Vampires will never hurt you escrita por manasama677


Capítulo 4
Capítulo 4 - Martinellis




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Para manter uma linhagem de ótimos caçadores e exterminadores de vampiros, não basta ter habilidade e força, é necessário ter bons aliados e, lógico, uma isca que atraia a atenção dos inimigos. Os maiores requisitos para ser uma isca são: uma extraordinária frieza, beleza e juventude, pois tal tarefa exige muito do corpo e da mente. O corpo deve ser treinado para não se machucar em hipótese nenhuma, e a mente, para não enlouquecer diante de uma atividade tão degradante. Vale ressaltar que preparo físico não é o meu forte, e em situações de luta, sempre saio em desvantagem...Mas, de alguma forma que não compreendo, todos concordam que sou necessária, e eu sigo prestando novos serviços à família.

 

Meu nome é Helena, tenho cerca de dezesseis anos. Sou a isca à frente da família Lee Rush. Pelo que ouvi dizer, sou filha de uma ex-caçadora de vampiros que se apaixonou por um aventureiro. Até os dez anos de idade, vivi em companhia dela...e de seus muitos fregueses. Isso, até o dia em que ela fora acamada por uma doença misteriosa e faleceu, me deixando completamente sozinha. Após uns dois anos em um orfanato, recebi uma visita misteriosa. Era um senhor que se apresentou como sendo meu tio por parte de mãe. Seu nome era Karl Lee Rush. Eu não o conhecia, obviamente, e ele me explicou que ele e minha mãe haviam perdido o contato desde antes do meu nascimento.

 

Uma vez introduzida no seio da casa dos Lee Rush, fui apresentada a parentes como Angela, Bernard, Michel e Anthony, filhos de meu tio. Como os outros dois não foram mencionados antes, vocês devem ter entendido que se tratam de pessoas falecidas. Eles foram mortos meses antes do confronto que culminou na morte de meu noivo. Richard era um jovem e promissor caçador, e todos diziam que ele era o mais forte do seu clã, Van Gloire. Ele se juntou aos Lee Rush após a gripe dizimar toda sua família. Apesar de eu ser, desde aquela época, a isca dos Lee Rush, ele me pediu em casamento. Achei que estivesse fazendo troça, mas mesmo assim acabei aceitando. Diariamente, ele tinha que reafirmar a sinceridade de seus sentimentos, pois eu convivia com o pesadelo de ser abandonada, devido às duras exigências financeiras de meu tio, para me libertar. Ele não hesitou nem por um momento em concordar com todo aquele absurdo. Eu devo a ele muito mais do que minha gratidão; devo literalmente a ele o fato de estar viva hoje.

 

Depois de sua morte, mudei completamente a forma de ver minha atividade. Se antes eu achava este um trabalho sujo, a continuação da rotina que minha mãe me infligia, hoje vejo a sedução como forma de obter tudo o que desejo, tanto dos homens quanto dos monstros. Os meios para atingir meus objetivos não me importavam, até o momento em que ele apareceu e me tratou de forma diferente de todos os outros. Se Arthur Seingalt fosse como os vampiros que o antecederam, eu não estaria desse jeito mais uma vez...

 

Richard, por favor, me ajude!

 

(...)

O viajante já havia tirado o colete e desapertado o cinto. Estava deitado no conforto de sua esteira de madeira apenas de ceroula e camisão quando escutou a porta ranger. Uma lamparina a seu lado deixava uma leve claridade no ambiente, o que o permitiu entrever a figura formosa de uma ninfa se aproximando.

— Helena? E você?

Sem nada dizer, ela se sentou na ponta da cama do desconhecido, já desatando o laço frontal de sua camisola.

— Então, vieste mesmo...!

— Preciso esquecer este dia horrível - ela disse em resposta, mas tão baixinho que ele não chegou a escutar propriamente o que ela dizia. Também não parecia interessado nisso - Venha...

Helena afastou os joelhos e levantou a barra do grande vestido de dormir. Suas coxas magras foram agarradas com força pelo homem, que, no ímpeto de puxá-la para si, a derrubou na cama com a cabeça para fora, quase tocando o chão. A sensação asquerosa e familiar daquela barba de adulto passeando por seu pescoço tenro a deixou nauseada, mas a menina estava disposta a driblar o sacrossanto lar das impressões pessoais para distrair, nem que fosse apenas seu corpo, das ideias envolvendo um certo vampiro dos olhos amarelos. A boca do desconhecido desceu para os seus seios, que ganharam beliscões, mordidas, lambidas, sugadas e novas marcas. Em seguida, o hóspede rumou para o seu ventre, que fora abençoado com carícias e preliminares incomuns à casualidade e à pressa. Diferente do que era habitual, Helena não o correspondia. Talvez nem tivesse se dado conta disso se o outro, preocupado com o seu prazer, não tivesse perguntado se ela estava com algum problema.

— Ah...o quê? - ela parecia despertar de um sonho, ou melhor, de um pesadelo.

— Está tudo bem? Seu corpo todo treme.

— Não há problema...problema algum. Por que a pergunta? Esqueça, apenas continue. Continue - ela insistiu, empurrando a cabeça dele mais para baixo.

O homem prontamente correspondeu aos seus anseios, enquanto Helena implorava em pensamento que seu corpo rígido ardesse como nos velhos tempos. E se o vampiro fosse vendido ao colecionador? Quando fosse amanhã, naquele mesmo horário, ele não estaria mais neste mundo! Sem perceber, suas mãos se uniam em oração para pedir pela vida da miserável criatura, cujo destino ela não teve sequer coragem de escutar.

(...)

Arthur Seingalt, amarrado, era colocado numa carruagem gradeada própria para transportar prisioneiros. Enquanto Helena e seu companheiro estavam bem distraídos no quarto, toda a estalagem acompanhava o traslado do monstro, que havia sido vendido para aquele que ela mais temia. Um dos assistentes do colecionador amarrava um saco de pano ao redor da cabeça do sanguessuga e, quando perguntado do porquê de estar fazendo isso, ele foi claro:

— Pelo que estudei a respeito dos meio-vampiros, eles se transformam em criaturas completas na primeira noite de lua cheia, mais ou menos entre zero horas e a hora morta. É nessa única noite que saem para se alimentar de sangue. Olhem para o céu agora - o olhar assombrado de todos acompanhou o dedo do estudioso, que apontava para cima.

A lua cheia redonda e vibrante clareava os picos das construções e os rostos empalidecidos da comunidade sob sua luz. O colecionador de raridades tirou o seu relógio do bolso e disse:

— Então, temos quinze minutos até a transformação.

 

Esperaram os tais quinze minutos, e nada aconteceu. O meio vampiro seguiu inútil, debatendo-se e choramingando. Arrancaram-lhe as roupas, para aumentar sua humilhação, mas também para evitar que ele fugisse.

