O Nascer da Primavera escrita por Saturn san


Capítulo 4
Capítulo 3 - Tormenta e a chegada da cavalaria


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem, nesse capítulo tentei ser mais profunda e "poética" na escrita.



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 Deitou-se sobre um telhado cinza, encarando os raios de sol do meio-dia que já iluminavam a cidade. Naquela manhã as donas de casa decoravam suas mesas de jantar com belos vasos decorados de flores e ficavam admiradas com seu jardim florido com a chegada da primavera. As crianças, no entanto, quase nunca ficavam animadas, para elas Primavera era Primavera, apenas uma estação sem nada de especial. Não podiam brincar de guerra de bola de neve como no inverno, já não haviam mais montanhas de folhas para pularem como no outono e também não haviam as férias de verão e clubes abertos. Mas por sorte a Primavera era resgatada, o tédio chegava ao fim com a Páscoa.

 No fundo, Prim sentia-se inútil. Não era a primavera que as alegrava, era a Páscoa, um feriado que caçavam ovos e se esbanjavam na gostosura do chocolate. Ninguém nunca soube de sua mísera existência ali, ela era só uma figurante que assistia de longe e tentava não atrapalhar o trabalho alheio.

 - As flores estão tão lindas hoje! – Uma voz ecoou de dentro do estabelecimento.

 Prim apoiou suas mãos na borda do telhado e virou sua cabeça para baixo, a camada cabeluda sedosa como uma cachoeira. Observou pelo canto de uma janela, só então percebendo que aquele lugar era uma modesta, porém bela, floricultura. Talvez seu instinto interior pelas flores?

 A sua frente havia uma bela jovenzinha de aparentemente dez anos, olhos castanhos escuros e redondos. O cabelo castanho avermelhado e cortado um pouco acima dos ombros, com as pontas repicadas. Algumas sardas claras – quase imperceptíveis – espalhadas pelo rosto.

 A garota usava apenas uma blusa branca e short marrom, por cima um avental amarelo com flores azuis bordadas.

 Ela pegou um vaso de azaleias cor-de-rosa, alinhando entre um vaso de copos de leite à esquerda e um vaso de prímulas amarelas à direita. Uma mistura inocente, colorida e feliz.

 Prim entrou no estabelecimento, passando pela janela aberta e pousando ao lado da garotinha. A pequena estendeu suas mãos e pegou um borrifador, borrifando água nas pétalas das plantas e então caminhando até uma estante, organizando saquinhos de sementes e fertilizantes.

 Ela arregaçou as mangas da blusa e ajoelhou-se no chão, cavando com uma pá pequena de mão  terra de um vaso pequeno. Observou por segundos até selecionar um dos pacotinhos a uma caixa a sua frente, pegou um de violetas. As mãos pálidas e pequenas estavam cobertas de terra, com sujeira embaixo das unhas, mas que não parecia incomodar a garota. Após segundos olhou orgulhosa para seu vaso, como se fosse sua mais nova criação.

 Prim inclinou-se, acima dos ombros da garota, olhando curiosa. A pequena parecia ter um interesse único em jardinagem, colecionando as flores e dando vida aquele ambiente.

 Um pequeno sino tocou sobre a porta, indicando a chegada de um cliente. A garotinha se levantou e limpou as mãos no avental, caminhando e cumprimentando o cliente recém-chegado, perguntando com gentileza o que desejava.

 O vaso estava de frente para a representação da Primavera. Ela observou mais atentamente; embora bem cuidada, aquela florzinha demoraria algumas semanas para florescer e necessitaria de muitos cuidados. Primrose observou a garotinha que estava de costas para ela, conversando com uma mulher magra e alta que parecia interessada em tulipas e adubo orgânico.

 Estendeu seu dedo indicador sobre o vaso, girando em pequenos círculos. Pontinhos brilhantes rodopiaram sobre a terra em uma dança silenciosa, cumprimentando os pequenos caules e folhas surgindo, sendo acompanhados do desabrochar das pétalas violetas e perfumadas. Em poucos segundos, a flor havia terminado de florescer e preenchia todo o vaso, como se tivesse sido cuidada há vários dias para chegar aquele resultado.

 Prim orgulhou-se e abriu um sorriso nos lábios rosados. Foi um alívio as duas outras ainda estarem distraídas conversando, enquanto a garota procurava os produtos na prateleira, não pareciam perceber nada.

 A garotinha se virou, segurando em sua mão dois sacos pequenos de adubo, indo até um balcão com uma registradora em estilo mais antiga – algo raro nas lojas nos dias de hoje. A mulher o dinheiro e saiu da loja com os dois sacos pequenos de adubo em uma sacola e um vaso com tulipas amarelas.

