4/4 & +1 || BYLER escrita por Lady Capuccino


Capítulo 2
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Mike Wheeler gostava muito de dias chuvosos.

 

Não os dias chuvosos convencionais, aqueles em que uma simples torrente de água cairia por um curto período de tempo em alguma parte da tarde -- embebendo as ruas da pequena Hawkins em uma breve tempestade de verão -- para logo depois ser substituída pela luz ofuscante do astro solar suspenso no céu.

 

Na verdade, seus dias chuvosos favoritos eram aqueles em que a água se prendia ao céu como se fizesse parte dele, caindo com a mesma constância e fluidez de uma cachoeira em movimento, forjando uma sinfonia bastante característica no simples contato com as telhas de sua casa e regando os ares da cidade com umidade suficiente para que ele pudesse senti-la até os ossos, mesmo estando completamente seco e aquecido no interior de seu quarto.

 

Mike gostava desses dias porque, quase sempre, eles significavam uma única coisa: horas inteiras confinado no porão de sua casa, junto aos seus melhores (e únicos) amigos, jogando D&D, lendo quadrinhos, ouvindo a única estação de rádio que seu velho aparelho ainda era capaz de sintonizar e comendo todos os doces que sua mesada de não mais que cinco dólares ao mês podia comprar.

 

Ele gostava dos outros dias também, aqueles em que chuva era algo impensável, em que o calor era mais que bem-vindo e o céu era pincelado com um azul intenso, quente e quase sobrenatural de tão profundo. As tardes tão longas que pareciam durar uma vida inteira.

 

Dias em que crianças de toda a vizinhança eram vistas aos montes, permeando as ruas do primeiro ao último quarteirão do bairro.

 

Dias em que ele, Lucas, Dustin e Will passavam horas apostando moedas em partidas de bolinhas de gude, fabricando carrinhos de rolimã, jogando no Fliperama local ou correndo uns atrás dos outros como se suas vidas dependessem disso.

 

No final, estavam todos de volta pra casa, com as roupas empoeiradas e os rostos corados, ouvindo as broncas dos pais e fingindo estar arrependidos, quando na verdade, sabiam que fariam tudo de novo no dia seguinte.

 

Esses eram bons momentos também, mas de alguma forma eles não carregavam o mesmo peso de quando estavam sozinhos no porão e os únicos sons que ouviam eram os da chuva caindo silenciosamente lá fora e o barulho de suas risadas quando algum deles contava uma piada divertida ou fazia alguma jogada esperta durante uma partida de xadrez.

 

Mike, de fato, gostava bastante desses dias.

 

Porém, infelizmente, esse não estava sendo um deles.

 

Lá fora chovia, mas dentro da residência dos Wheeler não havia barulho algum além dos roncos de seu pai que ressonava tranquilamente no andar de cima e os sons de alguma música pop que Nancy ouvia no último volume em seu Walkman enquanto estudava para a temida semana de provas que se aproximava.

 

Todos os seus amigos pareciam tê-lo deixado na mão.

 

Dustin fora passar o final de semana na casa da avó que morava na cidade vizinha, prestando-lhe a visita que ele prometera fazer já há algum tempo e Lucas havia ido num retiro da igreja com a família.

 

Ele ficaria dois dias inteiros fora, em meio a dezenas de padres e freiras, fingindo ter uma relação pacifica com a irmã em prol da causa religiosa. Mike não hesitara em rir muito e desejar-lhe boa sorte com isso, porque, pelo que conhecia de Érica Sinclair, ele iria precisar.

 

Quanto a Will, bem, em qualquer outro dia ele estaria lá.

 

Will parecia estar sempre disponível, mesmo que o resto dos amigos tivessem outros compromissos e mesmo que ele próprio tivesse algo para fazer, em algum momento do dia ele apareceria na porta dos Wheeler e os dois encontrariam formas de se divertir até o anoitecer.

 

Mas esse não era o caso, pelo menos não hoje.

 

Will estava fora porque, finalmente, ele veria o pai pela primeira vez em semanas.

