A Aranha na Teia escrita por Elvish Song


Capítulo 5
Infiltrada - parte um


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal!
Bom, preciso me desculpar pela demora, mas acho que todo mundo sabe como é a loucura de fim de ano, né? Ainda mais na faculdade.
Bem, felizmente consegui tempo para escrever o fim desse capítulo (tive de dividir em dois), e postar! TOmara que gostem!
Beijos enormes, e agradecimentos a todos que comentaram e acompanham a história!!!!
Sem mais delongas, vamos à história!



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Natasha fitou sem prazer sua imagem no espelho: nem mesmo Clint ou Steve poderiam dizer a diferença entre ela e Melinda Lambert, naquele disfarce! Infelizmente, isso incluía os trajes da mulher… um vestido longo, vermelho, justo sem se tornar vulgar e com uma fenda até a altura do joelho, combinado com saltos 10 - se havia uma coisa que a russa odiava eram sapatos de salto fino, feitos para que o próprio ato de caminhar se tornasse vulnerável! - e os cabelos pintados de preto reluzente arrumados em um coque de tranças bagunçado, fios rebeldes caindo em anéis que emolduravam seu rosto. Tudo nela gritava ser uma mulher elegante e delicada, mas a espiã fizera suas próprias modificações nas vestes…

O corpete que usava por sob o vestido tivera suas barbatanas substituídas por lâminas metálicas flexíveis, bastante versáteis em uso; os brincos dourados possuíam comunicadores e rastreadores de alta precisão em si, e os saltos dos sapatos guardavam dentro deles farpas envenenadas, enquanto as pontas haviam sido guarnecidas de lâminas ora ocultas na sola, mas passíveis de serem projetadas a fim de transformar o mais simples chute em algo letal. A pulseira dourada parecia inofensiva, mas ocultava dentro de si pequenas agulhas ligadas a microcápsulas de toxinas, pronta para uso. Finalmente, costurado por dentro da alça da bolsa estava um garrote de fio dourado, que ela só precisaria puxar para utilizar, e seu colar de pedras tivera as gemas substituídas por outras, sintéticas, com vários coquetéis poderosos em forma de pílulas vítreas, incluindo tetrodotoxina, caso precisasse forjar a própria morte. "Vestida para matar" nunca fora um termo tão adequado.

Ela se juntou a Clint e Steve na sala, ambos já preparados para irem a campo, com trajes escuros e discretos, o equipamento de mão acomodado em uma maleta. Por questões óbvias, Steve deixaria seu escudo, chamativo demais, e Clint usaria armas de fogo com silenciadores, em vez de seu arco, a menos que não houvesse outra alternativa. Natasha queria evitar a todo custo o reconhecimento dos colegas, pelo menos por ora, e ambos haviam concordado com isso. Ao ver a companheira naquele disfarce impecável, o soldado franziu levemente as sobrancelhas em preocupação, sabendo no que ela se colocaria, e odiando a ideia.

— Preparada? - Desde o fim da manhã a espiã se afastara física e emocionalmente de todos, uma parte imprescindível do preparo para não cometer erros. Quando se passava por um personagem, tudo o que levava a campo eram as emoções dessa persona e seus conhecimentos técnicos; tudo o que fazia parte de Natasha Romanoff era enterrado e esquecido. Era tão formidável quanto assustador o modo como se transformava.

— E vocês? - "Melinda Lambert" pendurou a bolsa no ombro e caminhou para o elevador com perfeito equilíbrio em seus saltos altos, um caminhar diferente da graça e silêncio felinos usuais à espiã. Ela parecia até mesmo mais alta, unicamente devido à postura alongada que assumia, tão diferente de… Bom, de tudo o que era comum à mulher!

 Barton não se mostrava impressionado, mas tampouco tratava a amiga como era usual… Havia certos ritos que ambos cumpriam juntos, fosse ao se preparar para missões, ao retornar delas ou em diversas situações corriqueiras - desde hábitos na ala de treinamento às conversas por olhares e microexpressões faciais - os quais Rogers já conhecia bem, embora não compreendesse a maioria. Esse distanciamento mútuo era algo novo para o Capitão, mas o entendimento sem palavras de ambos mostrava já haverem repetido a mesma dança diversas vezes, um modo automático de agir e reagir cimentado pelo hábito. Como o novo elemento dessa equação, praticamente um novato no ramo de espionagem, dessa vez não assumia a liderança, mas procurava aprender com os agentes a lidar com algo tão fora de sua zona de conforto.

— Vocês me levam até o hotel e, de lá, não cheguem mais perto do que cem metros. O mapa está nos sistemas de ambos: a melhor cobertura está a leste… - Ela repassava as informações, principalmente por causa de Steve. O soldado sabia disso.

— No terraço do prédio defronte, que cobre toda a fachada lateral. Com a iluminação do instituto, qualquer um nas varandas ou janelas será algo fácil, e será muito difícil alguém nos enxergar, ofuscado. - Ele completou, assegurando-a de ter o plano firme em mente. - Estaremos ali para suporte, e ouvindo tudo o que acontece no evento.

— Bom. - Ela assentiu uma vez enquanto entrava no banco de trás do carro modificado criado por Tony. - O Dr. Banner está na Mansão Xavier. Lambert não falou mais nada importante, mas se ele mandar algo, me repassem depressa. Se tudo der certo, saio de lá direto para a base da Hidra. Se as coisas saírem de controle, vocês causam algum caos.

— Sim, senhora, General. - Clint não podia não ser ele eternamente, mesmo com a voz séria, enquanto ligava o carro e dirigia em direção ao hotel onde, oficialmente, a personagem de Natasha estava hospedada. - Teste o nosso sinal.

Natasha bateu duas vezes no comunicador subcutâneo atrás do lóbulo da orelha, e o som foi pego claramente pelo sistema, acendendo uma pequena luz vermelha no pulso de Clint. Tudo funcionando.

— Ok. Não banque a heroína, lá dentro: depois que entrar na base, só poderemos tirar você se for definitivamente.