 Minutos se passaram, enquanto a garotinha ainda estava concentrada na caixa registradora, de vez em quando olhando se algum novo cliente não chegava. Debruçou-se sobre o balcão e assoprou um fio que caía sobre os olhos. Um conjunto simples e pequeno de lustres pendurado no teto de madeira era a única iluminação ali além da luz do Sol. Era um lugar novo na cidade, isso Prim sabia porque até ano passado, ali era uma simples loja de doces, e a julgar pelos poucos vasos e produtos que tinha ali, haviam se mudado há pouquíssimo tempo. Os pequenos e redondos olhos castanhos varreram os cantos do local, até notar e focar em o vaso que estava ali no chão. Soltou um suspiro admirada e caminhou – quase hipnotizada – até onde estava o vaso, que antes onde ela havia plantado algumas sementes, violetas já estavam totalmente florescidas e desabrochadas. Seus finos e sujos dedos pegaram o vaso e olha olhou ainda mais admirada. A garota não podia ver, sentir ou ouvir Primrose, que observava concentrada com um sorriso para a jovenzinha a sua frente.

— Mamãe, olha isso! – A garotinha falou, quando notou uma mulher baixa e gorda entrar por uma porta na parede de trás do balcão. Levou o vaso até a mulher que riu.

— Muito bom, Genna. – Respondeu. – Está melhorando na plantação.

— Mas eu não fiz isso. Eu apenas coloquei sementes há minutos atrás, a planta nasceu sozinha.

 A garotinha mostrava-se curiosa, admirada e quase apavorada, tudo ao mesmo tempo. Não era a primeira vez que isso acontecia com Primrose, sempre que se descuidava, acabava por trazer uma flor morta de volta a vida, ou fazer nascer uma flor que acabava de ser plantada. Os humanos se encantavam com aquilo, um “milagre”. Mas mesmo que testemunhasse aquilo com seus próprios olhos, nenhum crédito ou palavra era citado a Prim.

— Bem, talvez seja Primrose Spring. – A mãe disse, não parecendo tão maravilhada.

 Prim levantou sua cabeça, olhando para a mulher baixa de cabelo curto. Fazia quase uma década desde que seu nome não era citado, ainda mais com tanta convicção. Se aproximou das duas que estavam atrás do balcão, seu olhar brilhando com as palavras daquela mãe que era um das pouquíssimas, quase extintas, pessoas que a conheciam.

 - Primrose? – A menina perguntou.

— Quando eu era pequena, minha avó me contava a lenda de uma garota que costumava trazer a primavera para todos os continentes. Ela disse que alguns poucos moradores ouviam um sussurro ecoar pela cidade toda vez que a primavera chegava. Primrose Spring era o que sussurrava toda noite para eles. É ela quem faz a primavera acontecer, faz nascer e crescer toda a flora.

— Eu nunca ouvi falar disso, mamãe.

— É porque a lenda é pouquíssima conhecida, ninguém nunca acreditou.

 Prim abaixou sua cabeça, decepcionada.

— Você acreditava quando criança? – A menina perguntou, Prim levantou o olhar.

— ...Quando criança, sempre quis ver Primrose com meus próprios olhos. – A mulher disse, acariciando uma folha de samambaia. – Sempre que a primavera vinha, eu me emocionava e esperava ver a garota. Mas nunca, nem sequer por um segundo eu a vi.

— Então ela não existe? – Prim notou a feição triste que se formava no rosto da pequena garotinha, sua mãe se agachou, segurando delicadamente seu rosto.

— Nunca deixe de acreditar, Genna. Quem sabe você não tenha um pouco mais de sorte do que eu?

 Um sorriso se formou nos lábios da garotinha que segurou mais firmemente seu vaso. Tudo o que não sabia era que nesse exato momento, o espírito da primavera escutava cada palavra que diziam, sentindo uma ponta de esperança brotar em seu coração, o mesmo sentimento familiar que nascia na garotinha. Nada estava perdido.

 Afundada naquela emoção provocada por palavras, Primrose não percebeu quando um raio atravessou o céu escuro que se formava ali. O vento estava forte e vinha pela janela de forma violenta, trazendo folhas, galho, frio e desespero. Genna correu e trancou as janelas com pressa, logo fechando a porta e virando a placa para “Fechado”. Prim notou que todos os habitantes  da cidade corriam para dentro de suas casas e lojas com medo do temporal que ameaçava. Ela voou para cima e atravessou o telhado da loja, observando com mais nitidez o que acontecia.