 

Há alguns meses o patriarca dos Byers havia saído de casa e simplesmente desaparecido, para só então ressurgir depois de vários dias seguidos, dar notícias e fazer promessas de que viria buscar o filho caçula para apresentá-lo a sua mais nova esposa.

 

Lonnie Byers era um homem estranho.

 

Quando o conhecera Mike se lembrava de pensar que ele parecia quase irreal, como se tivesse saído de algum filme de terror ruim dos anos 70, transmitido na TV tarde da noite quando as emissoras tinham certeza de que não havia muitas pessoas assistindo.

 

Ele não era nada igual aos outros pais que Mike conhecia e certamente não era nada parecido com o seu.

 

Lonnie quase nunca falava, estava sempre carrancudo e olhava para tudo e todos como se a qualquer momento fosse irromper e transbordar toda a ira que existia dentro de si. Nas raras ocasiões em que abria a boca, tudo o que saia de lá eram gritos, frases desconexas que se misturavam com palavrões e uma fúria raivosa.

 

Ele gritava bastante, com todo mundo, até mesmo com Will.

 

Isso não importava muito no final das contas porque por menos parecido que fosse com a maioria das figuras paternas existentes, ele ainda era o pai do seu melhor amigo, Will o amava. E como poderia culpá-lo? Só a ideia de um filho odiar o próprio pai já era ruim e estranha o suficiente, mas o que Mike temia mesmo era que na verdade fosse totalmente o contrário e neste caso sim as coisas seriam bem piores.

 

Will passara os últimos cinco dias animado com a visita, contando todos os detalhes do cronograma de coisas que ele planejara fazer junto ao pai, detalhando os lugares que passeariam juntos e falando sobre os desenhos que estava preparando para presenteá-lo. Ele até os pintara de cores mais fortes e sombrias, alegando que Lonnie não gostava muito de quando usava tons coloridos demais, pois segundo ele eram infantis e pouco masculinos.

 

Obviamente, Mike ficara feliz pelo amigo. Claro que sim, Will estava muito entusiasmado com tudo isso e definitivamente merecia esse momento de descontração.

 

Mas a verdade é que havia uma parte dele -- uma partezinha bem pequenininha que ele odiava admitir que estava lá -- que o fazia se sentir meio abandonado por todo mundo.

 

Sabia que era egoísmo seu e tentava não pensar muito sobre isso, mas por mais que quisesse, não conseguia evitar.

 

Ele se encontrava em seu quarto, atirado na cama sem muita cerimônia, a cabeça afundada no travesseiro.

 

Estava muito concentrado em contar, pela milésima vez, o número de paralelepípedos verdes que enfeitavam o teto cuidadosamente arquitetado do cômodo quando ouviu a campainha ressoar no andar de baixo da casa.

 

Mike não se importou em se levantar, ele não queria se levantar, queria ficar contando aqueles paralelepípedos até que seus olhos se cansassem de vagar de um lado para o outro e ele caísse no sono. Algo que duvidava muito que aconteceria, considerando o fato de que já estava assim há vários minutos e continuava muito bem acordado, obrigado.

 

Lá embaixo a campainha persistiu e Mike não pôde deixar de pensar que era questão de segundos até que um de seus pais (provavelmente sua mãe) o mandasse abrir a porta de uma vez por todas.

 

“Michael Wheeler! Desça aqui agora e atenda já a porta. É uma ordem!”

 

E lá estava.

 

Mike suspirou em resignação, movendo-se lentamente até a escada que dava acesso a sala.

 

Uma vez lá, ele se inclinou em direção ao batente, girando a maçaneta e esperando ver o velho carteiro do bairro ou talvez quem sabe algum dos amigos que Nancy costumava receber em casa no final de semana.

 

Mas, ao invés de qualquer um deles e contrariando todas as suas expectativas, Will era quem estava parado ali, emoldurado a sua frente.

 

Estava encharcado da cabeça aos pés, sua mochila estampada com desenhos dos Caça Fantasmas pendendo frouxamente no ombro direito.

 

Tinha a cabeça baixa, os olhos fixos no chão, os ombros muito encolhidos junto ao corpo como se sentisse frio.