— Eu sei, Barton. - A espiã revirou os olhos, e por um segundo esse gesto foi tão… Ela… Que nem a máscara holográfica, lentes de contato e os cabelos pintados poderiam esconder. Um breve respirar antes do mergulho prolongado… - Apenas fiquem de ouvidos abertos, e tentem não entrar em guerra com os mutantes enquanto estou fora, que tudo ficará bem.

— Tasha, nós sabemos. - Assegurou Steve, quando o carro enfim parou diante do hotel. - Cuide do seu papel, nós cuidamos das coisas aqui fora. - Ele queria poder abraçar uma última vez a mulher e lhe pedir que voltasse a salvo, mas guardou essa intenção para si mesmo. Ela voltaria bem, porque era Natasha. Fizera aquilo por mais anos do que ele passara no gelo, e ficaria bem em mais essa missão. Já imersa outra vez em seu personagem, ela saiu do carro em gestos elegantes:

— Obrigada por me trazerem, meninos. Até mais. - Não mais do que alguns minutos depois, o carro da doutora Lambert saía da garagem do hotel após a "médica" realizar o checkout, como fora orientada a fazer por seus superiores. O jogo estava começando.

*

Romanoff sorriu para todos, cumprimentou-os, sua mente varrendo rapidamente as memórias dos dossiês, históricos, informações em geral associadas a cada rosto, uma compilação completa dos presentes na reunião, suas atribuições, podendo começar a traçar, pelos perfis das habilidades ali reunidas, o tipo de projeto que seria iniciado. Vários geneticistas, biofísicos, bioquímicos, neurologistas... A maioria envolvida no projeto das Crianças de Nuremberg, mais especificamente com a criação da Cobaia 109.

A festa poderia bem ser um evento comum, não fosse o celular tirado de Melinda receber, a cada poucos minutos, mensagens com instruções, mandando-a falar com este ou aquela, sentar-se ao lado de uma ou outra pessoa. Isso, e o segurança que manteve seus olhos o tempo inteiro sobre a pretensa médica, de seu posto no outro lado da sala. Havia algumas pessoas marcadas para serem vigiadas constantemente, a maioria com grande papel nos projetos de aprimoramento humano. Mais um incentivo para que se mantivesse impecável no papel.

Quando as mensagens pelo celular mandaram que fosse até Miss Echbert, a mulher o fez; foi confrontada por uma “colega” especialista em clonagem, que debateu consigo sobre os últimos projetos em que se haviam envolvido juntas, indagando se a outra teria novas informações sobre os resultados de seus trabalhos. Natasha apenas negou, dizendo que provavelmente não mais do que ela e, caso seus superiores houvessem considerado apropriado partilhar consigo coisas que não haviam enviado à húngara, ou vice-versa, então não seria ela a quebrar o sigilo profissional deste modo.

Um perito em biotecnologia, desenvolvedor de softwares de leitura e análise de parâmetros diversos em tempo real – Hadjid, da Índia – conversou com a espiã como se falasse a uma velha amiga – ou o mais próximo que pudessem ser disso – levantando uma conversa amena, com pequenos indícios de arguição, como perguntas sobre onde Lambert andara, nos últimos dias, e por que não ficara no hotel em que primeiro se hospedara, algo que Natasha achou prudente comentar na conversa, para evitar que parecesse ocultar o fato. Não como se mentir fosse algo difícil, ainda mais após construir cuidadosamente cada aspecto da história, desde o enredo geral até os menores detalhes – as melhores mentiras sempre possuíam poucos pormenores, porém consistentes o suficiente para cimentá-la, como a argamassa de acabamento em uma parede.

A própria espiã recebeu mensagens ordenando-lhe que fizesse perguntas a outros membros, e bem específicas, como relembrar dados sobre procedimentos antigos, evocar algum evento desconhecido de outros, mencionar amigos e familiares. Em resumo: HIDRA sabia que havia alguém infiltrado. Poderiam saber que era ela, ou não. As mensagens poderiam não passar de um jogo para causar alarme em todos, estressá-la e levá-la a cometer um erro para se denunciar, como também poderiam ser um jogo autêntico em busca do espião. A única dúvida certamente respondida era que sabiam estar sendo rastreados, e muito provavelmente tinham um bom palpite sobre quem os estaria tentando enganar. Afinal, os Vingadores, e Romanoff mais especificamente, vinham paulatinamente desmascarando o que restava da instituição. Era dela que estavam com medo. E tinham motivos para isso.

Bem sob os narizes de todos, Natalia Romanova se passou impecavelmente pela doutora Lambert, sustentada por suas longas semanas debruçada sobre vídeos e trabalhos do personagem por ela interpretado, livros e pesquisas feitos madrugadas adentro, pelos detalhes arrancados da prisioneira pela telepatia de Jean Grey ou pela gentileza de Banner. Como uma perfeita bailarina, ela dançou nos fios delicados da manipulação, retirando informações cada vez mais interessantes de cada um com quem travava contato. Os detalhes que Lambert não sabia. As peças faltantes do quebra-cabeças, e o panorama descrito era cada vez mais claro, e apavorante: crianças produzidas em laboratório, testes e mais testes feitos até alcançarem o resultado que desejavam: cobaia 109, Lucy, o mutante perfeito. Criada a partir de 52% dos genes de Natasha, combinados ao genoma de mutantes poderosos em telepatia e manipulação de energia. Tudo isso amplificado pelo soro autorreplicante presente nos genes da Black Widow, e um composto ativo denominado unicamente Origin, feito de pura energia concentrada, obtido nos destroços das grandes máquinas de guerra Chitauri. Única sobrevivente dos mutantes criados a partir dos genes da Black Widow – cujo soro amplificava tanto as capacidades mutantes, que resultavam em autodestruição dos fetos. Fora o Origin o responsável pela sobrevivência daquele, em particular. Assim como sua homônima, o primeiro humano primitivo, Lucy era algo como nunca existira antes: humana, mutante, aprimorada, alienígena. Tudo isso, e nada disso. O próximo passo da evolução, porém trancada a sete chaves e condicionada a se tornar uma arma nas mãos de pessoas que dificilmente entendiam o que haviam reproduzido em seu laboratório.

