Nós e Eles escrita por Francisco


Capítulo 1
O que os olhos não vêem...


Notas iniciais do capítulo

Oi! Essa é a primeira história de romance que tenho coragem de postar. Espero que gostem ♥



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— Jesus Cristo, Thomas, você é gay — ele disse num tom engraçado, como se estivesse finalmente entendendo algum cálculo de matemática. — Você é muito gay!

Se antes eu tinha alguma dúvida, agora todas elas estavam sanadas pelo meu melhor amigo. É a primeira vez que tive coragem de dizer minha sexualidade em alto e bom som, mas continuava inseguro com o fato de que eu não podia realmente saber se meus pais ainda estavam dentro da minha casa ou me escutando.

É claro, eu tinha tomado a precaução de esperar eles saírem quinta à noite para jantar (como faziam toda quinta-feira), além de gritar alto – mas não o suficiente para acordar os vizinhos – e esperar eles me socorrerem (como sempre socorriam quando eu gritava e estavam em casa). Depois de gritar, me senti um idiota, mas tive a certeza de que não tinha ninguém em casa porque eu fui contemplado apenas por um miado confuso do meu gato.

“Mas pra quê isso tudo?”, você deve estar pensando. Eu sou cego. Completamente cego. E agora gay, cego e gay.

Encurtando a história, eu tive toxoplasmose ocular congênita e isso comprometeu minha visão quando criança e, bem, quase o casamento dos meus pais. Eles tinham que ter um vilão: Primeiro foi o gato (que pode ser hospedeiro do parasita), depois foi a caixa de areia (que pode conter o parasita), e por fim, foi o bife malpassado que ela comeu num domingo à tarde quando estava grávida. Em todas elas, meu pai culpava minha mãe de não ter sido responsável o suficiente. Minha mãe também se culpava. Eu nunca culpei ninguém.

Quer dizer, quem faria isso com a intenção de deixar o próprio filho cego? Poderia acontecer com qualquer um, quase todo mundo tem um gato, contato com caixa de areia ou come um bife malpassado domingo à tarde. Talvez fosse mais fácil pra eles acharem um culpado do que encararem a aleatoriedade das coisas. Não é que eu não fique puto às vezes com o que aconteceu, mas é que tá tudo bem. Meus pais não se separaram, eu tenho uma casa decente e ajustada às minhas necessidades, além de um amigo bem legal. Tá tudo bem.

Ah, o gato tá vivo, miando toda vez que grito. Nunca consideramos abandonar ou sacrificar. Meu pai só não conversa muito com ele e minha mãe ainda faz vozes fofas quando o vê.

— Você tem certeza que aquele não tem nenhuma babá eletrônica no meu quarto, certo? — eu tinha que ter certeza.

— Tão certo quanto o dia — ele confirmou. — Eu não vou fazer nenhum discurso ou coisa assim porque é algo bobo. Quando se sentir mais confortável, eu vou querer tirar algumas dúvidas porque nunca tive um amigo gay.

Se tinha uma coisa que meu melhor amigo era bom, era em ser direto.

— Ok.

— E você vai ter que contar pros seus pais. Você sabe.

— Eu sei. Mas não agora.

— Então é nosso segredo, meu camarada. O importante é que você se aceitou — ele me deu um tapa forte nas costas, essa era a maneira dele de ser carinhoso. 

Meus pais costumavam deixar babás eletrônicas em todo cômodo quando eu era criança, porque se eu precisasse de alguma coisa urgente, era só falar bem alto que eles escutavam quando estavam na rua. Era nossa maneira de manter a segurança e despreocupação. A adolescência me fez guardar as babás eletrônicas do meu quarto e banheiro em um ato que eu achava que fosse rebelde, mas meus pais foram bem legais e entenderam. Com 16 anos, eu poderia andar até a sala ou cozinha e chamar por eles se precisasse.

Eu sentei na minha cama e senti Serafim sentado ao meu lado. Serafim era meu melhor amigo, não o gato (embora eu ainda ache que Serafim é mais nome de gato do que de gente). Nós somos amigos desde que eu ainda tinha um pouco de visão. Ele acompanhou minha transição à cegueira completa e ajudou a me adaptar. Serafim era três mais velho, três vezes mais rico e três vezes mais bonito. Ele morava na vizinhança, então inevitavelmente ouvi os fofoqueiros da minha rua falarem que o pai dele tinha conseguido algo surpreendente com as novas ações de não-sei-o-quê ontem. Até onde eu entendia, o pai dele conseguia dinheiro trabalhando em casa como corretor de ações ou algo do gênero.