 

— Se estiver nu, não terá coragem de escapar. Se tiver, logo será apreendido por vadiagem. E, se não for, todos estarão atentos à figura de um homem desnudo pela metrópole - o assistente do colecionador explicou à multidão cética os seus motivos.

 

(Quase envergonhado de sua teoria sem certificação, ele rezava internamente para que o monstro se transformasse logo e matasse umas três pessoas - ele não, claro - para que não fosse chamado de mentiroso. E bom, se nada acontecesse, sua ideia era dizer que o vampiro estava nu e encabulado demais para promover qualquer vilania.)

 

— Bem pensado - disse um dos hóspedes da estalagem, cuja pessoa não cabe muito especular a origem - O monstro tinha boas peças no guarda-roupa. Vejam este gibão! E o casaco!

— Nem pense nisso! - o avarento colecionador de antiguidades tomou as roupas de suas mãos - Poderei comercializá-las por um alto valor se disser que essas vestimentas pertenceram a um vampiro! Ou as manterei comigo para, mediante ingresso, deixar que um público pagante aprecie as vestes de um monstro.

 

Margarida, a menina do circo, se aproximou de Arthur Seingalt e tomou sua mão discretamente através da grade.

 

— Não fique com medo - disse, de forma bondosa - Vai ficar tudo bem.

— Afaste-se - Bernard a repreendeu. Se o monstro avançar, que será de ti?

— Parece-me que o empregado do senhor colecionador se enganou. Creio que ele não passará disso aí.

— Ora, menina! Deixe de dizer tonterias! Ele há de ouvi-la!

— Pouco me importa! - a artista riu divertidamente.

 

Angela, a alguns passos dos dois, comentou com Vincent, seu noivo:

 

— Olha que primor de nora Bernard arruma a nosso pai!

— Ele só estão conversando, minha noiva. Contenha-se.

— "Conversando" com aquele tipo de mulher? Bernard! - ela chamou, energicamente, como se falasse com um irmão mais novo.

— Solte-me! Raios! - Margarida exclamou, aborrecida, para o rapaz que a arrastava pelo braço - Como és truculento! Machucaste-me o pulso! Grosseirão!

— Cuide desta sua filha! - Bernard empurrou Margarida no peito do pai da moça, ignorando a irmã completamente.

— Mas o que há contigo, rapaz?

— Bernard! Venha aqui!

— O que há, por que gritas como uma mentecapta?

— O que falavas com aquela lá?

— Que te importa? - rosnou o outro, mal humorado.

 

Seingalt, a pessoa que cada movimento era acompanhado de imenso sobressalto em todos os que o miravam, apesar de todo sofrimento e humilhação, ignorava o que os demais falavam a seu respeito. Não que ele não pudesse ouvi-los - a audição apurada era uma de suas características - mas sua cabeça estava em outro lugar. Pensava que, se não estivesse com as mãos presas ao telhado do porão, teria certamente ganhado os lábios da maldita que lhe sorria com tanto desdém...sim, do mesmo modo que fizera o outro...! A consciência de que Helena havia sido tocada por outro o feria de morte, mas em seu peito não havia espaço para o rancor, apenas para o recalcar da dura realidade: ela não estava ali! Ele podia ouvir todas as vozes e sentir todos os cheiros, mas nenhum era o dela! Quando a mão aveludada de Margarida tocou na dele, ele tinha esperança de que fosse a pequena rapariga de cabelos negros, mas nada! Era a mulher de cachos e cerdas vermelhas, a artista do circo, com seu cheiro de pó de arroz misturado com aroma de rosas.

Arthur, na escuridão de seu castigo, refletia que, independente do que ele sentisse, Helena não o amaria de volta, pois sua função exigia nunca se apaixonar. O fato de ela não estar procurando sequer saber o que acontecia com ele revelava muito sobre sua falta de interesse e indiferença. E era nisso que ele estava pensando até o momento em que, enfim, perdeu a consciência.

(...)

Depois de um curto momento de prazer, o viajante desconhecido começava a se arrumar, uma forma indireta de expulsar Helena de volta para os seus aposentos.

— Está tarde. É melhor voltar, antes que deem pela tua falta.

— Eu realmente não me importo com o que pensam ou deixam de pensar.

— É verdade que não encontras problema nenhum nisto?

— Eu sou livre para fazer o que bem entender. Alguém deve ter dito isto para o senhor. Eu sou a isca, o mais bem sucedido instrumento de caça da família. Existo para isso; se há uma regra sobre a minha cabeça é a de não poder gerar - Helena deu despreocupadamente de ombros.

— E o que tens feito para isso? - o homem indagou, meio temeroso de ser pai do filho de uma perdida aleatória como ela.

— Eu me cuido - respondeu a ninfeta, deixando margem à infinitude da imaginação do outro - Uma vez - Helena prosseguiu, mudando de assunto - Angela me disse que não sabia como eu poderia ser considerada por gente tão importante sem fazer nada de concreto. Eu lhe disse que não sabia do que ela estava falando, mas menti. Por mais que pareça simples, não há na minha família ou em qualquer região próxima alguém que se disponha a isso.

— Eu creio que deve ser difícil.

— "Difícil" o quê?

— O que fazes.

— Por quê?

— Se dar dessa forma...aos monstros...a qualquer homem desconhecido. Isto parece difícil.

— O senhor tem alguma dificuldade em me possuir esta noite? Horas atrás, também não o conhecia.

— Por que teria? Basta olhar para a senhorita para que ideias envolvendo passar a noite toda nesta cama venham à minha mente.

— Temos desejos semelhantes, senhor viajante. Arrisco que a maioria das mulheres também, mas não o podem dizer.

— Deveriam.

— Os desejos femininos são criminalmente punidos, senhor - disse Helena, a beijá-lo.

— És uma mulher de sorte, então.

O hóspede pensava como era possível aquela menina pertencer e ao mesmo tempo não pertencer a ele, como era inconcebível que ela e a insossa noiva de seu amigo Vincent fossem mesmo primas! Ele resolveu logo pôr fim às suas últimas reservas e usufruir da liberdade que a libertina lhe garantira. Helena era fria, sim, mas ao mesmo tempo linda. Tinha uma graça soturna e triste que parecia absorver a consciência dos homens. Era frágil, ferida, e inspirava cuidados. Ignorar sua evidente falta de amor - a si mesma e aos outros - era a condição que os homens tinham que exigir de si mesmos para possuí-la, tê-la de forma livre, sem amarras, sem propriedade, e por isso mesmo de forma tão feliz e dolorosa. Quem tocava na isca dos Lee Rush não poderia deixar de lamentar a cruel realidade de não ser seu dono definitivo; Arthur Seingalt conhecia bem essa dor, agora.