Romanoff disfarçou sua apreensão pegando uma taça de champanhe e mudando a conversa com Hildgard – alemã crescida nas últimas décadas da Guerra Fria, já avançada em anos, porém ainda comprometida com seu trabalho em desenvolvimento de armas para a HIDRA – para algo mais ameno e casual. Seria perigoso fazer muitas perguntas para a mesma pessoa, e ela mesma sentia algo em seu íntimo se agitar... Emoções pessoais, menos do que desejáveis em uma atuação tão delicada. E logo a sorte, ou o azar, lhe sorriu na figura de uma pessoa que aprendera a conhecer muito bem através de centenas de e-mails e pesquisas... Izmar Von Hecker ou, de acordo com a troca de identidades, Edmond Lissen-Ecklund, lhe sorriu da distância de alguns metros, sentado a uma mesa com uma mulher oriental de idade próxima à sua, e uma garotinha que trazia os traços de pai e mãe em si. Acompanhando-os, o verdadeiro Edmond, passando-se por seu superior. Obviamente a verdadeira Melinda os conhecia, e também saberia da troca de nomes... Sem poder evitar o encontro – talvez sem desejar fazê-lo – a russa caminhou para junto dos pretensos colegas. Sua noite estava apenas no começo.

*

Natasha agradeceu mentalmente ao treinamento da Sala Vermelha, única coisa que a impediu de quebrar o pescoço de Lissen-Ecklund quando o homem a empurrou contra a parede e a beijou de modo lascivo. Oh, Der'mo! Yabat'! Deixando que seu corpo entrasse no modo automático, de modo a distanciar a mente daquilo, a espiã repassou rapidamente suas opções: matar Edmund não era uma delas. Mas se levassem aquilo adiante, seria impossível não ter seu disfarce descoberto. Rejeitar o amante de Melinda seria igualmente suspeito, então precisaria apelar para quem cobria suas costas.

Ela não fez nada além de corresponder como uma mulher apaixonada enquanto o moreno a erguia e levava para dentro do quarto, chegando a dar uma risadinha quando foi jogada na cama, apoiando-se nos cotovelos e buscando os lábios dele novamente. Não pensava em Steve, agora, nem em qualquer coisa além de cumprir a missão. Ela nunca pensava, quando imergia em um papel. Mas quando as mãos masculinas começaram a puxar seu vestido para cima, empurrou-o levemente e virou o rosto, ainda mantendo um sorriso satisfeito enquanto dizia:

— Mon amour, preciso usar o banheiro. - Ele se afastou apenas o bastante para deixá-la se levantar, não sem antes beijar longamente seu pescoço, deixando uma marca que levaria pelo menos um dia para sumir.

Assim que se viu livre, a russa se levantou e livrou dos saltos, imersa na farsa até o último fio de cabelo, indo para a suíte enquanto olhava por cima do ombro para o "amante". Se ele percebera algo, até o momento, definitivamente não notara, e ela só podia atribuir isso às doses de bebida consumidas, pois seu tônus muscular era flagrantemente maior que o da médica, e do modo que ele a apalpara, bem… Abençoado fosse o álcool.

Tão logo a porta se fechou às suas costas, Natasha levou a mão ao comunicador:

— Clint, estou com problemas. Tem minha localização?

— Tenho campo livre até a janela do quarto. Precisa que eu mate o filho da mãe?

— Preciso. Sem suspeitas.

— Coloque o defunto no meu raio de alcance.

— Três minutos. - Ela avisou, sabendo o que tinha de fazer, e ouvindo o Capitão xingar em voz baixa, no fundo. Bom, estava de corpete, o que significava que a maioria de suas cicatrizes estava coberta… E mesmo se Edmund a descobrisse, agora, não teria tempo de contar a ninguém. Acionou a descarga e ligou a torneira, para que o barulho corroborasse sua trapaça, e tirou o vestido vermelho, deixando-o amontoado no chão. A vantagem de uma boa atuação era que as pessoas vêem o que esperam ver, e Ecklund não esperava ver qualquer coisa além da mulher a quem tinha como amante.

Como esperado, os olhos dele se tomaram ainda mais de luxúria, ao vê-la seminua, e o bastardo idiota se levantou da cama para vir até ela, já se livrando da camisa no caminho. A espiã o abraçou e beijou, movendo-os de modo a ter o suíço de costas para a janela, enquanto seus braços ainda estavam em redor dele. Com o pretexto de tirar os cabelos do rosto, deu duas batidas leves no comunicador, como sinal, e apenas confiou. Aquela confiança cega que não pedia informações, e que reservava única e exclusivamente para Clint.

Não demorou para acontecer: Edmund gritou, e um milésimo de segundo depois ela foi jogada de costas pela força do tiro em seu ombro direito, enquanto Ecklund caía morto, coração perfurado pelo tiro certeiro do arqueiro. Natasha não teria feito mais do que gemer, mas Melinda gritou com a dor, e novamente com o horror, arrastando-se de costas até a parede junto à cama, encolhendo-se em pânico e chamando por ajuda a plenos pulmões, enquanto tentava estancar o sangue que escorria do ferimento, tremendo e perdendo a cor do rosto. A porta se abriu com um baque quando os seguranças a arrombaram e, por instinto, a médica puxou o lençol da cama para se cobrir, chorando e chamando o nome do amante.

— Doutora Lambert! - O mesmo segurança que a vigiara no salão, mais cedo, irrompeu no quarto, genuinamente preocupado ao ver o sangue. - O que aconteceu?!

— Es… Estávamos perto... da janela… - Ela soluçava incontrolavelmente - Alguém… Alguém atirou em nós. - Seus olhos eram puro desespero em fitar o corpo do amante. - Não tive… Não deu tempo de… Edmund… - As palavras morreram num grito de dor, quando o agente tocou a perfuração de bala, examinando a gravidade.

— Calma, doutora. Já acionamos toda a equipe, irão achar quem fez isso. - Ele removeu seu casaco e o enrolou nela, cobrindo-a decentemente antes de ajudá-la a se erguer. Pelos arquivos, ele e Melinda haviam trabalhado muito juntos, e desenvolvido certa amizade. - Vou levar a senhora para a equipe médica.