 

”Will?” Mike entoa, aproximando-se “Will, o que aconteceu?” pergunta, a voz vacilante de espanto

 

O amigo finalmente olha para ele, o rosto vermelho e inchado, gotículas minúsculas de um líquido transparente que não poderiam de forma alguma ser confundidas com a água da chuva, escorrendo por suas bochechas.

 

E então Mike sabe, sabe que algo está muito errado.

 

Ele já havia visto Will chorar outras vezes, tantas vezes que mal pudera contar.

 

Ele chorou no 2º ano quando perdeu seu classificador colorido que guardava a maioria de seus desenhos favoritos, chorou quando ficou doente as vésperas do aniversário de sete anos de Mike e não pudera ir a festa, chorou quando acordou no meio da noite em decorrência de um pesadelo que tivera durante uma festa do pijama na casa de Dustin.

 

Mas nada, nada mesmo, se comparava a isso.

 

Mike não sabe o que está acontecendo, ele nem mesmo tem ideia do que fazer, mas antes que sua mente comece a pensar demais, ele se inclina, envolvendo seus braços ao redor do amigo e apertando-o junto a si com toda a força que conseguiu reunir.

 

”Ele não veio, Mike.” finalmente diz, dissolvendo-se no abraço “Ele me deixou lá esperando. E eu esperei. Eu esperei, Mike. Eu sou tão idiota, tão idiota.”

 

Então era isso.

 

Lonnie Byers havia encontrado uma outra forma de ser um babaca completo, uma forma que não envolvia movimentos bruscos como gritar ou esbravejar palavrões e ofensas para o filho.

 

Dessa vez ele o machucara de modo muito mais significativo. Uma rejeição silenciosa, um lembrete tácito de que Will não era mais bem-vindo em sua vida, e talvez, muito provavelmente, ele nunca tenha sido.

 

”Não diz isso. Não diz isso porque não é verdade.” Mike sussurra, afastando-se para olhá-lo

 

”É sim, você sabe que é!” ele exclama, mágoa transbordando em sua voz "Ele me odeia, eu sei disso. Eu só não queria acreditar. Os pais não deveriam odiar os filhos, deveriam?”

 

Não, não deveriam.

 

”Eu não sei o porquê, eu só queria... eu só queria muito saber.”

 

Mike não diz nada, não há palavras confortantes o suficiente para que ele possa verbalizar no momento.

 

Ele apenas retoma o abraço, dessa vez tornando-o mais longo e, de alguma forma, um pouco mais apertado e então, ao final, ele acrescenta algo.

 

Um beijo, um simples beijo de poucos segundos na têmpora do amigo.

 

É instintivo, é fácil e é o certo a se fazer.

 

Quando fala novamente, sua voz está grave e repleta de uma sinceridade solene, como se ele tivesse ficado um pouco mais velho e sábio der repente.

 

”Se ele te odeia, então ele é um idiota. Porque você, William Byers, é a criatura mais adorável que eu já conheci e qualquer pessoa no mundo que te tem por perto é sortuda o suficiente ao ponto de jogar na loteria mil vezes seguidas e ganhar o prêmio em todas elas.”

 

Will sorri fracamente, desviando os olhos pro chão.

 

”Todas as vezes?” ele pergunta com incerteza

 

”Todas as vezes.” Mike afirma cheio de convicção, com uma voz que diz com clareza ‘acredite em mim, eu sei das coisas’

 

O amigo sorri um pouco mais brandamente, encarando os próprios pés, mas a tristeza, aquela tristeza profunda injetada no fundo de seus olhos ainda está lá.

 

”As vezes acho que sei porque ele não gosta de mim.” engole em seco, ponderando as palavras “Ele diz... diz que sou esquisito.”

 

Mike arqueia as sobrancelhas em confusão, sem fazer ideia do que isso pudesse significar. Mas resolve arriscar.