O viajante não teve tempo, porém, de voltar a gozar com aquele corpo. Helena e ele foram de uma vez só arrancados de seu propósito: lá fora estourava grande alarde, com o previsível anúncio de que a fera havia escapado.

 

— O meia-espécie fugiu? - Helena inquiriu, com seu cabelo bagunçado e vestimentas do avesso.

 

Angela, que não deixou de observar seu desalinho, ansiou por fazer um comentário ferino, mas decidiu que não convinha naquele momento. O homem que acompanhava Helena, na outra ponta da casa, tentava não ser visto amarrando os cordões que atavam seu cinto.

 

— Ainda é noite, e ele não deve estar muito longe daqui. Não se esqueçam de que estava ferido.

— Mal dá para acreditar. Ele estava bem em nossas mãos! - Helena queixou-se, sem mencionar culpados, mas alguém entendeu o que ela quis insinuar. E esse alguém era o tio.

— O que queres dizer com isso? Ontem não foste tu a deixá-lo escapar? Do que estás a te lamentar? - e, mirando os demais, propôs: - Precisaremos reunir todos os nossos guerreiros e os homens fortes que por aqui estiverem! Angela, Bernard, Vincent! Peguem suas armas! Teremos que ser cautelosos, pois disse o assistente do caçador, e estava certo, que a besta arrebentaria as grades como se fossem linhas de tear!

 

Helena suspirou, e tentou aproveitar a quantidade expressiva de curiosos acompanhando a conversa para se esconder no meio deles, mas a prima, que não lhe tirava os olhos de cima, a delatou:

 

— Helena o capturou sozinha da outra vez, não é?

 

A caçadora lhe devolveu um olhar voraz.

 

— Eu disse algo errado? - vangloriou-se, cinicamente.

— Helena, acompanhe-nos - determinou o patriarca dos Lee Rush.

 

Sem nada dizer, ela os seguiu, muito contrariada. O pequeno exército que se formou se dividiu em três grupos. Alguns seguiram a dica que Helena deu mais cedo, sobre ir procurar o monstro no cemitério, onde ela declarou tê-lo encontrado; outra patrulha seguiu o relato de um transeunte que disse ter visto um jovem sem roupas ganhando o grande centro. Por fim, Helena, o tio e a prima ganharam uma trilha dentro de uma pequena formação verde, com esperanças de que o morto vivo tivesse se escondido lá. Ela torcia, na realidade, para que qualquer uma das outras formações encontrassem a fera, não eles.

 

— Esta deve ser a hora que a mocinha indefesa entra na floresta e torce o pé - Helena disse em tom sarcástico, ao constatar que a trilha que eles seguiam se afunilou de modo a não deixar mais passar a carruagem.

— Cuide-se - foi tudo o que seu tio disse.

— Você pretende mesmo fazer isso? - Angela parecia achar a ideia absurda - Por que temos que confiar numa pessoa tão ambígua, meu pai?

— É óbvio que devemos nos dividir, filha. Fico com medo de arriscar sua vida, e há coisas que você não pode fazer caso queira se salvar...

— Do que está falando, papai?

— De nada. Não se preocupe com Helena, ela ficará bem. Nós só precisamos estar a postos para quando seus truques funcionarem.

 

Helena desceu da carruagem balançando a cabeça, enojada daquela conversa. Enquanto ela se afundava cada vez mais, a honra da outra se mantinha intacta às custas de seu sacrifício. Era graças a ela, Helena, que Angela podia destilar sua soberba! Se ela não existisse, era provável que o velho Karl transformasse a própria filha em isca. A frase "há coisas que você não pode fazer caso queira se salvar" martelava em sua cabeça. Ela começava a pensar como seria uma realidade onde ela não precisasse fazer tudo o que fazia. Seria isso possível? Depois de os homens de sua mãe, os garotos do colégio vizinho e até mesmo o reverendo da instituição religiosa que a acolhia passarem sobre ela, poderia aquela menina voltar a ser pura de alguma forma? Ela se sentia, sobretudo, culpada por ter que ajudar na caça de seres tão parecidos com os humanos. Mais do que impura, ela se via como uma assassina.

Helena avançou para dentro da mata. Trazia uma lamparina nas mãos e um punhal atado à cintura, nada mais. Em poucos passos, percebeu que estava completamente sozinha. Não conseguia ouvir o tio e a prima, e num dado momento, tão intenso foi seu pavor que ela decidiu voltar, contrariando tudo o que tinha pensado em fazer antes. Sua tranquilidade, que até ali já estava em falta, evaporou quando ela começou a escutar algo se mexendo por entre os ramos das plantas. A sua respiração ofegante se destacava pelo ambiente; era inevitável se fazer ouvir. Algo havia em torno dela, à frente, atrás, ela não sabia dizer. Sentia uma presença quase onipotente contornando-a como um escudo; sabia que aquilo não era humano.

 

— Apareça, vampiro...Apareça...Tem algo que eu quero te mostrar...! Eu não vou machucar você... - dizia ela, com a mão apertando o punhal que trazia consigo.

 

Mais uma vez, ela pôde escutar o ruído de folhas, mas, muito mais do que ouvir, ela viu a causa dos ruídos. O corpo de um homem sem cabeça sucumbiu a uns dois metros dela, ajoelhado e nu, depois emborcou para a frente. O susto foi tão grande que Helena deixou a lamparina cair. Ao tentar dar passos para trás, a caçadora acabou se esborrachando no chão, mas não ficou ali nem por um segundo. Imediatamente, ela se levantou e, sem conseguir gritar, tentou correr. Ela não sabia disso, mas avançou ainda mais profundamente em direção ao desconhecido. Após vários minutos correndo e tropeçando pelo caminho, Helena se escondeu atrás de uma frondosa árvore e olhou para trás, para verificar se não era seguida. Algo semelhante a sussurros coletivos infestava todo o lugar. A assustada menina já não sabia se estava tendo alucinações ou se era real o que estava acontecendo. Ouvira falar muitas histórias fantasiosas sobre aquela mata: pessoas que viam parentes mortos, malfeitores que arrastavam qualquer criança que achassem brincando ali perto, choro de crianças indesejadas e precocemente expelidas por alguma miserável que não podia abandonar o serviço...e ela agora podia acrescentar mais esse feito ao rol dos absurdos: ver um homem sem cabeça.

 

— Quem está aí? - perguntou mais uma vez, a voz variando em uns três tons - Por que se esconde? Apareça!