— Mas Ed…

— Não pode fazer mais nada por ele. Vamos. - Ante os tremores e o choque que impediam a médica de se manter em pé sozinha, o amigo a carregou solicitamente, preocupado: quem teria motivos para matar o suposto Dr. Von Hecker, senão aqueles que conheciam suas atividades? Além disso, um tiro tão limpo e preciso… Havia poucas pessoas com habilidades de franco-atirador não pertencentes ao exército. Sua mente se voltava para os Vingadores… dois deles eram assassinos profissionais, com mais de trezentas mortes confirmadas, cada. O prédio mais próximo estava a mais de setenta metros, não havia como um assassino comum acertar não apenas o coração do homem morto, mas atingir também a médica.

Deitados de bruços contra a platibanda, protegidos do alcance visual de qualquer câmera ou observador, Clint e Steve se fitavam de modo antagônico:

— Você ATIROU nela?! – Bem, o Capitão realmente estava furioso, e provavelmente estaria esganando Clint, se não precisassem se manter escondidos pelo bem da missão.

— Chama-se eliminar suspeitas. – Devolveu o arqueiro, no mesmo tom sussurrado e zangado. – Ela irá para a base da HIDRA com menos olhos sobre si, se foi vítima de um ataque.

— Passou por sua cabeça que ela se cura mais depressa do que o normal?! Acabou de delatá-la!

— Não somos amadores, Rogers. A bala tinha doses de heparina, e Natasha sabe manter um ferimento aberto por mais tempo. Agora, se já terminou de fazer suas perguntas impertinentes, temos de descer e manter vigilância nos carros que saírem: Nat estará em um deles.

O Capitão começava a ponderar se fora uma boa ideia vir até ali; não era um espião, mas um soldado. Conspirações, disfarces e mentiras não lhe serviam e, mesmo disposto a tudo para proteger seus amigos, havia bem pouco que pudesse fazer no momento. Ver aquele porco tocar Natasha fizera suas mãos arderem com o desejo de esmurrá-lo, e preferia não pensar nos detalhes que ouvira sobre as experiências feitas com cento e nove crianças – possivelmente mais – em nome da sede de poder da HIDRA. Talvez pudesse ser mais útil confrontando os inimigos que já conhecia... Ao mesmo tempo, sabia que o tempo do qual Romanoff disporia era incerto. Poderia durar dois dias, ou dois meses dentro daquela instalação e, quando chamasse, ela precisaria de todos a postos. Fazia questão de ser o primeiro a correr quando o chamado viesse, não apenas pela mulher a quem amava – a espiã era provavelmente a pessoa mais mortal do lugar, e provavelmente mais capaz de cuidar de si mesma do que ele, na situação – mas por todos os instintos dentro de si que urravam pedindo punição justa para todos os que haviam sido torturados e mortos nos experimentos.

Sem mais palavras, recolheram o pouco equipamento trazido e desceram com os ganchos de escalada; enquanto Clint recolhia os cabos, Steve ligava o carro e os sistemas de rastreamento que Natasha o fizera aprender a usar. O microchip inserido sob a pele da espiã continuava funcionando perfeitamente, e apenas uns segundos depois de Hawkeye voltar ao veículo, receberam a informação de que a colega se encontrava em movimento, em um dos carros. O comunicador, por sua vez, captou quatro batidas suaves, o código combinado para alertá-los de que saíra. Agora não havia volta: estavam indo para o covil do monstro.

*

Uma viagem de 14 horas até lago Michigan, com Steve e Clint se revezando no volante, embora a adrenalina em seus corpos não os deixasse chegar sequer perto da sonolência. Ainda assim, precisavam estar totalmente alertas, e a atividade repetitiva entorpecia os dedos e pernas, de sorte que as breves paradas para trocar de lugar já se faziam um alívio para levar o sangue a fluir normalmente pelos membros.

Com o comunicador de Natasha totalmente silencioso, falavam eventualmente um com o outro quando o silêncio se tornava opressivo demais, uma válvula de escape para ambos em relação às emoções turbulentas que tanta imundície descoberta causava.

— Temos alguma estimativa de duração, para tudo isso? – A voz de Steve quebrou o silêncio reinante após duas horas na estrada. Era ele quem dirigia, enquanto Clint apoiava os pés semiadormecidos no console do carro, olhos fixos na estrada. – Natasha não foi muito verbal, essa semana.

— Pode durar dois dias, ou duas quinzenas. – O Gavião deu de ombros. – Temos um tempo máximo de um mês. Quarenta dias, se a Nat aguentar muito, mas não mais do que isso.

— Baseado em quê?

— Na capacidade dela de dormir sem sonhar. É uma técnica de trabalho, um sono alerta que descansa, mas não completamente. Em um mês, mais ou menos, o cansaço começará a provocar falhas de concentração, ameaçando expô-la. – Clint deu um esboço de sorriso, quase nostálgico, mas simultaneamente carregado com algum divertimento. – O recorde dela foi de seis meses.

— Seis meses sem dormir adequadamente. Por que não me surpreendo, mesmo? – Steve suspirou com resignação, mas também sorriu. – Foi quando ela veio para a SHIELD?

— Foi. Como o Sam diz, ela é um tanto paranoica. E era dez vezes pior, quando chegou. Não conseguia mais do que um sono absurdamente leve, deitada de costas para a parede, e até a roupa de baixo virava uma arma, para se defender de algum perigo. E perigo era qualquer pessoa além de mim, Fury e Diretora Carter.

— Muitas mortes?

— Não. Algumas contusões, ossos partidos e deslocados, desmaios... Mas a maioria era inteligente o bastante para evitar aquela parte da ala de detenção e, quando Nat saía, era sempre com um de nós. – Agora havia real diversão no rosto do arqueiro. – Mas havia o problema do sono. Chegou a um ponto em que ela teve os reflexos prejudicados seriamente, e depois já não conseguia falar ou entender outras línguas além do russo, pela exaustão.

— Peggy não interveio?

— Não. Eu resolvi, antes.