 

”É claro que você é, Will. Nós somos todos esquisitos, lembra? Eu, você, Dustin e Lucas. Somos o grupo de garotos que preferem ficar trancados no porão sendo nerds ao invés de estar lá fora jogando basquete com as outras crianças. Se quer saber, nós somos sim esquisitos e gostamos de ser assim, não é?" ele indaga, buscando confirmação 

 

”Sim, é, eu sei. Mas é que... não é disso que eu tô falando exatamente.” suspira longamente, a boca trêmula como se não soubesse ao certo o que dizer "Ele diz que sou esquisito de um jeito estranho, de um jeito que um menino jamais deveria ser.”

 

Mike não tem certeza se sabe do que ele está falando, seu pai jamais lhe dissera algo remotamente parecido.

 

Mas, de alguma forma, aquilo não parecia ter muito a ver com os passatempos que Will gostava de  compartilhar com os amigos e sim, com algo muito mais profundo, algo ainda obscuro para suas mentes de criança.

 

Mike decide que não se importa, não se importa com as definições de "esquisitice" de Lonnie Byers.

 

”Quer saber? Eu prefiro muito mais ser ‘esquisito’ como você, do que ser um idiota como o seu pai.”

 

Will arregala os olhos, olhando-o como se não acreditasse.

 

”Sério?”

 

”Uhum." afirma, balançando a cabeça com veemência "Além do que, isso seria muito bom pra mim, talvez quem sabe eu acabasse roubando as suas habilidades artísticas também. Além da esquisitice, claro.” ele diz, lançando-lhe uma piscadela

 

Will ri, o rosto corado de lisonja. Suas feições agora suavizadas com diversão, conservando a tonalidade vermelha de antes, mas que agora se atribuia unicamente a sua risada.

 

Mike envolve seus ombros com um dos braços, sentindo-se muito aliviado por provocar alguma melhora no humor do amigo e o guia pra dentro de casa, fechando a porta atrás de si.

 

”Você precisa trocar essas roupas senão vai acabar se resfriando.” recomenda, ajudando-o a se livrar do casaco molhado

 

”Preciso ligar pra minha mãe antes, ela não sabe que eu tô aqui.”

 

”É melhor fazer isso logo, não queremos que ela surte como da última vez que você se esqueceu de avisar.”

 

Ele ri com a lembrança.

 

”Ah, e antes que eu me esqueça, ganhei um quebra-cabeça novo. Na verdade, ‘furtei das coisas da Nancy’ é a frase correta. Duas mil peças. Essa é a sua quantidade favorita né?”

 

Will balança a cabeça em concordância, os olhos brilhando de empolgação.

 

”O suficiente pra cansar e divertir. Tudo de uma vez só.”

 

”Isso aí. Acha que a gente consegue montar ele inteiro antes do anoitecer?” pergunta em um tom de voz que exala desafio

 

Will lhe dá um sorriso conspiratório.

 

”Pode apostar que sim.”

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Já passa da hora de dormir quando eles finalmente se aconchegam nas cobertas, deslizando entre os lençois com a mesma familiaridade de sempre.

 

Não era realmente necessário que dormissem na mesma cama mas esse era um hábito que haviam construído já há algum tempo e, bem, não havia porque ser desfeito.

 

"Acho que a minha cama encolheu." Mike diz, tentando tomar espaço suficiente para não cair durante a noite

 

"Isso foi porque você cresceu, seu idiota." Will sorri, puxando as cobertas até estar confortavelmente aquecido

 

Eles ficam em silêncio por um momento, ouvindo o inconfundivel  uivo do vento la fora que se agita conforme a chuva ganha intensidade.

 

"Mike?"

 

"Sim?"

 

"Obrigado."

 

"Pelo que? Por ser um ótimo montador de quebra-cabeças?"

 

Will ri por um instante e Mike reflete brevemente sobre o quanto gosta daquele som.

 

"Não. Por ser um péssimo montador de quebra-cabeças mas um ótimo amigo."

 

Ele vira pro lado, soltando um longo bocejo que denuncia o seu cansaço.

 

Ambos dormem.

 

Lonnie Byers não aparece mais depois disso, ele não liga ou faz uma visita. E, depois de um tempo, é como se ele tivesse evaporado do mundo como fumaça.

 

Will não fala sobre isso e Mike entende que, na verdade, não há mais nada para dizer.

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Notas finais do capítulo

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