Oitava Fileira escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 13
Isso é o normal pra esses dois?




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É o tipo de coisa que não se esquece, sabe? Quando a vida dói tanto que você nem sabe como ainda consegue respirar. Você aceita qualquer outra opção pra não pensar em tudo que perdeu. A loucura. Outra forma de dor. A morte. Você aceita, porra, e fica agradecido.

Então olhar pro Mauro agora, com todos os dentes à mostra e o olhar maníaco, era como encarar um espelho torto. O que eu poderia fazer? Dizer que ele se arrependeria? Que aquilo era errado? Ou que o Cas ficaria envergonhado dele?

Errado, errado e errado. Mauro era uma merda de assassino em massa, e tinha se prometido fazer exatamente o que pedimos a ele. Só espero que ele esqueça que fomos eu e a Denise que o pusemos nessa sinuca.

— Não vou esquecer. Nunca. Vocês não vão me atrapalhar, ou me procurar outra vez. Seth, confio em vocês pra guardar o…

Ele hesitou, como se não soubesse qual palavra usar. A voz tremeu quando voltou a falar — Cas, até que eu volte. Eu-

Arregalou os olhos, e voltou correndo até a cabeceira do... Caralho! O diabo do morto tá se levantando! Os ferimentos fecharam mesmo, e o Mauro mudou de psicopata pra cachorro reencontrando o dono num instante. Num minuto, só as roupas do Cas denunciavam que ele já tinha sido ferido hoje.

O ciborgue se virou pra nós, sonolento. Mauro agora estava à beira das lágrimas.

— Me desculpe, nunca mais faço isso, juro que vou controlar meu temperamento do cão, Cas, prometo. Eu vou resolver essa questão com a Maria, só me espere aqui, ok? Fique aqui quietinho com o Seth… Seu animal imbecil, filho da puta ordinário, me perdoe, pelo amor de Deus. Sabe que eu ficaria, não é? Quantas vezes fossem necessárias, nem precisa pedir. Eu-

Cássio só abriu um sorriso compreensivo, e levantou o rosto do Mauro. — Eu sei. Tá tudo bem, lobinho. Eu nunca devia ter te chamado de covarde. Ei, aonde você vai?

— Eu preciso fazer uma coisa. Só vai levar um minuto.

Sim, Mauro se ajoelhou, juntou as mãos e curvou-se até encostar o rosto no chão.

— Makoto ni moushiwake gozaimasen deshita. Desculpe, minha pronúncia é ruim.

— Pode se levantar, Mau. Está tudo bem. De verdade.

— Ângelo, esqueça. Não importa o que eu disse, não vou fazer. Pegue de volta, faça qualquer coisa. Eu tô fora.

Eu ainda tremia, vendo os dois abraçados no meio da clareira, Mauro balançando de tanto soluçar. Olhei pra Denise, esperando que ela pudesse me explicar o que estava acontecendo, mas pelo visto ela também não sabia. E onde o Ângelo entrava nessa bagunça?

— Cas… Como… Você estava…

— Morto? Sim, acontece. Denise, não é? E... Xavier.

— Sim, sou eu, Cas. Você tá bem?

— Cebola.

— Como?

— Gente que mal conheço não me chama de Cas. Pra vocês, é Cebola.

Não sei por que pensei que isso não podia piorar.

***

Depois que os lobos foram embora, Cas nos fez ficar longe até o mago se sentir melhor. Depois, foi necessário o Mauro confirmar que sim, nos conhecíamos desde os seis anos, e mesmo assim o ciborgue ainda virava pra nós desconfiado. Precisamos explicar tudo de novo sobre Lady Shih, os Filhos da Tormenta, tudo que ela fez… tudo que fizemos por ela. Por algum milagre, eles decidiram voltar e enfrentar Maria mais uma vez.

Mesmo que ela tenha me deixado queimar, e parte de mim tenha essa tendência insana de voltar a ser o cachorro que pula quando ela manda, não posso deixar de ver a garotinha. Queria que tivesse outro jeito, qualquer um.

Fazíamos planos, e agora todos pareciam na mesma disposição mórbida: Denise estava desanimada, como se o resultado não importasse mais; Mauro parecia um homem jogado do céu pro inferno várias vezes, uma bola daquelas presas na raquete por uma cordinha. E o Cas… o coitado estava num país estrangeiro. Ele fazia um esforço imenso, mas alguma coisa tinha se perdido quando ele voltou do outro mundo.

E eu? Lembrei de todas as minhas patrulhas, das vezes que precisava animar meus companheiros, mesmo sabendo que não estaríamos todos lá no dia seguinte. Ainda tinha algo que não encaixava, mas o quê?

Mauro e Cas iriam na frente, eu me esgueiraria no meio da confusão e a Dê entraria por último. Quando perguntei como eles fariam pra entrar, Mauro abriu um sorriso malicioso.

— Pela porta da frente, é claro.

***

Antes de amanhecer, eu estava a caminho da cidade. Planejava observar os muros pelo menos algumas horas antes do plano começar, e tirar uma dúvida que estava me matando.

Essa noite foi melancólica. Eu estava até animado de finalmente fazer alguma coisa que não correr atrás de Mauro e Cas, já a Dê... mais pra baixo que tapete de porão, como ela gosta de dizer. Passou o máximo de tempo que pôde longe de mim, arrumando o disfarce, hidratando o cabelo e fazendo todas aquelas coisas de mulher e eu até entendo, mas aquela podia ser nossa última noite juntos e... Droga, esse era o problema. Não estávamos juntos.

Ela mal olhava na minha cara e aceitou bem contrariada eu abraçá-la pra dormir. Não adiantou nada perguntar, ela só se encolheu mais nos meus braços, então fiquei quieto. Minha garota tem o próprio ritmo das coisas, ela falaria comigo quando estivesse pronta.