— A menos que tenha colocado Natasha em coma, não imagino como ainda está vivo. – O Capitão tinha um leve sorriso no rosto.

— Eu comentei que os reflexos dela estavam muito lentos: um dia, enquanto andávamos num corredor, consegui espetá-la com um sedativo. – o espião deu de ombros. – Não a sedou de imediato, e Nat me deu um murro na barriga, mas segurei o próximo golpe. Joguei aquela russa louca no meu ombro, aprendendo todos os palavrões em russo existentes, e alguns que ela criou no improviso, e levei de volta para o quarto dela. Algemei na cama, coloquei uma cadeira do lado do leito e disse que, se ela tinha medo de alguém a ferir enquanto dormia, eu iria ficar ali pelo tempo que precisasse, até vê-la refeita.

Steve segurava o riso, imaginando muito bem a cena e constatando que algumas coisas não haviam mudado em Natasha, em todos aqueles anos. Ela provavelmente agiria do mesmo modo, se os eventos se repetissem. Curioso para saber o desfecho de tudo aquilo, insistiu:

— E afinal?

— Ah, ela dormiu... Por trinta e duas horas seguidas. – A expressão de culpa de Barton foi hilária. – Achei que tinha colocado a mulher em coma, e precisei e reportar à Diretora Carter... Quando Natasha acordou, estava no hospital, com a diretora e eu do seu lado. E aquele chute foi o melhor que já tomei na vida: mostrou que ela estava bem, e fez minha chefe parar de me olhar como se fosse arrancar minha pele, o que acho que realmente considerou fazer. Mas quando Tasha acordou, deixou que ela mesma se vingasse. Elas conversaram em particular e, o que quer que tenham falado, funcionou. Ela passou a só usar essa técnica a trabalho, para evitar pesadelos que a delatassem. Na maioria das noites, tomava hipnóticos que bloqueavam os terrores noturnos, e depois as coisas melhoraram. – Ele suspirou e riu num som quase inaudível, uma risada preocupada e nervosa. – Ela sempre se coloca nessas coisas. No começo eu ficava preocupado, mas agora... Bom, não que não fique, mas é a Nat. Ela sempre vai voltar.

Clint sabia que era um sentimento infantil: mesmo Natasha não era invencível, e as vezes em que fora gravemente ferida eram prova disso. Mas o arqueiro não conseguia sequer começar a conceber um mundo sem a mulher com a qual tinha um vínculo mais forte do que quaisquer irmãos. Era mais fácil, e talvez o único modo de seguir em sua profissão, manter em mente a firme noção de que, o que quer que acontecesse, sua amiga sempre ficaria bem.

Steve, a seu tempo, sentia certa inveja e admiração por Clint, por ter estado ao lado de Romanoff todos aqueles anos, assim como ficava feliz pelo vínculo entre ambos, em saber que, apesar de um passado claramente difícil, Natalia tivera alguém que a amara irrestritamente para auxiliá-la naquela transição. Afinal, não se pode vencer os demônios da própria mente com habilidades de combate. Sabia disso por experiência própria.

— A propósito, Capitão: se Natasha souber que eu te contei isso, haverá um assassinato duplo e brutal na torre. Preserve nossas vidas e finja que não sabe de nada.

— Seu segredo está a salvo comigo. – O Capitão esboçou um sorriso de lado, antes de reduzir a velocidade ao ver no radar que o carro onde Natasha estava também reduzia. – Estamos chegando, Clint.

— Se algo der errado, tiramos a Nat e saímos: não é hora de bancar o herói, Steve. – Respondeu o arqueiro, preparando suas armas; era o momento crítico: o sinal da espiã lhes diria se deveriam agir agora, ou deixar a situação nas mãos dela até que reunisse as informações necessárias. A tensão e expectativa estavam estampadas nas expressões de ambos enquanto aguardavam, o silêncio mais enervante do que qualquer outra coisa. Sempre a pior parte de qualquer missão: esperar pelo contato do parceiro, esperando que nada de errado acontecesse com o outro.

Finalmente, o comunicador de Natasha passou a retransmitir para o canal compartilhado, mas não houve palavras, e sim, batidas em Código Morse, dizendo que seguiria sozinha com o plano original, dali por diante. Uma parte de Steve lamentou por isso: significava mais espera, e uma preocupação extra ao ter um membro da equipe fora do radar.

— Reconhecimento de perímetro. – Sussurrou o Capitão, colocando o capacete negro e sem identificações. Nada de escudo, nem cores ou estralas. Nada que o delatasse, ou relacionasse ao próprio nome. O mesmo para Clint. – Quarenta e cinco minutos, Barton, e nos encontramos no carro, novamente. – Um arremedo de sorriso repuxou o lado direito de seus lábios. – Tente não se meter em problemas. Natasha não está livre para te salvar, e eu estarei do outro lado.

— Digo o mesmo, Capitão. – Hawkeye guardou uma pistola em cada coldre nas pernas. – Tente ser furtivo.

Aguardaram mais alguns minutos e conferiram todos os radares antes de deixar o carro em modo camuflado e colocarem os óculos de visão noturna, cada um munido de seus próprios dispositivos de sensoriamento remoto que traçaria um mapa detalhado do que vissem e ouvissem, comparando imagens e coordenadas para, ao juntar os dados obtidos por ambos, criar um mapa 3D minuciosamente detalhado. Assim que concluíssem essa etapa, retornariam à Torre Stark e aguardariam novas instruções. Dentro da base, estava tudo por conta de Natasha.

*

Natasha fingiu perder a consciência algumas vezes no trajeto; ainda no Instituto, recebera atendimento imediato para estancar a hemorragia, tendo seu braço e ombro direito imobilizados e fixados ao peito com faixas, antes de ser escoltada para os carros em meio ao pequeno caos que se formara entre os alertados sobre o ocorrido. Ninguém lhe dirigira a palavra mais do que duas ou três vezes, para dar instruções ou ordens e, como Melinda Lambert, ela apenas obedeceu e agiu sem questionar, entrando no banco traseiro da BMW – isolado da frente por uma barreira opaca e acusticamente isolante - e ali permanecendo ao lado do mesmo agente que a vigiara na gala, fronte apoiada contra o vidro, eventualmente dando pequenos “cochilos”, como esperado de alguém atravessado por uma bala. 14 horas de silêncio e atenção à estrada, memorizando o caminho para sua nova residência temporária.