 

Helena estendeu a lâmina brilhante diante dos olhos. Pelas frestas da folhagem acima de sua cabeça, a lua liberou um pequeno fio de luz que refletia em sua arma. Ocorreu-lhe de novo aquela infeliz ideia que ela, sem pensar duas vezes, pôs em prática: atrair a criatura pelo cheiro do seu sangue. Uma vez perdida dos outros, ela já poderia se dar por morta; estava apenas adiantando o processo. Um pequeno corte no dedo médio esquerdo expeliu o suficiente para algumas gotas. Então ela escutou um som familiar e aterrorizante, que era algo entre o bocejo de um humano e o uivo de um lobo, seguido do silvo de uma cobra. Quando voltou o rosto para o lado, reconheceu os mesmos faróis amarelos que viu no porão, na companhia do viajante, só que agora eles pareciam ainda mais ferozes, luminosos e ameaçadores. E viu Arthur Seingalt a alguns metros dela, mas ele não a enxergava. Parecia apenas procurá-la.

 

— Sangue...eu consigo sentir o cheiro do seu sangue.

 

A sobrinha de Karl Lee Rush percebeu uma coisa curiosa: o vampiro conseguia farejar o seu sangue, mas não vê-la.

 

Helena estava certa de que a morte seria seu único destino naquela situação, mas, mais uma vez, sua vontade de viver se sobrepôs ao luto, e ela escondeu o dedo que havia ferido por entre os lábios, desejando que aquilo fosse o suficiente para ocultar o cheiro do seu sangue.

 

— Você não vai conseguir fugir...não depois do que viu - o vampiro ameaçava, entredentes.

 

Seingalt passava os olhos em volta de forma ameaçadora enquanto a caçadora até prendia a respiração para não ser notada. O esforço fora inútil: ao estender a mão para o lado direito, o vampiro conseguiu alcançar seu busto.

 

— Encontrei você.

 

(...)

 

— Helena não deu sinal até agora - disse Karl Lee Rush, olhando para o relógio de bolso que havia sido de seu pai, o também caçador de vampiros Tito Lee Rush.

— Creio que nos trapaceia; a indolente deve ter voltado para a trilha segura e vai dizer que nada encontrou! - objetou Angela.

— Ou pode estar se escondendo do monstro neste exato momento. Uma vez traído, ele não cederá mais às seduções de Helena. Terá a menina que ter cautela.

— Se estiver viva... - Angela disse venenosamente, alinhando as luvas.

— Se ela estivesse em apuros, já teria gritado - o caçador deu de ombros - Helena conhece a trilha como a palma da mão, não cometeria a tonteria de se perder. Se nada sinalizou, está tudo bem com ela, então melhor eu me juntar aos outros; podem estar precisando de reforços.

— Vasculhamos todas as redondezas e nada da besta! - bradou um caçador de outra patrulha, ao alcançá-los até onde era possível andar de carroça. Encontraste alguma pista do monstro, mestre Karl?

— Nada, Valentim. Helena partiu sozinha por esta trilha, mas não manifestou qualquer sinal de que está em perigo.

— Devemos segui-la?

— Temo que nossa dedicação em segui-la acabe por nos fazer tomar a direção errada; e se o monstro estiver em outro lugar?

— Ela não vai se perder?

— Helena leva consigo uma lamparina.

 

O caçador olhou para o tio de Helena abismado, como se imaginasse um cenário real de luta onde uma menina com uma lamparina se deparasse com um vampiro completo.

 

(...)

 

— Saia de perto de mim! - Helena pediu, empurrando a mão de Arthur de cima de seu peito. Aproveitou o pouco espaço que conseguiu com isso e disparou na carreira. Seu vestido engatava em troncos e galhos e em cada parte do trajeto, sua saia perdia um pedaço, mas ela seguia correndo aos pulos e tropeços mesmo assim. Helena não escutou em nenhum momento passos em seu encalço, mas quando ela menos esperava a mão do vampiro circulou seu braço. Seu pavor foi tão grande que ela gritaria, se a mão dele não tivesse coberto sua boca.

 

— Boa noite, senhorita.

 

Sem nada dizer, apenas arfando de desespero, Helena sentiu a mão do vampiro descer da sua boca para o seu pescoço. Ele a agarrou por trás, e a mão do monstro contornava seu pescoço como uma coleira que aprisionava o corpo dela junto do dele. Olhando para o pulso dele, a caçadora notou que ele estava vestido, ainda que de forma rústica. Então ela percebeu que aquelas roupas que ele estava usando devem ter pertencido ao homem nu e sem cabeça que viu antes.

 

— Decepcionada? Eu sei, minhas mãos têm sangue...esta é a única forma de sobrevivermos neste mundo.

 

Helena nem se mexia de tanto medo.

 

— Por que tremes? Tens medo da morte? Viver uma vida tão curta e mísera a entristece? Basta uma palavra sua e eu posso entregá-la à eternidade...para que sejas livre de toda dor ou tristeza…

— Você faria isto por mim? - Helena não queria saber disso propriamente, e sim manter a boca dele falando e, de preferência, com suas presas bem longe do seu pescoço.

— Eu adoro você. Eu adoro seu sangue...eu quero beber você inteira.

O vampiro ia avançando em direção ao pescoço da jovem, mas ela não lhe deu tempo de abocanhá-la. Em vez disso, voltou-se para ele e tentou seduzi-lo com um beijo. Surpreendeu-se, porém, ao deparar-se com sua boca, que vinha lavada de sangue. Imediatamente, a moça recuou. Arthur tocou no queixo de Helena, e ela, enfeitiçada e sem poder reagir, apenas obedeceu o seu comando mudo, erguendo a cabeça para facilitar o acesso à sua carótida.

(...)

Não muito longe dali, um grupo de caçadores acabava de se deslocar do castelo dos Seingalts para a mata, um atalho para a parte urbana da cidade.

— É mesmo seguro entrar no covil das feras? - inquiriu um deles, falando sobre o plano de invadir o castelo pelos flancos, agora que já lhe conhecia a planta.

— Bem, seguro nunca é, mas o prêmio que ali se encontra vale por várias vidas...há uma bela dúzia de sanguessugas prontos a serem caçados! Encontremos alguns mercenários e criemos um grupo grande o bastante para que não precisemos arriscar nossos próprios pescoços - riu-se o homem do trocadilho, visto que os vampiros atacavam justamente essa parte do corpo - Afinal, foi desta forma que os Martinellis foram nomeados a mais competente família de caçadores de todo o mundo!

— Eu ouvi alguma coisa.

— Não brinque comigo, homem! Será um deles?

— Ali! - apontou o primeiro homem - Parece uma mulher! Usa vestido, pelo menos.

Era Helena. Arthur a encostava numa árvore e, com carícias arrepiantes, preparava o pescoço da vítima para uma mordida.

— Há um homem. Será um encontro às escondidas ou a moça se encontra em perigo? Poderá ser um dos monstros? Um violador? Um saqueador? Isso não importa! Como caçador, meu dever é ajudá-la e eu, Julius Martinelli, o maior guerreiro da Inglaterra, irei ajudá-la!

— Julius, cuidado! Se for um Seingalt, você não conseguirá detê-lo sozinho! Eu vou com você!

