Nós e Eles escrita por Francisco


Capítulo 2
Ponto Cego


Notas iniciais do capítulo

Eu espero de verdade que você goste desse capítulo, escrevi com muito carinho (juro) ♥



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Não há nada como não conseguir dormir porque seu coração não para de bater rápido demais. Tive tempo pra relembrar todas as coisas mais vergonhosas que já fiz, incluindo o fato de que eu tinha saído do armário pro meu melhor amigo. Eu queria ter visto o rosto dele, se ele sorriu ou fez alguma cara estranha. Essa, pra mim, é a parte mais difícil de ser cego: você não sabe a reação de alguém de verdade, só suspeita.

O som do canto dos pássaros do lado de fora me acordaram dos devaneios bobos. Ouvi o barulho da máquina de café funcionando, do outro lado do corredor. Também escutei uma porta batendo e o bocejo cansado do meu pai. Uma coisa legal de ser cego é que sua audição se desenvolve de uma forma incrível.

Passei a mão sobre meu relógio, que ficava na cômoda ao lado da cama. Ele era adaptado para braile, assim, eu podia saber onde os ponteiros estavam. 5:27 da manhã. Deus, faltava tão pouco tempo que eu podia sentir meus ossos tremendo. Desliguei o alarme, que normalmente tocava às 5:30 e levantei. Senti o carpete felpudo nos meus dedos do pé e assobiei para o gato. Era minha maneira de dizer “bom dia e cuidado, senão eu vou te atropelar”. Abri a porta do meu quarto, dei um passo para a direita e me guiei pelos pequenos pontos de aço que meu pai tinha instalado na parede. Dessa forma, era mais fácil não esbarrar com alguém no meio do corredor e saber quando alguma porta se aproximava. Não que eu precisasse desses pontos, porque eu já todo os lugares e cantos da minha casa decorados na minha mente. O problema é que de manhã eu parecia um zumbi.

A primeira porta à direita era o banheiro. Como estava aberto, não tinha ninguém dentro. Fechei a porta, tirei o pijama e entrei dentro do box. Liguei o chuveiro e deixei a água morna deslizar sobre meu corpo. Senti o cheiro cítrico do sabonete de capim-limão e o peguei, esfregando delicadamente sobre meu corpo. Eu gostava de apreciar esse momento, em que a espuma do sabonete cobria meu corpo, deixando-o macio.

Minha mãe bateu levemente na porta e perguntou se eu iria demorar muito. Eu respondi que não e completei o resto do banho em uma velocidade digna de velozes e furiosos. Sequei meu corpo e me enrolei na toalha, voltando com passos rápidos para meu quarto, tentando não escorregar no piso do corredor. Andei até o armário e coloquei uma cueca nova. Eram todas pretas ou brancas, então não fazia qualquer diferença pra mim, por isso não adaptamos nada nas gavetas. Tentei vestir o uniforme da melhor forma possível e voltei a correr pelo corredor, em direção à cozinha.

Lá, senti o cheiro de torradas e café. Iogurte, queijo e presunto.

― Bom dia, vocês ― os cumprimentei assim que coloquei os pés no azulejo frio da cozinha.

― É seu grande dia ― meu pai disse de boca cheia de alguma coisa.

― E seu cabelo está bem bagunçado ― minha mãe disse se aproximando e penteando com os dedos, de forma a me deixar mais estranho ainda.

Eu esperei ela acabar de ajeitar todo o meu uniforme, cabelo e postura, e sentei em uma das cadeiras. Todos os potes da casa eram adaptados ao braile. Peguei torrada, uma fatia de queijo e comi enquanto minha mãe enchia minha xícara de café.

― Eu... ― tentei começar a falar ― Serafim... Veio aqui ontem.

― Legal ―meu pai comentou. ― E o que vocês fizeram?

― Conversamos como sempre. Ouvimos músicas e conversamos mais um pouco... Eu contei pra ele sobre a escola.

― Claro ― minha mãe mexeu uma colher na minha xícara.

― E ele ficou bem feliz ― continuei.

― Claro ― minha mãe repetiu.

― E ele queria nos fazer um favor bem legal, até.