Estava precisamente fingindo dormir quando uma mão firme pousou em seu ombro são para acordá-la:

— Senhorita Lambert, chegamos a nosso destino. Será levada para tratar seus ferimentos adequadamente, e encaminhada a seus aposentos. Seus pertences já estarão no quarto, quando retornar.

Natasha anuiu, apertando o casaco em torno de si com a mão livre e seguindo seu guarda; a movimentação de pessoas sendo alojadas lhe era conhecida, um padrão similar na maioria dos lugares em que já estivera. Mas dessa vez não estava ali como a Agente Romanoff, e sim como Melinda. Seus passos não eram o caminhar decidido e firme da espiã, mas vacilantes de dor e falhos na tentativa de manter sua autoridade.

Amplos galpões conectados por corredores revestidos em metal e portas triplas reforçadas não eram novidade para Romanoff, que mapeou o caminho enquanto era carregada após tropeçar pela terceira vez, direto para uma enfermaria de múltiplos leitos isolados uns dos outros por biombos brancos. O procedimento de exame, escaneamento, limpeza e tratamento da ferida tomou não mais do que três horas – Clint fizera um bom trabalho, com um tiro limpo que atravessou o ombro sem lesionar mais do que alguns ligamentos – ao cabo das quais fora enviada a seu quarto, com orientações para se manter em repouso pelos próximos dois dias.

O quarto em si não era exatamente luxuoso, mas tinha o conforto necessário a uma cientista da organização, similar a uma suíte de hotel; em vez de televisão, um computador de softwares exclusivos – alguns desenvolvidos em conjunto com a própria Melinda Lambert – vinculado à central de informações. O notebook da médica fora confiscado de seus pertences, estes já organizados no armário, banheiro e no aparador, assim como o celular, sendo apenas os arquivos relevantes transferidos para o aparelho no quarto. Mas não era apenas isso... Sentando-se na cama, Natasha foi capaz de identificar as câmeras mínimas em cantos opostos do forro, dando cobertura de 360º aos aposentos, e não precisava encontrar o microfone para saber que também ouviam tudo o que ocorria ali dentro. Embora parecesse uma suíte de hóspedes, tratava-se apenas de uma cela de luxo. Nada com que não pudesse lidar.

Após um banho rápido – felizmente não havia câmeras no banheiro, pois seria bastante difícil esconder suas cicatrizes – a espiã voltou ao quarto em uma camisola branca e se deitou. Sua personagem ainda estava em choque, assimilando os eventos do dia, a perda do amante, o fato de ter sido baleada... Assim, após um longo período do que parecia a letargia do trauma, uma lágrima escorreu. Depois outra, e mais outra, até que a pretensa francesa virou-se de bruços no leito, apoiada no braço bom, e escondeu o rosto nos travesseiros enquanto seu corpo era agitado por um pranto convulso, até ficar imóvel; e na mesma posição a russa permaneceu, até que de fato se obrigou a deslizar para um sono superficial, no qual era capaz de perceber os menores ruídos ao seu redor, e reagir a tempo. Qualquer um que a assistisse, contudo, juraria ser um sono profundo de exaustão. Esse era um jogo que encenara vezes demais, e a farsa se tornava praticamente automática; Natasha Romanoff se infiltrara, e agora teria acesso a tudo o que desejava, cedo ou tarde.

*

Melinda acompanhou Von Hecker pelo emaranhado de corredores e salas que sua mente cuidava de mapear em detalhes. "Esquerda. Terceira à direita. Quinto corredor à direita, passando a janela do laboratório de testes físicos…" Finalmente, chegaram a uma área de acesso restrito: Hecker ficou diante do scanner ocular e o acesso lhe foi concedido.

— As cuidadoras vão querer me matar por estragar suas rotinas desse modo, mas isso pode gerar dados interessantes sobre como reagem a mudanças. - Ele falava casualmente, porém com interesse real no processo. A médica anuiu:

— Eles já não têm mais idade para se manter rigidamente em uma rotina. Precisam aprender a ser flexíveis, dentro da ordem a ser mantida, ou serão inúteis. - Ela bufou com irritação. - Quem é o idiota que ainda não pensou nisso? Preciso capacitar até os treinadores marciais, agora, Izmar? Vocês me chamaram para fazer estudos comportamentais, ou ensinar a criar crianças?

O geneticista riu com divertimento: adorava a espontaneidade de Melinda em lidar com os colegas, especialmente suas pequenas explosões quando considerava que alguém não vinha cumprindo corretamente o próprio dever, ou desobedecia suas instruções. Ela era metódica, perfeccionista, detalhista, e não admitia menor zelo em qualquer um dos colegas ou subordinados. Uma mulher admirável.

Finalmente alcançaram seu objetivo, uma sala vazia e de paredes acolchoadas, onde uma garotinha com cerca de cinco anos se sentava rigidamente num canto, vestida com o uniforme verde claro das instalações, o longo cabelo ruivo e ondulado preso num rabo de cavalo baixo. Tinha os braços em torno das pernas encolhidas, mas encarava fixamente a janela que, do seu lado, seria apenas um espelho. Os olhos eram o mais puro tom de índigo, e não demonstravam complacência, mas uma revolta visceral e selvageria contida, como um predador enjaulado que espera uma falha dos captores para lutar novamente. O tipo de olhar que Romanoff já encarara antes, mas nunca em uma criança tão nova…

— Impressionante, não é? - Perguntou Izmar, fitando com algum pesar a figura da criança. - O vidro precisou ser trocado para um de seis polegadas, pois ela explodiu os outros. Numa dessas, explodiu também um aneurisma no cérebro de seu treinador… Coisinha perigosa. Está nos dando muito trabalho para dobrá-la.

— Continuam com a mesma metodologia de punição e recompensa? - Havia tom puramente profissional na voz da psiquiatra.