 O céu estava marrom como uma tempestade que chegava sem avisar, com um tom vermelho e clarões sobre as nuvens. A tormenta era um berço para que o desespero e pânico nascessem na alma de qualquer um, o aviso do fim do mundo, a mensageira de um inevitável apocalipse. Tempestades nunca eram bons sinais, justamente pelo sentimento que provocavam com sua intimidação.

 Prim podia sentir um cheiro no ar, algo queimando com sua raiva, alastrando a fúria. Ela podia sentir o cheiro de medo que os habitantes inalavam. Ergueu seu cajado no ar, apontando para as nuvens. Ela não era responsável por controlar o tempo, mas nada podia estragar a primavera, o medo não podia afetar o seu belo trabalho e a alegria que trazia. As nuvens escuras começaram a formar um moinho, mudando para o azul claro que Primrose se esforçava para trazer, ao menos em sua estação ela podia ajudar o tempo em um leve “empurrãozinho”. A energia era drenada de seu corpo por ela mesma, era uma batalha silenciosa onde seu oponente permanecia quieto e escondido. Tudo o que se podia ouvir era o som dos trovões. 

— Vamos, dá uma ajudinha... – Prim murmurou, esforçando-se mais e mais para que o tempo mudasse. Finos, quase não visíveis raios de sol escapavam pelas nuvens.

 Quando pensou que estava perto de conseguir um resultado, um raio acertou seu corpo e a jogou para longe, ela caiu e rolou sobre um telhado plano de um pequeno prédio. Sentiu uma dor latejante em seu peito, o fôlego escapando. Mortos não podia morrer duas vezes, mas ela sentia o gosto do fim da vida no céu de sua boca. Seu cajado estava jogando ao seu lado, exibindo uma luz fraca e sem cor, com sua energia drenada e demorando para se restaurar. Não entendia o que acontecia, ela sempre havia conseguido pelo menos causar uma fina chuva na primavera, mas não havia sido capaz de fazer nuvens se moverem.

 Não...aquelas nuvens não eram leves, não eram normais...

 Pensou consigo mesma, olhando para sua mão, ainda ofegante. De certo modo, a sensação de dor e morte junto com o fracasso era uma sensação familiar. As nuvens eram pesadas, sentiu que arrastava uma simples corrente presa a inúmeras bolas de peso feitas de aço. O que provocou aquilo com certeza estava acima dela, um poder que jamais havia testemunhado antes, um mal que estava escondido até agora. Não era um guardião, a presença era muito diferente.

 Mesmo que borrado, conseguia enxergar as nuvens escuras sobre a cidade. A dor parecia aumentar cada vez que pensava em se levantar e voltar a tentar. Relaxou seu corpo e virou-se de barriga para cima, como alguém que observa as estrelas a noite. Ela observava o pânico nascendo no céu e descendo para o chão, amedrontando cada coisa que se mexesse ou respirasse a sua frente. A densidade do ar ficou pesada como mil toneladas, a tormenta chegava.

 Então, uma aura diferente a rodeou. Duas sombras negras e grandes apareceram em frente a Primrose, ela nem sequer havia notado quem –ou o que- havia chegado ali. Seu corpo foi levantando e segurado pela criatura, sendo ninada como um bebê. A esboçada imagem de seu cajado estava sendo segurada pelo outro ser, de mesma espécie daquele que a segurava, mas ela não conseguia enxergar. Alguma coisa tremeu por curtos segundos quando seu corpo foi colocado sobre algo macio, mas sentia-se relaxada, resgatada do medo e da tormenta que tentou captura-la. Não entendia o que estava acontecendo, mas não se esforçava para pensar, tudo o que queria era relaxar e recuperar a última brecha de vida que lhe restava. Abraçada a seu cajado, seu corpo parecia mais leve, parecia flutuar sem ter que sequer tentar. Visualizou acima de sua cabeça algo branco, azul, um brilho pálido. Como neve de uma manhã ensolarada mesmo no inverno, uma imagem calma que retira todo peso do coração, algo que nunca sentiu antes. Era a própria cavalaria que vinha ao resgate de um companheiro ferido, fazendo aquela força fraca de antes se tornar mil vezes mais forte, uma esperança renascida do desgosto da derrota. Pela primeira vez em cento e onze anos, ela já não estava mais sozinha.


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Notas finais do capítulo

Agora que termino este capítulo, paro para pensar, um guardião pode morrer? Sandman morreu e ressuscitou, mas nunca mostrad sua primeira morte antes disso ou se ele sequer foi humano. Jack é imortal, isso sei. Mas e Prim? Ela pode morrer? Hm....



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