Silêncio. Eu dei um sorriso nervoso e engasguei com a torrada.

― Favor? ― meu pai disse numa entonação bem curiosa.

― É, ele quer me levar pra escola hoje. Em um Mustang.

Meu pai iria falar alguma coisa, mas minha mãe colocou a mão em meu ombro e me deu um beijo na testa.

― Claro que você pode ir ― eu podia imaginar seu sorriso caloroso. ― Termina seu café e peça para o Serafim nos mandar uma mensagem assim que chegar lá.

Eu assenti, confuso. Eu estava preparado pra uma briga, ou no mínimo uma pequena discussão sobre a minha segurança. Meu pai ficou em silêncio durante toda a refeição. Assim que eu acabei, me despedi e fui em direção à sala. Calcei meus sapatos, peguei minha mochila, coloquei meus óculos imbecis pretos de cego e saí de casa. Era melhor usar os óculos do que as pessoas verem meus olhos esquisitos de cego. Do lado de fora, pude sentir os raios solares me abraçarem e a brisa fresca acariciar meus cabelos molhados. Fiquei um tempo parado, apreciando o calor da manhã.

― Bom dia, Sr. Independência ― a voz alta de Serafim indicava que ele estava do outro lado da rua.

Eu sorri e acenei na direção que o ouvi. Os passos dele se aproximavam e quando o senti próximo, contei sobre o que tinha acontecido na cozinha. Serafim sempre cheirava a cigarro, não importava quantos chicletes de menta ele mascasse e se a colônia importada dele fosse da melhor qualidade.

― Sua mãe quer que você saia mais, Thomas ― ele segurou meu ombro. ― Você fica muito tempo em casa. Seu pai só está preocupado...

Ele deu dois toques no meu ombro, o que significava que iríamos começar a andar. Ele não me dava a mão, não me segurava e eu não usava bengalas. Era nossa maneira cool de fingir que eu não sou deficiente. Por mais que eu usasse aqueles óculos imbecis enormes, talvez as pessoas só imaginassem que fosse mal gosto.

― Pequeno degrau a dois passos, é o meio fio ― Serafim sussurrou. ― Pode continuar andando, não passa nenhum carro a essa hora.

Nós andamos calmamente enquanto ele reclamava sobre o trabalho dele demandar muito esforço até nos finais de semana.

―O que você está vestindo? ― perguntei, aleatoriamente.

― Calça social preta, camisa branca e um blazer preto.

― Uau, quanto estilo.

Eu queria poder dizer que o dia estava bonito e que as plantas estavam mais verdes que o de costume. Queria falar que o blazer preto contrastava bem com o tom de pele dele, ou que seu cabelo estava excepcionalmente bem penteado hoje. Mas nada disso era possível. Eu nem sabia como era seu cabelo mais, só podia imaginar.

― O que você tá pensando? ― ele cortou meu monólogo interno. ― Já chegamos no carro. Estica a mão e abre a porta, é o banco da frente.

Fiz o que ele disse e sentei num banco extremamente confortável. Como era conversível, eu ainda pude sentir o Sol secar meu cabelo e escutar os pássaros cantarolarem enquanto voavam. Ouvi Serafim sentando no lado do motorista e ligando o motor.

― Antes ― pude sentir ele se aproximando e puxando algo perto dos meus ombros ― Segurança.

Ele colocou meu cinto e bagunçou meu cabelo. Ele sabia que eu odiava quando minha mãe fazia eu parecer um garotinho de 6 anos. Acelerou o carro e eu apoiei o queixo na porta, sentindo o vento tocar no meu rosto. Serafim ligou o rádio e começou a tocar o meio de uma música que nós dois amávamos. Ele começou a cantar bem alto e eu ri dele. Serafim podia ter todas as qualidades do mundo, mas não era um bom cantor.

TO DIE BY YOUR SIDE ― Serafim gritou, cantando ― CANTA, THOMAS!

WELL, THE PLEASURE, THE PRIVILEGE IS MINE ― eu gritei, enquanto ele acelerava o carro.