— Quando se comporta, agora, permitimos que veja o céu. Ela gosta de estar ao ar livre, e é claustrofóbica. Quando se porta mal, vem para cá. E se a infração for grande demais, aplicamos a punição por ondas alta frequência. Ela grita e uiva, mas não se submete… Um grande desafio, e nossos chefes não estão nada satisfeitos com esse comportamento. Se não a dobrarmos, ela vai para os tubos de congelamento, para tentarmos clonagem e modificação gênica... Versões mais dóceis da diabinha.

O coração de Natasha se agitou no peito, em asco e revolta! A pequenina encolhida na sala era uma criança com medo, agressiva para se proteger… Tratada como um rato de laboratório, manipulada, experimentada, punida… Por não mais que um segundo, ela contraiu os músculos para combater o desejo de matar o homem à sua direita, antes de se refazer e dizer com a maior neutralidade:

— Tenho permissão para entrar? Quero ver como ela se desenvolveu no último ano.

— Não vai querer os bloqueadores, doutora? – Havia preocupação na voz do geneticista; a criança realmente causava medo à equipe, e essa noção satisfez quase tanto quanto preocupou Romanoff.

— Não. Quero saber exatamente como ela se desenvolveu, e se isso incluir interações telepáticas, melhor. - Suas digitais abriram a porta (cuidara de copiar as digitais de sua prisioneira e criar para si películas modificadoras de impressões) e Natasha adentrou a cela devagar, o medo da menina praticamente palpável no ar quando o corpinho magro começou a tremer sob suas roupas de hospital, dilacerando o coração de Romanoff. Uma menininha, como Lila, mas submetida a coisas que garotinha alguma deveria enfrentar, abandonada, abusada, violada de tantas formas... E ainda assim, os brilhantes olhos de safiras não se desviaram dela, firmes, duros, implacáveis. Natalia enrijeceu a postura e indagou em tom neutro:

— Olá, Lucy. Lembra-se de mim?

— Infelizmente, sim. - A voz de uma criança carregada com o peso que poucos adultos teriam, o rosto pueril mesclado de medo e desafio, o olhar cansado e triste... Em parte, lembrava Romanoff de si mesma, quando era pouco mais velha. Porém, ao contrário de si, essa menina não encarava a própria realidade como sendo normal e comum a todas as crianças, pois vira nas mentes dos outros haver algo diferente, algo melhor, que a ela fora negado simplesmente por ter nascido como era. - Veio me estudar de novo, não é? Para começarem a me clonar.

— Ninguém irá clonar você, ainda. - Uma pressão intensa se fez sentir atrás dos olhos de Natasha, que de imediato entendeu estar sofrendo uma invasão mental; a princípio receou que a menina tentasse matá-la ou, pior ainda, revelasse seu disfarce, mas então ouviu com clareza em sua mente, como se Lucy houvesse falado:

"Eu sabia que você ia vir, um dia. E você veio."

Era confuso olhar para a pequena e ver seus lábios imóveis, mas ouvir sua voz tão claramente… E certamente perturbador pensar que a garotinha estava em seus pensamentos, vendo sua mente! Se algum dia se sentira mais exposta, não conseguia se lembrar. A única coisa que sempre havia sido sua eram os próprios pensamentos, e se aperfeiçoara ao máximo na arte de ocultá-los! Agora, uma menininha simplesmente os invadia como se fossem um livro aberto. Porém, não havia nenhuma hostilidade na garota, apenas curiosidade, algum alívio, e tristeza. Muita tristeza. Medo. Solidão. Natasha tratou de bloquear todos os pensamentos não relativos ao agora, evitando principalmente as memórias que jamais desejaria revelar a alguém, menos ainda à pequena Lucy.

"Senhora Romanoff, ele desconfia da senhora. Seu jogo de pistas é perigoso. Eles vão me usar para te forçar a mostrar quem realmente é. Querem que eu te entregue, mas não vou fazer isso."

Natasha levou alguns segundos para que sua mente funcionasse em frases ordenadas, em vez das conexões rápidas e conceitos abstratos que geralmente usava em seu raciocínio, imaginando que isso deveria facilitar a apreensão de ideias pela jovem:

"Eu sei o que estou fazendo, Lucy. Mas por que não me entregar? Não me deve nada."

"Não vou fazer nada que me pedirem. Eles querem uma arma. Não vou ser uma.” Ela cruzou os braços e apoiou o lado esquerdo do rosto sobre eles, desviando o olhar. “Além disso, você é minha mãe."

As palavras tiveram o efeito de um chute do Hulk, ou ao menos foi essa a sensação pelo instante que se seguiu. Felizmente aquela conversa estava ocorrendo em silêncio e, pelo que soubera sobre a jovem, pessoas se espantarem ou terem reações de estupefação diante da telepata não era algo inusitado. Sorte sua, pois a russa se sentia invadida por mais sentimentos do que conseguia reconhecer, indo desde a perplexidade a... Algo. Uma empatia, um desejo forte de proteger a menina que, não fosse por seus erros, jamais teria nascido para aquela vida de horrores.

"E quem lhe disse isso?" Não sabia o quão profundamente a pequena lia ou compreendia suas sensações, mas procurava manter as emoções abaixo da superfície, apenas a calma profissional em seus pensamentos.

"Você é difícil de ler.” Desconversou a criança, fitando-a nos olhos com a intensidade que se via nos olhos de felinos. “Só vejo seus pensamentos mais intensos. E sobre o que perguntou… Todo mundo aqui sabe."

"E como sabia que eu viria?" Era crucial saber o que haviam dito à criança, e o que corria de boca em boca por aquela base. Poderia bem estar rumando para uma armadilha e, se fosse o caso, deveria saber.

"Você foi presa em Nuremberg, onde conseguiram seu sangue. Eu fui feita a partir dele, sou metade você… Agora está amarrando as pontas soltas, e cortando as consequências…" O medo implícito nesse pensamento fez Natasha se revoltar:

"Eu não vim para te matar, Lucy. Vou tirar você daqui, junto com os outros jovens, e levá-la para um lugar seguro."

