. Caralho, o corredor inteiro está zumbindo, o que está acontecendo lá em cima?

Sem aviso, a dor de cabeça sumiu. Me senti mais forte que nunca. Ao mesmo tempo, não aguentei continuar em pé. Precisei segurar minha boca com força pra não soluçar e isso ainda não impediu a lágrima. Estou de coração partido, como só achei que ficaria outra vez se Denise morresse antes de mim.

O Xavecão se foi.


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Notas finais do capítulo

* A Denise do futuro não chama o namorado e servo mágico de Xavecão. Quem o chama assim são os outros;

* O capitão do Xavier está citando Stephen King (Outono da inocência, "Quatro estações")

Espero que tenham gostado. A todos que leram, meu muito obrigada.

O próximo capítulo será especial. Espero vê-los semana que vem.



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