— "Cuidado" é até uma palavra ofensiva em se tratando de mim, mas se quer me dar cobertura, fique à vontade! Cerque-o pelos flancos, e eu o atacarei pelas costas!

O inconsciente de Helena visitou antigas recordações do noivo ao notar pequenas semelhanças entre Arthur e o assassino de seu noivo. O odor de sangue que ele tinha pelo queixo a recordou do último cheiro que sentiu ao tocar Richard, e de como desfalecera de sono com aquele cheiro ainda nas mãos. Estava acima de suas possibilidades se deixar corromper por uma aberração incapaz de lhe poupar a existência. Assim, ela o empurrou e correu com todas as forças de seu ser, abrindo caminho para que Martinelli o atacasse sem perigo de atingi-la.

— Vi que gostas de fugir...podemos brincar disso também - o jovem vampiro afirmou, soltando um riso alucinado. Helena estremeceu, mas seguiu fugindo.

Arthur deu apenas dois saltos na mata, alcançando em segundos os vários metros que Helena havia corrido. A caçadora tombou ao ver que tinha outras duas pessoas no caminho, mas no momento não conseguia identificar se eram aliados ou inimigos.

— Caçadores... - sibilou a fera.

 

Helena rapidamente voltou-se para onde estavam os adversários percebidos pelo monstro. Viu dois homens (pela velocidade de seus movimentos, humanos) se aproximando.

 

— Alvo identificado! Atacar! - um deles bradou.

 

E uma seta ganhou o ombro direito do vampiro.

 

— Maldição! - rosnou a criatura.

— Você está bem? - o outro homem perguntou a Helena, tocando-a no ombro.

 

Ela não sabia dizer se estava brava ou aliviada pela interferência daqueles caçadores. Queria desviar, até por questão de orgulho, da certeza sobre ser incapaz de ganhar uma luta corpo a corpo com um vampiro. Por mais que isso a contrariasse, no entanto, era graças aos intrometidos que estava viva.

 

— Ela não responde! Pode estar enfeitiçada pelo demônio!

 

Na verdade, ela só estava embasbacada demais para acreditar que alguém realmente apareceu ali.

 

— Eu estou bem! - Helena respondeu, muito mais irritada do que gostaria de parecer.

 

O homem olhou para ela como quem duvida, ao ver a boca cheia de sangue do vampiro.

 

— O sangue não é meu - a caçadora explicou.

 

Algo naquilo tudo a enfurecia, mas Helena não sabia dizer propriamente o quê. Só que sua irritação não era nada perto da de Arthur Seingalt, que arreganhava suas presas e soltava um rosnado de fera para os homens à sua frente.

 

— Parecia estar tendo problemas com esse frangote...Mas não fique preocupada! Nós, os Martinellis, chegamos para socorrê-la! - disse orgulhosamente o homem que se apresentou nesta história como Julius.

— Mal dá para acreditar que se trata de um deles - o outro caçador observou - Parece com um dos nossos; uma criança humana.

— É um belo rapaz e está entrando na puberdade. Podemos vendê-lo por um bom preço assim que o capturarmos!

— O que disse, verme? - Arthur se manifestou, e não parecia nem um pouco amigável.

 

Suas mãos fizeram a forma de garras. Considerando o quanto estavam tintas de sangue, poderiam elas ser a própria arma que decapitou o homem sem roupa que Helena vira mais cedo.

 

— Para trás, menina! - Julius colocou Helena atrás de si mesmo, o que a irritou demasiado, mas ela não disse nada - O monstro ainda pretende resistir? - ele perguntou, dirigindo-se ao jovem Seingalt. - Desista, estás diante de um Martinelli; isso significa mais do que estar morto para alguém como tu!

— Até quando pretendes ocultar teu medo debaixo desta falsa confiança? Terei eu que despedaçá-lo para acabar com semelhante empáfia? - Arthur não parecia temê-lo, apesar de estar ferido.

— O que dizes? Mal te colocas em pé! Fazes medo somente às meninas como esta, que escondida atrás de mim se encontra; aos homens, não és capaz de enfrentar!

— Pois o veremos.

— Se bem o conheço, és o mais jovem dos Seingalts. Um meio-vampiro, portanto. Antes que o sol desponte no céu, tu serás o que sempre foi, o mesmo e limitado meia-espécie! Teu curioso caso é conhecido por toda a região e por toda a comunidade caçadora. A não ser que desmoces, só encontrarás a completude nesta fase da lua - não é assim que funciona teu poder?

— Ora, ora...Vejo que conheces um pouco a respeito de minha condição. Mas isto poderá livrá-lo da morte certa?

— "Condição"...? É como descreves uma putana como tua mãe se colocar no leito de sanguessugas para gerar uma aberração como tu?

— Eu o farei engolir estas palavras! Prepare-se!

 

E o vampiro partiu na direção dos caçadores com toda sua velocidade. Martinelli rapidamente escapou da investida de Arthur, que não se abalou pelo imprevisto, apenas pisou no tronco da árvore onde por teoria ia dar de cara e pulou novamente na direção do caçador (que estava ocupado demais se vangloriando por ter conseguido desviar), desta vez acertando-lhe um chute impactante nas costelas. O homem caiu ao chão gritando de dor. Num movimento inumano, a aberração se postou por cima do homem derrubado, cravando seus ombros com as unhas longas e sibilando ao expor novamente as presas.

— O senhor terá o desprazer de saber o que acontece com quem se atreve a abrir a boca para falar de minha falecida mãe!

Mas Arthur também perdeu tempo falando demais. Antes que ele mostrasse para o que suas presas serviam, o homem que acompanhava Julius Martinelli o perfurou com uma arma comprida semelhante a um arpão; o vampiro agarrou a ferida no baixo ventre, enchendo a mão de sangue. Sob o olhar aterrado do adversário, o jovem Seingalt removeu a arma de si mesmo e levantou, lançando-a no chão.

— Pelo atrevimento, você será o primeiro a morrer - disse, caminhando na direção do homem.

Helena não estava disposta a ver ninguém morto ali, mas não sabia exatamente o que fazer para interferir. Fez a primeira coisa que viu a oportunidade de fazer: tomou uma pedra e acertou a cabeça da fera, que voltou os olhos para ela. Julius aproveitou a deixa para lançar no vampiro um líquido que, pelo efeito, Helena sabia muito bem o que era: água benta.

— Desculpe se eu estragar seu belo rosto com isso. Não estamos em condições de abrir concessões no momento.

O líquido na verdade pegou no antebraço de Arthur, que começou a urrar de dor, queixando-se pelo membro afetado.

— Qual é a sensação de tornar-se lenha? - perguntou o caçador, aos risos. Havia muito de alívio em sua gargalhada, mas se Helena percebeu, não disse nada. Ela estava preocupada demais com Arthur Seingalt para expressar qualquer tipo de alegria com sua derrota.