A mãe de Serafim tinha morrido há quase oito anos, pouco antes deles enriquecerem. Eles não queriam se mudar, porque segundo ele, o pai ainda tinha muitas memórias dela ligadas à casa. Eles só melhoravam a residência, com uma piscina, carros bonitos, segurança, jardim grande e cheio de flores. Daisy, a mãe dele, era um assunto proibido, ele odiava falar sobre ela, e eu também não gostava muito de perguntar. Eu lembrava um pouco das flores brancas no dia em que ela morreu. Hoje, eu sinto o cheiro delas melhor que todo mundo.

— Como está a sua namorada? — eu perguntei, casualmente.

— Quer saber se eu estou livre pra namorarmos? — pude o imaginar sorrindo.

— Não, Serafim, é porque... Bom, ela é secretária da escola. Aquela escola.

“Aquela escola” era a primeira escola que iria começar a aceitar cegos da região. Desde criança eu estudava em casa, nunca foi esquisito porque meus pais faziam questão de meus professores serem experientes (palavra que meu pai usava para substituir o termo “velhos”) e muito inteligentes.

— Você foi aceito? — Serafim deu um tapa nas minhas costas que me fez tossir — Caralho, é muita informação de uma vez.

— É, eu vou ser o aluno experimental.

— Eu posso te levar, cara. Eu trabalho perto dessa escola.

— Não sei se minha mãe gostaria muito disso — eu sorri.

— Por isso essa blusa com gravatinha... — ele levantou e andou até onde eu sabia que ficava meu armário — E esse coletinho. Sabia que eu conhecia essas cores de algum lugar. Nem está tão frio assim, sabe?

— Minha mãe me obrigou. Ela disse pra usar o conjunto do uniforme completo.

— Ah, a mamãe disse.

Ele riu e eu levantei, para empurrar a cara dele. Eu gostava de empurrar a cara de Serafim porque ele só me deixava tocar no rosto dele assim. É através do tato que um cego sabe como você se parece, mais ou menos. Lembrava de Serafim como uma criança mal-humorada, mas extremamente bonita, tanto que seus pais tinham vários quadros de fotos dele espalhadas pela casa. Eu sabia que ele era do tipo James Dean pelo seu cheiro de cigarro e textura de jaqueta de couro preta.

— Quando você começa?

— Amanhã. Por que você disse gravatinha e coletinho?

— Quem começa a ir pras aulas em uma sexta-feira?

— Bem, eu. Por que os diminutivos?

— Certo... — ele fez um silêncio. — É porque você é baixinho e magrinho.

— Eu tô... — me senti meio envergonhado ao lembrar que eu não conhecia ninguém lá além da namorada do meu melhor amigo — Sei lá. Eu vou ser o garoto cego. Vocês estão acostumados porque me conhecem desde sempre, mas lá é diferente.

O silêncio de Serafim só podia significar das duas uma: ou ele estava planejando algo idiota ou estava no celular.

— Se você estiver usando o celular ou tirando foto minha eu te mato.

— Não é isso. Estou avisando que vou chegar um pouco atrasado amanhã no trabalho.

— Por quê?

— Porque vou te levar pra escola. Digo, dentro dela — eu ia falar algo, mas ele me interrompeu — Não adianta. Eu vou.

— Mas...

— Thomas, diz pros seus pais que um Mustang GT premium conversível preto estará te esperando amanhã às 6:30. Se você não aparecer na hora combinada, eu conto que você quebrou o vaso preferido da sua mãe e mostro onde estão os cacos que eu escondi. Não, eu não joguei fora. O nome disso é suborno, Thomas.

— Cara, meus pais... — eu disse rindo, nervoso. Meus pais tinham medo de Serafim porque ele não tinha medo de nada. — A gente nem sabe o que é um Mustang.

— Às 6:30 — ele disse e ouvi sua voz se distanciando e a porta batendo.

Ele tinha ido embora, me deixando sozinho com o gato e minhas inseguranças.  


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Notas finais do capítulo

Obrigado por chegar até aqui. Sério. Você é incrível.



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