“There Is A Light That Never Goes Out” era nossa trilha sonora preferida. Nós ouvimos pela primeira vez poucos dias depois de eu ficar completamente cego. Lembro que, nesse dia, ambos choramos bastante na sorveteria. “Uma cena e tanto”, ele descrevia.

Três músicas e meia depois o carro parou. Eu pude ouvir muitos carros passando e pessoas conversando. Tantas delas que eu não conseguia entender meus próprios pensamentos. Logo, um sinal tocou e ouvi a multidão se esvaindo. Minhas mãos tremiam e senti minha boca ficar seca.  

― Thomas, ― ele colocou uma pequena garrafa de metal na minha mão ― dá um gole.

Sem questionar, eu dei um baita gole e me arrependi no mesmo momento. Com muito esforço pra não vomitar, senti minha garganta esquentar tanto que jurava que poderia estar pegando fogo. Serafim riu por tanto tempo que quando empurrei o rosto dele, senti lágrimas no canto dos olhos do meu amigo.

― O que era isso, seu filho da puta? ― eu joguei a garrafa de volta pra ele.

― Coragem líquida. Ah, mais uma coisa ― ele tirou meus óculos e colocou nas minhas mãos outros. ― Esse fica melhor em você, te garanto. Meu presente por você ter me contado um segredo tão íntimo.

Eram menores e redondos. Sempre quis óculos redondos. Senti minhas bochechas ficarem quentes. Agradeci, os coloquei e esperei ele me guiar até a escola, me ajudando a desviar de carros e outros empecilhos.

― Chegamos no portão. Eu avisei pra diretora por telefone que iria te ajudar, então vamos entrar juntos ― ele disse e colocou a mão em volta do meu ombro.

Serafim me explicou, sussurrando, exatamente como ele via a escola: grande, azul e cheia de gente confusa tentando achar suas salas. Ele disse que o piso era adaptado, com “bolinhas que guiam gente que não vê direito”, e me mostrou que ficava do lado esquerdo do corredor. Todos os pisos desse lado eram adaptados. Serafim disse que se eu me perdesse, era só tatear a parede porque em algum momento eu acharia uma placa com orientação em braile.

― Aqui. Essa porta é a da sua classe ― ele me virou, mas continuou com o braço em mim.

Tateei a placa da porta, “2B”. Abri a maçaneta e, o que devia ser uma conversa, se transformou em um silêncio absoluto. Serafim continuou andando e me levou junto, pra primeira carteira do extremo lado direito da sala. “Senta” ele sussurrou “Vai ficar tudo bem. Eu prometo”.

Ouvi os passos de Serafim se afastarem. Minhas mãos começaram a suar. Por que estava tão silencioso?

Com isso, a porta se bateu e eu ouvi meninas cochicharem coisas como “Nossa, ele é muito bonito”. É claro que não era eu o causador do silêncio. Ninguém olhou pra mim, só pro Serafim. Óbvio demais, eu sou o ponto cego. Ninguém vê. Minha respiração começou a desregular com a ansiedade e eu senti alguém, na carteira de trás, se aproximando da minha nuca. Todos os meus pelos se arrepiaram.

― Cara, você tá igual ao John Lennon só que com óculos escuros ― disse uma voz feminina baixa. ― E de cabelo curto. É um elogio, eu gosto dele.

― Obrigado ― eu agradeci, virando meu corpo para a direção da voz dela.

― Você é cego, não é? ― disse outra menina, que aparentemente estava ao lado dela. ― Deve ser foda.

― Sim ― respondi, franzindo o cenho. Era tão óbvio assim?

Alguém mais atrás fez um comentário que não consegui ouvir e um grupo explodiu em risadas.

― Ah, meu Deus, calem a boca ― uma voz masculina ao meu lado falou alto, com raiva.

Um novo silêncio aterrorizante. Voltei o corpo pra frente, tentando não surtar com a quantidade de coisas que estavam acontecendo ao mesmo tempo.

― Esse é o Uriel ― a menina de trás cochichou no meu ouvido, novamente. ― Ele é um pouco amargo. As pessoas têm medo dele porque...

Antes que ela pudesse terminar de falar, Uriel a interrompeu.

― Porque eu fui preso.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por ler até aqui, de verdade. Espero que tenha gostado ♥



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