— Agora ele está na transformação de vampiro completo - o colega de Julius explicou o que todos já sabiam - O efeito da água benta será total!

Helena cobriu os olhos, sem querer presenciar a morte do...amado? Não, definitivamente um vampiro não representaria isso para ela. Ele era apenas a preciosa caça que, se levada por ela e pelos seus, mudaria o status social de sua família. Apesar de ele haver tentado transformá-la, Helena não conseguia parar de pensar no doce espécime que conhecera anteriormente, e em como aquele encontraria o seu fim se este, bestial e maligno, também morresse. Ela precisava fazer algo para salvar os dois. Por mais que odiasse a ideia de que ele iria realmente atacá-la se aqueles dois não tivessem aparecido, a mulher dentro dela se recusava a permitir que algo acontecesse com ele. O motivo real ela não sabia, e também não se importava, Helena sabia apenas que algo daquele tamanho não poderia ser ignorado.

Ela não teve tempo de elaborar sua argumentação. Em poucos segundos, os experientes e violentos caçadores colocaram a criatura abaixo a base de socos e chutes, enquanto insultavam propositalmente sua mãe e desprezavam sua virilidade, por ele ainda se tratar de um virgem.

— A donzela achava que poderia me enfrentar? Ou será que és afeito somente à ideia de atacar jovens moças?

— Ele já está desacordado - Helena opinou, ao ver que o vampiro não reagia mais ao espancamento.

De alguma forma, a metamorfose do monstro acabara muito mais cedo do que o que fora previsto pelo especialista que acompanhava o colecionador.

 

Helena Lee Rush sabia que deveria se sentir grata pela salvação, mas sua mente não conseguia processar este Arthur e aquele outro como sendo a mesma pessoa. Timidamente, se aproximou do belo rapaz inoperante, matando de vez qualquer dúvida a respeito de ele ser o mesmo; seus traços não mentiam: era o próprio. A luz da lua, passando por uma providencial abertura nos galhos das árvores, iluminava seu rosto com clareza.

— Bastardo! - exclamou, decepcionada.

— Afaste-se - Julius a agarrou pelos ombros e tentou levantá-la, mas Helena se firmou na mesma posição, contrariando-o. Tomou a mão do monstro para analisar seu estado, e puxou para cima o punho da camisa, que aderia à pele queimada. Horrorizada com o que viu, a caçadora levou a mão à boca. Quase deu graças a Deus por aquele elemento benzido não tê-lo tocado no rosto.

— Como será, hein? - Julius perguntou ao seu companheiro.

— Como será o quê?

— O lado humano dele?

— Ouvi dizer que são gente normal. Que os humanos olham para um desses e ninguém diz que são vampiros.

— Se isto for realmente um meio vampiro, é a primeira vez que vejo um. Até então, pensei que fosse uma lenda.

— Será mesmo ele o meio vampiro cujas pistas seguimos? Ou será um vampiro completo?

— É um meio vampiro - respondeu Helena - Nada muda nele, a não ser o condicionamento físico. Não esperava que ele pudesse ser caçado nessa versão.

Os homens se entreolharam e riram.

— Pelo visto, a moça não nos conhece.

— Assim como o monstro, que, nesse estado, também não sabe diferenciar amigos de aliados, desde que a conversa envolva sangue!

Helena não entendeu muito bem essa parte da conversa, então ficou em silêncio. Julius puxou Arthur das mãos da caçadora. Agarrou o vampiro pela cabeça e estudou seus dentes como se ele fosse um equino, ou um escravo.

— Essas presas...devem ter um custo muito alto. Devemos arrancá-las e vendê-las separadamente, o que achas?

— Sem estarem na boca do monstro, quem acreditará que não a arrancamos de algum animal selvagem?

— Vejo que o amigo tem perspicácia.

— É o dever de quem anda com parvos que pouco pensam; sou obrigado a raciocinar por dois.

— Pensei que poderíamos encontrar um colecionador e vender a fera por pedaços.

— Ganharíamos muito mais por ele inteiro.

— Receio que os senhores tenham se esquecido de minha presença - Helena reclamou - A caça me pertence! Pertence aos meus! À minha família!

— É mesmo? Que mal lhe pergunte, qual o seu sobrenome, menina?

— Sou Helena Lee Rush, sobrinha de Karl Lee Rush, do condado de Kent!

— Olha só que coincidência! Meu pai e seu tio foram grandes amigos!

(...)

Coberta com uma manta e abrigada na sela de um dos caçadores, Helena pegou com eles um atalho para a cidade. O vampiro, amarrado em outro equino, vinha debruçado em cima do corpo do animal. Frustrada e ciente de que o havia perdido, a impotente garota mal podia esperar para que um deles se pronunciasse a respeito do que seria feito da presa.

— Meu tio já negociou a venda deste espécime - ela insistiu, enquanto os demais ignoravam-na quando ela tocava neste assunto - O homem prometeu uma fortuna por ele, vivo ou morto.

— E quem seria este homem tão rico?

— Não faço ideia. Isso é com os adultos.

— Posso saber o que a mocinha fazia sozinha no meio da mata com este morcego?

— Eu... - ela espremeu os olhos, tentando formular uma resposta que não denunciasse a essência do que ela era - Acabei me perdendo do meu grupo e fui alvo fácil da sedução do monstro. Não foi culpa de ninguém.

— E como anda o velho Karl? - indagou um senhor de barbas e cabelos brancos, que Helena logo compreendeu que era pai do homem chamado Julius. Ele se juntou aos demais sem que Helena tivesse percebido. Guiava um potro puxando uma corda.

— Muito bem, senhor.

— Tem certeza de que este jovem é um meia espécie? - o mesmo velho parou para analisar Arthur, ainda atado ao cavalo e com os membros presos pelas correntes e cordas que os caçadores colocaram - Hum, é verdade. Tem presas. Deve ter sido desacordado em modo de ataque. Ouvi dizer que meios vampiros têm dentes normais em sua versão humana.

— Ele é um meio-vampiro que minha família estava capturando com meu suporte - Helena fez questão de enfatizar - Encontrei-me com o Sr. Martinelli no momento em que iria avançar para a etapa final do meu plano de captura do monstro.

— A pobrezinha não consegue admitir que, na verdade, seria devorada pela besta fera - Julius gracejou, cutucando o amigo que também riu.

— Não sejais indelicados - repreendeu o idoso - Então não sabem que é um imenso ato de coragem desta criança arriscar-se na vida de caçadora? Não me leve a mal, pequena; mas mulheres atrapalham tanto os nossos negócios que há mais de vinte anos que eu não ouço falar de uma mulher caçadora. A maioria sabe o seu lugar e contentam-se em ser apenas viúvas e mães de caçadores.

