Nós e Eles escrita por Francisco


Capítulo 3
A curiosidade talvez mate o gato


Notas iniciais do capítulo

Oi! Eu fiz esse capítulo com muito cuidado e carinho, então eu espero de verdade que você ache que a história tá num ritmo legal. Se tiver alguma correção, ideia ou algo do gênero, por favor, é só falar! Obrigado por estar aqui ♥



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Há algo sobre o silêncio de vozes que me encanta e assusta ao mesmo tempo. Quando se calam, eu consigo ouvir coisas mínimas com uma precisão assombrosa: respiração ofegante, cigarras em algum lugar lá fora, o barulho do motor do ventilador. Eu conseguia também perceber vibrações e, nesse momento, eu sabia que todos olhavam para o Uriel. Havia um desconforto em meu estômago que não era apenas em função da bebida que Serafim havia me dado alguns minutos atrás.

Eu não sabia o porquê de Uriel ter falado isso tão claramente. Também não entendia como alguém podia ser tão calmo depois de ter dito algo absurdo, porque eu o ouvi bocejar suavemente, como se nada tivesse acontecido. Deus, eu queria muito poder ver a expressão dele. O silêncio quebrou quando alguém abriu a porta e eu soube que era a professora. Ela me apresentou, explicou como as aulas seriam adaptadas pra mim e todo o padrão. Pouco prestei atenção nas aulas posteriores, mas descobri que o nome da menina sentada atrás de mim era Lina.

No intervalo, eu a chamei antes que ela pudesse se levantar pra ir até o refeitório. Lina e eu decidimos ir até alguma lanchonete, ela gentilmente me acompanhou, segurando meu braço. Eu estava muito curioso sobre Uriel, mas seria falta de educação perguntar só dele e usá-la como meus olhos, por isso, eu decidi fazer um interrogatório sobre a vida dela (e ela sobre a minha) durante o intervalo.

Lina também tinha 16 anos, era do signo de câncer e morava literalmente do lado da escola. Sua mãe era professora de português do ensino fundamental, por isso, ela tinha uma bolsa especial do colégio. Tinha acabado um namoro recentemente e suas maiores críticas à escola eram que: a) não tinha ar-condicionado e b) a quadra de educação física era pequena demais. “Pra onde vai todo nosso dinheiro?” ela se questionava. No geral, ela parecia uma menina bem doce, que mal perguntou sobre minha cegueira ou algo constrangedor. As perguntas de Lina eram do tipo “você prefere doce ou salgado?” e “qual sua música preferida?”.

Quando finalmente tivemos a chance de comer batata-frita sentados em um banco largo perto de uma árvore, eu sabia que já era quase o fim do intervalo porque Lina tinha dito pra comer rápido. A área aberta da escola era bem agradável, e mesmo que eu pudesse sentir o vento cada vez mais frio, respirar o ar fresco sem muita gente por perto era revigorante. Lina disse que tinham lanchonetes distribuídas do lado de dentro, e que poderia me acompanhar toda vez que eu quisesse comer algo.   

 ― Thomas, está tudo bem? ― Lina disse, de boca cheia ―Você parece distraído.

― Ah, é que... ― cocei a bochecha ― O que aconteceu com Uriel?

― Ninguém sabe exatamente além da diretora, mas não foi tão sério porque ele continua nessa escola ― a voz dela ficou mais baixa. ― Aconteceu há meses atrás, ele simplesmente sumiu e esses rumores surgiram do nada, mas foi verdade. Ele foi preso mesmo, mas acho que por pouco tempo. Ele é menor de idade, né? Sei lá. Uriel voltou a estudar nessa semana, igual a você.

O assunto parecia tenso demais e eu tive medo de que ele estivesse escutando de algum lugar.

― Como... ― eu senti meu rosto ficando quente. ― Como você é, fisicamente? Desculpe, eu sou muito curioso.

― Puxa, eu esqueci desse detalhe ― ela riu. ― Eu tenho o cabelo pintado de vermelho e sou branca. Meu cabelo tá uma merda por causa da descoloração, toca só pra você ver.

Ela tinha razão. O cabelo dela parecia uma palha de aço, do couro cabeludo até o fim do fio. Não devia ser fácil hidratar cabelos coloridos, eu não fazia ideia do processo, então apenas sorri e usei a ponta dos dedos pra tatear o rosto dela delicadamente.

― Tudo bem se eu tocar seu rosto?

― Claro ― ela continuava mastigando.

O nariz dela era fino e tinha uma pequena calosidade no meio. As sobrancelhas eram grossas, pareciam bem desenhadas. Queixo fino. Lina com certeza era uma menina bonita e diferente. Quando usei o dedão pra tocar os lábios dela, era deu um beijinho.