 Cacete, o cheiro daquela mulher, o natural mesmo, sem perfume nem nada é muito bom. Me relaxa e ao mesmo tempo excita pra caralho, é confuso mas eu gosto assim. Só que ontem, mesmo dormindo num lugar seguro, ela estava tensa e bem triste.

— Xav, você tá acordado?

Quase dormindo, mas vamos lá. — Claro, Dê. O que foi?

Finalmente ela falaria do que a estava incomodando desde a volta da casa do Louco. Não eram só os dias de merda e o medo constante de morrer, tinha alguma coisa a mais.

— Aquela discussão na chuva, aquilo foi de verdade?

— Como assim? Se aconteceu mesmo? Explica.

Ela nem me chamou de nada, o que era mau sinal. — Quando você disse que era uma péssima ideia, que eu insistia nisso só pra peitar a piranha. Você acha isso de verdade?

— Não, linda. Você está certa, precisamos impedir os Filhos da Tormenta. Salvar Carmem e a cidade — acho que ela murmurou “o mundo”, mas deve ser besteira minha. Mesmo a Lady Shih não consegue dominar o mundo inteiro… acho.

— O quê?

— Podemos morrer essa semana. Posso acabar pendurada como os outros, você também. Ou pior, nas mãos do Nero. Já pensou nisso?

— Algumas vezes — admiti — Não tô com medo. Me deixa explicar, eu sei que se a amostra de demônio me pega, tô muito fodido. Certeza que ele não esqueceu da última vez.

Ela tremeu, e nem tava frio. Droga, seu pateta, ela não precisava ter isso na cabeça. — Mas uma hora vai acabar. E depois… nem mesmo ele pode me alcançar depois. A gente tá lutando pelos motivos certos dessa vez.

“E ele não pode usar você pra me atormentar, porque só vai te alcançar por cima do meu cadáver” acrescentei em pensamento.

— Lutar pelo que é certo nunca impediu ninguém de morrer. Ou de ferrar tudo.

Um soluço, e ela se encolheu ainda mais. Merda, eu odiava vê-la assim.

— Acho que eu fodi tudo. De verdade dessa vez. Não quero te ver morto, Xaveco — continuou, mais pra si mesma que pra mim.

— Claro que não, Dê. Você é absoluta, multimídia e performática, lembra? Vou te colocar dentro daquela porra de cidade, e eles vão acreditar no que você quiser. Não duvido que você faça todo o trabalho, e a garota acabe morrendo de raiva mesmo.

Acabei conseguindo fazê-la relaxar, e não foi tão difícil fazê-la confiar de novo no próprio taco. Afinal, é a Denise.

Abri um sorriso, e lembrei de última hora de não me coçar. Haveria um momento em que os feitiços de ilusão não funcionavam, entre os portões, e ela arranjou uma solução bem simples: maquiagem. Tive que acordar uma hora mais cedo, e se eu lembrasse de não esfregar o rosto, nem minha mãe me reconheceria.

Então é claro que estava com uma coceira dos diabos em todo lugar. Enquanto olhava com os binóculos, procurando os restos dos enforcados, lembrei da resposta dela quando eu perguntei se aquilo era seguro. “Não seja ridículo, tudo já venceu há oito anos.”

Espero que ela ame minha personalidade marcante, porque essa merda está queimando tanto que até o fim do dia meu rosto derrete. Espera...ali. Uma faísca metálica entre os restos da outra Denise. Foquei as lentes e … é isso, porra! Eu conhecia aquele pingente, só uma pessoa poderia tê-lo colocado ali.

A Carmem está viva, e nós podemos consertar tudo nessa merda. Continuo a vigiar. Francamente, esses soldados estão relaxados demais. Todos os que vejo estão fora de forma, encostados nos muros, quase dormindo de olhos abertos. Meu antigo capitão faria essa tropa incompetente correr até Brasília, e chegaria lá antes dessa pirralhada. E ele tinha quarenta anos quando morreu.

Foco, Xavier. Mesmo que você possa passar por todos eles vestido de gorila rosa, não subestime ninguém. Basta um sujeito mais atento, um novato querendo fazer bonito e você morre.

Está na hora. Isso, estão todos como baratas tontas. Pai do Céu, eles são mais estúpidos do que pensei, estão esvaziando tudo desse lado. Ok, minha vez.

Enterro o binóculo e todo o resto e me junto à multidão. O guarda restante não consegue ver todo mundo, estão todos com medo. Passei fácil no meio da confusão, e já estou depois do portão interno quando o disparo congela todo mundo no lugar. Eita, porra, mais um.

Merda. Merda. Merda suficiente pra encher uma fossa. Os canhões das muralhas. Olho na direção do som, igual a toda a cidade. Sabia que eles eram ruins no serviço, mas não que as gêmeas tinham posto algum chapado suicida no comando da artilharia.

Penso no massacre entre as tropas de Nero, poucos dias antes. Uma música e um fechar de mãos, foi só o que precisou. Deus, que eles não tenham acertado, senão Denise não vai entrar na cidade.

Porque não vai ter mais cidade nenhuma.


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Notas finais do capítulo

* Segundo o site Japão em foco, a tradução da frase em japonês que Mauro usa é : "Eu sinceramente peço perdão pelo que fiz";

* É muito difícil matar o Cássio, e quase impossível mantê-lo morto. Mas como já foi dito antes, nada vem de graça em magia. Acho que agora vocês sabem o que está acontecendo com ele, não é? É a terceira vez que ele volta do além;

E uma dúvida minha: Tem sido fácil acompanhar as mudanças de narrador?

Espero que tenham gostado, e até o próximo capítulo.



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