 

Helena esmagou as saias, tentando ocultar sua ira.

 

— Estás um tanto desatualizado, meu pai. Os caçadores descobriram há tempos uma poderosa ferramenta para meter os grilhões nas caças: mulheres. Sim, há uma meia dúzia de malucas que, por algumas moedas, arriscam a própria vida se colocando nos lençóis dos mortos vivos. Não o sei bem dizer se é verdade ou não, mas já conversei com alguns caçadores a respeito, e vejam só, todos alegam excelentes resultados usando esse estratagema! A questão é que poucas prostitutas se põem à disposição para este serviço, e as que tinham coragem, já estão passadas da idade!

— Eu sou a isca dos Lee Rush - Helena declarou, arrancando um poderoso silêncio de todos - Eu atraía o vampiro e aguardava que os caçadores de minha família fizessem sua parte; se o têm nas mãos agora, me devem metade dos créditos. Se é verdade que o senhor – ela se dirigia ao velho - é um antigo contato de meu tio, creio que não gostaria de se indispor com ele.

— Não vamos tratar disso agora. Falemos de vocês, e dos adversários que nos esperam. Chegamos há pouco tempo na cidade, mas como devem saber, nossos feitos são conhecidos mesmo nas aldeias mais distantes.

— Estive reclusa em um colégio interno até bem pouco tempo e não tinha conhecimento de seus feitos, senhor - Helena respondeu Julius Martinelli com rispidez.

— Como os Lee Rush são conhecidos por aqui?

— Somos conhecidos como donos de estalagens. Não é pelas caçadas que somos famosos - a moça explicou ao amigo de Julius, que era quem fazia as perguntas desta vez - Caçadores prudentes não revelam suas identidades tão abertamente.

— Calma! Não precisa ficar brava, mocinha - Julius interveio.

— Não estou irritada. Apenas afirmo que é mais fácil caçar quando a presa desconhece seus caçadores.

— Oh! Uma carroça! Viram como chegamos à trilha principal mais rápido?

— Abra o caminho! - solicitou um dos Martinellis.

— Qual o seu problema, meu caro? A estrada não é sua! Necessito de avançar urgentemente! Temos uma menina perdida na mata!

— É a voz de tio Karl! - a moça espichou o pescoço para melhor ver o que havia por cima do ombro de Julius Martinelli.

— Helena! - seu tio chamou de volta - Então o que é isto, menina? Desde quando sentas na sela de estranhos? Desça e venha ter com os teus, imediatamente!

 

Helena teve vontade de dizer na cara do tio que, graças a ele, tinha contato com estranhos desde sempre, mas reprimiu a vontade de cometer um suicídio verbal e deu uma explicação branda:

 

— Perdi a luminária na mata ao tentar escapar do monstro e, sem saber o caminho de volta, tentei enfrentá-lo, e....

— Exatamente, meu caro - interrompeu Martinelli - A menina seria alvo desta maldita súcia parasita se não fosse nossa intervenção! Não há o que ser explicado; há o que ser agradecido!

— Então, o que esperas, Helena?

 

Humilhada, a jovem isca não queria sinalizar qualquer tipo de gratidão àqueles homens que claramente pretendiam ficar com a caça toda para eles.

 

— Eu daria a minha vida como agradecimento, mas não posso fazer isso, já que a estou devendo ao senhor agora!

— De...nada - Martinelli deu um sorriso irônico.

— Peço desculpas. As meninas nesta idade são afeitas a atos de rebeldia. Mas o que ias dizendo, sobre entrares em confronto com o vampiro? - Karl se dirigiu à sobrinha enquanto a ajudava a descer do cavalo do caçador concorrente.

— Nada - ela tentou minimizar o assunto.

— Nada? Ele iria matá-la.

 

Helena apertou os olhos, negando que Arthur Seingalt pudesse matá-la.

 

— E como lidastes com isso? Sois caçadores?

— E como somos! Somos os Martinellis, senhor! Bem ali atrás, vem meu velho pai!

— Não o creio! - bradaram os amigos, se abraçando.

— Lee Rush, meu amigo!

— Martinelli, há quanto tempo!

 

(...)

 

Chegavam todos à hospedaria dos Lee Rush. A conversa seguia animadamente:

 

— Isso mesmo, um caça-vampiros! Este elemento não foi páreo para o nosso poder - gabava-se o Martinelli jovem, incansavelmente. E, se não matamos o maldito malfeitor, é porque não sabemos a preferência do cliente que ira comprá-lo!

— Falas do vampiro que ia atacando Helena? - Vincent tentava entender.

— Ele não estava prestes a me atacar! Eu o deitaria ao chão com meus venenos não fosse a presença inoportuna destes--!

— Desculpe-me descartar a versão da senhorita, mas é fato que estavas com o pescoço na mira das presas da fera! Se lá não estivéssemos, numa hora dessas tu te juntarias a ele na caça aos humanos, se não estivesses estirada ao chão sem um pingo de sangue no corpo!

— O que disse? - ela esbravejou de verdade.

— Acalma-te, menina! Não te exaltes. É torpe uma mulher levantar a voz deste modo - Karl a interrompeu. E prosseguiu: - Meu amigo, e este agradecimento se estende ao seu menino: obrigado mais uma vez por terem salvado a isca de nossa família. Eu a procurava há horas. Imagine, que imprudência! Distanciar-se tanto de nós! Não apenas poderia ser vítima do vampiro, como de alguma outra fera selvagem qualquer!

— Se a menina não é uma guerreira, não é prudente colocá-la na linha de frente de uma batalha, é a minha opinião, tome-a como o conselho de um amigo - Julius Martinelli tripudiou.

— Tens razão - assentiu o patriarca dos Lee Rush - Talvez a delicadeza de Helena tenha manchado nossa reputação algumas vezes, mas posso assegurar que o restante de nossa família é composto de guerreiros da mais elevada categoria!

 

Helena tomou essas palavras como um golpe em sua existência. Tamanha foi sua ira que até o medo do tio fora superado. Disparou, sem filtros:

 

— Guerreiros de tão elevada categoria que se escondem debaixo das saias de uma mulher!

 

O tio, furioso, a golpeou no rosto. Karl ia retirando o cinto para surrar Helena na frente de todos, mas o jovem Martinelli o interrompeu:

 

— Diz a menina ser a isca de tua família; como a usarás nas missões se danificá-la?

— Sou forte e poderei causar grande dano, é verdade. Disto, então, encarregarei minha filha, que é mulher e tem menos força. Angela, já sabes o que fazer.

 

Angela deu um passo para a frente sem pestanejar, tomando das mãos do pai um relho para cavalos. Vincent, seu noivo, torceu o nariz para sua disposição. Até a ele, chocava a forma como aquela pobre agregada da família era brutalizada.