Houve um brilho de esperança no olhar da garota, que pela primeira vez ergueu o rosto durante a conversa, mesmo que parecendo confusa:

"Por quê?"

"Porque vocês são inocentes, e você, em especial, não tem culpa do que fizeram. E como disse…Eu sou sua mãe. Não posso tirá-la daqui nesse momento, mas em alguns dias meus amigos virão. Mas preciso de sua ajuda. Pode fazer isso?" Dizer-se mãe daquela coisinha foi provavelmente a coisa mais estranha que já fez; Natalia Alianovna Romanova nunca fora criada para a maternidade, e isso sequer passara alguma vez por sua mente, em todas as longas últimas décadas. Olhava para a pequenina e sentia, sim, um forte instinto de proteção, como teria por qualquer criança, e um senso extremo de responsabilidade, pelas circunstâncias que a haviam gerado, mas não havia ali o mítico elo sobrenatural que ligava a mãe e sua prole, tampouco o instinto do qual sempre ouvira falar. Por outro lado, havia profunda identificação, pois também fora, um dia, cobaia da HIDRA, e sabia exatamente como era crescer daquele jeito. Em que situação conseguira se meter, Natasha! Bem, se a pequena era mesmo metade de si, talvez pudessem trabalhar juntas em prol de interesses mútuos.

A criança se encolheu um pouco, em dúvida, pensando sobre os riscos e benefícios, antes de sua voz mental soar novamente:

"Vai tirar todas as outras crianças daqui, e destruir esse lugar. Promete?"

“Vim para cá com essa missão, Lucy. Você tem minha palavra de que farei o que pede."

"Então eu vou te ajudar. Mas não posso fazer muita coisa. O que quer de mim?" Os bracinhos se descruzaram pela primeira vez, mostrando a respiração acelerada de apreensão.

"Preciso que faça tudo o que lhe pedirem, enquanto eu estiver aqui. Serão apenas alguns dias. Pode fazer isso?"

A careta de desagrado da menina quase se tornou uma resposta negativa, antes que pensasse por uns minutos e assentisse fracamente, unicamente por sentir a verdade nas palavras da espiã. Seriam só alguns dias… Precisava evitar que a vigiassem, para ser mais fácil fugir. Para que a deixassem com as outras crianças.

"Vou fazer, mas só porque quero sair daqui. Não quero ir para os tubos. Você vai me avaliar?" Agora sua expressão era de medo: compreendia muito bem que Natasha agiria como Melinda Lambert para manter o segredo, e isso a aterrorizava.

"Fora dessa sala, para todos os outros, eu sou a doutora Lambert. Terei de agir como ela. Farei tudo o que puder para que não te machuquem, mas os procedimentos costumeiros continuarão. Você entende?"

"Entendo. Não muda nada." Os olhinhos azuis se encheram de lágrimas, mas não derramaram nenhuma. Há meses a garotinha desistira de chorar, porque lágrimas só tornavam tudo pior.

"Só por mais alguns dias. Está terminando, pequena. Eu sei que não tem motivos para confiar em mim…"

"Eu sei quando alguém está mentindo. Você não está." Apesar do tom ríspido e impaciente, Lucy tinha um leve sorriso triste e cansado no rosto, e o sorriso parecia capaz de dilacerá-la ainda mais do que saber a que coisas a capacidade de sorrir da criança tivera de sobreviver. "Vou te ver de novo, a sós?"

"Não sei. Tentarei, mas não posso prometer. Depois que sairmos daqui, porém… Sim." Natasha se levantou devagar, vendo que passara mais de meia hora ali dentro. "Seja paciente. Vai sair daqui, eu prometo."

Com um suspiro pesado, a menina assentiu, e então voltou a abraçar os joelhos e se encostar à parede, confusa entre euforia pela perspectiva de sair dali, e a sensação de não saber o que aconteceria depois que saísse. Sua mãe não viera ali para matá-la, mas tampouco parecia amá-la. O que aconteceria consigo era um mistério e, por alguns momentos, a pequena mutante ponderou se morrer não seria o melhor caminho.

Do lado de fora, Natasha já não pensava em Lucy de modo pessoal – isso teria de esperar o momento em que estivesse sozinha em seu quarto – mas transmitia a Izmar uma avaliação completa de suas impressões:

— Não estão lidando com essa criança do modo correto. Ela é... Um milagre, e criogená-la, fazer cópias mais passivas, seria uma perda sem fim. Sua inteligência e capacidade de compreensão são superiores às de muitos adultos, e uma argumentação lógica é muito mais eficaz do que o sistema de punição e recompensa. Lucy é uma supra-humana, e está sendo tratada como um cão teimoso. Não irá reagir positivamente, se não levarem em consideração seu potencial.

— Parece que concordamos em algo, doutora; contudo, precisarei que diga tais palavras diretamente aos diretores do programa, hoje, mais tarde. Sua avaliação certamente os fará repensar os métodos, e daremos continuidade ao Projeto Lucy como concebido.

Natalia anuiu, e caminhou com Hecker para os laboratórios de testes. Havia dezenas de outras crianças, todas cobaias, todas servindo como fornecedoras de genes, ou receptáculos a serem aprimorados. Romanoff sabia, contudo, que eram projetos secundários. Todo o foco daquelas pesquisas era Lucy, e o potencial alcançado em um ser humano geneticamente perfeito. E mesmo sem que lhe dissessem, sabia uma coisa: com ou sem criogenia, em breve a criança seria não apenas clonada, mas, tão logo entrasse na puberdade, teria seus gametas utilizados para reproduzir novas combinações de mutantes aprimorados, com novos poderes, personalidades e potenciais, mas todos pertencentes ao que vinham chamando de “a aurora da nova humanidade”. E para isso haviam reunido os cientistas: essa etapa estava por começar.


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Notas finais do capítulo

E então? Ansiosas por mais? Gostaram do que leram? E como está o desenvolvimento da Natasha? Sua conversa com Lucy, a interação entre Steve e Clint?
Obrigada de todo o coração a todos que leem, acompanham e comentam!
Beijos enormes, e até breve!!!