― Ops, força do hábito ― ela disse de forma engraçada, como se estivesse sorrindo.

Eu sorri também, apesar de estar um pouco envergonhado.

― Como o Uriel é? ― perguntei, casualmente.

― Bem... Ele é... Normal, eu acho. Ele é bem forte, mas não tipo, muito musculoso. Teve um dia que a gente estava jogando vôlei na educação física e ele bateu tão forte na bola que o menino que tentou pegar quase deslocou o pulso. A aparência dele é... Bom, ele não é muito popular agora, mas não é feio. As meninas costumavam achar ele bonito antes.

― E por causa dessa coisa de meses atrás não acham mais?

― Bom, é que ele mudou...

O sinal tocou na hora em que eu sabia que ela iria falar algo importante. Nós andamos calmamente de volta pra sala de aula e o dia seguiu sem maiores surpresas ou grandes revelações. Matemática, português e literatura. Nenhum dos professores dessas matérias me impressionou, mas eram todos muito educados e didáticos.

Lina disse que segunda-feira iríamos jogar futebol. Isso mesmo, no plural. Resolvi não estragar a animação dela ao dizer que era impossível pra mim, então a deixei ficar falando sobre esportes e quadras toda vez que tinha a chance de não interromper a aula.

No fim das aulas, por volta das 13:00, tudo aconteceu muito rápido. Lina me acompanhou até o portão de saída do lado de fora do colégio, por meio da multidão, se despediu e foi embora. As pessoas pareciam desesperadas pra ir pra casa, correndo, e eu entendia o porquê. Senti o cheiro da chuva. Algumas gotas começaram a cair na minha cabeça e eu não sabia bem o quê fazer, as pessoas esbarravam em mim, indo de um lado para o outro e eu não sabia se podia voltar pra algum lugar com teto ou se deveria estar naquele ponto específico onde meus pais pediram pra esperar.

Se eu voltasse, era capaz de me perder, porque tinham muitas pessoas. Se eu ficasse parado por muito tempo, ficaria completamente molhado e provavelmente pegaria uma baita gripe. Resolvi ficar parado, meus pais não deveriam demorar muito.

Decisão errada, porque a chuva logo se transformou em uma tempestade grossa e furiosa. Eu já estava tão encharcado que podia sentir a água entrando por dentro da minha roupa. Pedi mentalmente pra Deus que meus pais chegassem logo, já que eu não conseguia ouvir mais ninguém por perto.

Deus foi rápido, porque as gotas pararam de cair em mim e passaram a ser bloqueadas, eu conseguia as ouvir em contato com o que devia ser um guarda-chuva.

― Te ver no meio da tempestade sozinho é uma cena bem triste ― a voz de Uriel estava próxima o suficiente pra o ouvir claramente. ― Parece que você acabou de sair de um clipe de música deprimente.

Eu dei uma risada, apesar de Uriel parecer bastante sério.

― Eu sou meio deprimente às vezes. Obrigado pelo guarda-chuva.

Uriel não respondeu, mas ficou do meu lado por alguns longos minutos. Não muito perto, mas não muito longe, visto que eu podia sentir o cheiro dele. Cheirava a bebê, por algum motivo. Tinha aquele cheiro de colônia infantil, provavelmente da Johnson’s Baby. Eu achei isso engraçado, porque ele parecia bem mais alto que eu e a voz dele era grossa e séria, então eu sorri.

― Seus pais estão chegando, Thomas.

― Como você sabe? ― perguntei, confuso.

― Porque eles olhando pra mim como se eu fosse louco e pra você com preocupação. E sua mãe parece muito com você. Da próxima vez, não esquece de trazer um guarda-chuva.

Não tive tempo de responder ou agradecer de novo, Uriel sumiu da mesma forma que tinha aparecido. Minha mãe perguntou várias vezes se eu estava bem e se desculpou pelo atraso. Meu pai estava calado, mas me segurou pelo braço pra me guiar enquanto minha mãe se encolhia conosco para segurar o nosso guarda chuva.

― Quem era aquele garoto? ― minha mãe perguntou, cuidadosamente.

― Uriel. Ele é da minha turma.

― Que garoto simpático. Espero que ele não fique doente ― ela suspirou.

― Por quê? ― parei de andar.

― Porque ele segurou o casaco dele por cima de você e se molhou todo.

Meu queixo caiu um pouco. Eu não sabia que tipo de pessoa Uriel era. Ele foi preso, mas me protegeu da chuva. Quase deslocou o pulso de um garoto, mas cheira a bebê. Conhecê-lo melhor, agora, era definitivamente meu objetivo. 


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Notas finais do capítulo

Eu espero muito que você tenha gostado! Obrigado por chegar até aqui ♥



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