 

— Siga-me, que não farei isto diante de todos - disse a filha de Karl Lee Rush, com a expressão de uma máscara de gesso.

 

Helena passou a vista na sala toda como se buscasse alguém para socorrê-la. Ninguém o fez. Seguiu a prima de cabeça baixa. Karl deu de ombros, e conduziu a conversa com naturalidade:

 

— Do que falávamos, mesmo?

 

(...)

 

As duas desceram para o porão onde Arthur fora anteriormente aprisionado. Alguém atrás delas vinha com um castiçal, para iluminar o ambiente. Angela viu que era uma serva da família, uma menina de dez anos que estava ali a mando de seu pai.

 

— Volta-te para aquela mesa - ela ordenou à prima.

 

Helena obedeceu, colocando as duas mãos sobre a mesa cheia de ferramentas onde, por pouco, ela e o hóspede não consumavam o ato sexual no dia anterior. Sob ordens de Angela, também afrouxou os cordões do espartilho e deixou as costas nuas. Trouxe os cabelos para a frente, para que eles não amortecessem os golpes.

 

— O que pensavas fazer? Por um acaso pensaste que insultarias meu pai e minha família e isto passaria incólume? Sempre quis fazer isto porque és uma depravada libertina que arrasta nosso nome na lama, mas hoje tenho uma razão ainda melhor para acabar consigo: como pensas tu, que deténs autoridade para falar com meu pai como um igual?

 

Da sala, os convidados conseguiam escutar os ruídos alternados de uma correia golpeando algo e os gritos de uma moça jovem, mas seguiam conversando como se nada fosse. Após uns vinte minutos de tortura, Karl aborreceu-se e enviou Vincent para falar com a noiva, pois os berros de Helena atrapalhavam a conversa com os visitantes.

 

(...)

 

Dias se passaram, e a falha de Helena ainda arrancava risos dos Martinellis, que após venderem Arthur Seingalt e repartirem o dinheiro com os Lee Rush, eram visitantes assíduos da casa.

 

— Quisera eu ter um retrato do estafermo! Verias que se tratava de uma criança! Sim, uma criança! A isca da família seria seduzida por um menino! - Julius Martinelli dizia a um amigo que visitava a estalagem.

— Sejamos generosos com a pobre estúpida! Não é aquela que está sentada nos degraus da escada?

 

Martinelli voltou os olhos para Helena, que bordava sem dar atenção a nenhum deles. Limpa e sem vestígios de sangue e lama, ele se deu conta da notável presença que a menina fazia. Seu amigo traduziu em palavras os seus pensamentos:

 

— Eu, em seu lugar, me despediria da carreira de caçadora e me contentaria com a de esposa - não é que a pequena demônia faz uma bela figura?

— Está disponível, como sempre esteve - Karl pareceu se animar diante da possibilidade de arrancar de algum desavisado a alforria da sobrinha.

— Bolas! Não gracejes, homem! Sabes que este tipo só serve para uma coisa, tu o sabes bem, pois a tens como isca de tua família.

— Helena está sempre na alcova de alguém para afiar seus talentos; querendo valer-se dela, não hesites.

 

Alheia a tudo o que conversavam, Helena apenas pensava no que poderia ter sido feito de Arthur Seingalt. Sua venda já completava sete dias. Helena saiu de sua absorção ao picar o dedo com a agulha. Não apenas o ferimento chamou sua atenção; ela sentia alguém se aproximar de si. Era Julius Martinelli, que subia as escadas vagarosamente para ter com ela.

— Desculpe assustá-la. Se machucou?

Ela apenas o encarou de relance e depois voltou para o que estava fazendo.

— Interrompo alguma coisa? Parecias tão distraída...Sobre dias atrás, imagino o quanto tudo deva ter sido assustador demais para a senhorita. Talvez queiras falar a respeito com alguém. Parecem tê-la compreendido muito pouco sobre o que houve.

— Águas passadas, Sr. Martinelli.

— Helena, é este seu nome, certo? Pode me chamar de Julius.

A menina parece não ter gostado dessa aproximação. Assentiu com a cabeça, sem se esforçar para ser simpática. Ele, ao negligenciá-la perante o tio e chamar para si os méritos dela, atraiu o seu ódio para toda a vida.

— Mas, voltando ao que ia dizendo antes, talvez eu tenha sido um tanto insensível ao me gabar demasiado da caçada, ignorando que sua participação fora fundamental para o nosso sucesso.

— É um tanto tarde demais para se lamentar disso, senhor.

— Eu posso ser indiscreto sobre um certo assunto?

— Que assunto?

— Sobre a senhorita e o vampiro.

Helena prendeu a respiração, tentando não ofegar de desespero. Ela sabia muito bem do que ele ia falar, e previu corretamente o que ele ia dizer em seguida:

— Sobre a senhorita e o vampiro - ele continuou - A senhorita não gostaria de que soubessem, certo?

— O que é isto que o senhor está me dizendo? Consegue ser mais claro? - Helena retrucou, ofendida.

— Ca-calma...Não estou querendo fazer insinuações...Parece-me que sua família não deposita muita confiança em si...e que pretendes mostrar, ainda que sobrepujando as próprias convicções, que sois digna deles...Quer, quem sabe, provar que consegue se defender sozinha, certo?

— O senhor não sabe nada a meu respeito. É um fato que tenho que aceitar: não estou à altura dos demais. É natural que eles não confiem em alguém que, em vez de ajudar, acabe colocando a todos em risco. Com sua licença.

Com passos duros, Helena ganhou o segundo andar. Julius, a observar os cabelos negros da ninfeta se distanciando a balançar, pensou consigo:

— Oras, vejam só...que garotinha problemática. Vamos aos fatos, pequena: parecias bem íntima daquele sanguessuga. Sedução? Não negues o que eu vi. Esta não me engana: certamente tinha alguma coisa com o meia-espécie. Apesar de pertencer a uma família de caçadores, a messalina contrai relacionamento com uma das pragas que diz combater. Deveras curioso...

— Estás aí a pensar sozinho, amigo? - riu-se um de seus companheiros, ofertando-lhe uma garrafa de bebida que ele agarrou, sorrindo.

— O que sabes da menina caçadora?

— O que todos aqui sabem, oras. Que foi noiva tempos atrás de um caçador chamado Richard van Gloire. Que o patriarca dos Seingalt o assassinou no mesmo dia em que fora morto pelo intrépido rapaz. Dizem que este bom van Gloire foi o único rapaz que a menina realmente amou.

— Hum...É mesmo? Se o homem cometeu a imprudência de deixar este mundo com esta jovem à solta, só cabe aos espertos aproveitar!

— Pretendes conquistar a Lee Rush?

— Nada muito sério, meu amigo. Mas é como dizem: rei morto, rei posto. É chegada a hora de mudar o dono do coração desta tão doce pretendente...

 

 


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