Uma Canção de Neus Artells escrita por Braunjakga


Capítulo 9
O conquistador




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/777005/chapter/9

Tàrrega, Catalunya

11 de Agosto de 1714

 

I

 

Amanhecia um céu sem nuvens no interior da Catalunya.

Na praça central de Tàrrega, um quadrado de concreto cercado de prédios de três andares de altura, um grupo de cinco prisioneiros acorrentados nos pulsos eram levados por soldados espanhóis diante de Gerard e Zigor.

Os prisioneiros eram líderes das tropas de miquelets e coronelas da cidade e haviam duas mulheres entre eles.

A líder principal do grupo era uma mulher de nome Carme, o que espantou a todos do exército porque mulheres não iam à guerra. Isso gerou horas de interrogatório questionando se não acobertavam ninguém.

Pelos testemunhos dos moradores, foi confirmado que ela era quem liderava a tropa separatista na cidade.

Era exceção ver mulheres combatendo, principalmente em postos de comando, mas nas tropas de Miquelets e Coronelas de Santi Castell, aquilo era a regra para se ter a independência, a qualquer custo.

Gerard não gostava nada daquilo, mas o pelotão de fuzilamento já estava alinhado e preparado na praça.

Gerard, por cavalheirismo, foi até a mulher para ver se obtinha alguma palavra de arrependimento.

Fez o mesmo outras quatro vezes com os outros líderes da rebelião que preferiram usar seu tempo para xingar o rei e Gerard.

— Alguma última palavra?

— Você pode até cortar a minha cabeça, general, mas nunca, nunca vai calar nossos gritos de independência!

Gerard deu as costas e mandou os soldados se preparar.

Como ele era o comandante, a voz da execução era a dele:

— Em nome de Felipe, terceiro de seu nome, da Casa Bourbon, rei dos catalães, bascos e galegos, eu, General Gerard Bernat, sentencio você, Comissária dos Miquelets Carme Bassa, à morte por ser autora do atentado a bomba que nós sofremos com aquela carroça na entrada cheia de explosivos! Perdemos trinta, trinta soldados nessa brincadeira.

Era fácil matar. Difícil era encarar o peso daquelas mortes.

Foi fácil prender todo mundo, assim como foi em Lleida.

O povo de Tàrrega, em sua maioria, era separatista.

Bastou que ouvissem histórias da queda de Lleida e da vinda dos homens que não podiam morrer baleados para que o povo abrisse as portas da cidade e entregassem os líderes miquelets e coronelas ao exército espanhol sem resistência.

Afinal, o povo de Tàrrega só queria trabalhar e não queria ter casas e preciosas plantações de vinho devastadas como parte da guerra.

As devastações que Enric promovia em La pobla de segur, Tremp, Sort, Llagunes, Castellbó e toda Catalunya norte pesaram na decisão, pois muitos sobreviventes foram para o sul contar o que aconteceu.

O exército espanhol respeitou a vontade do povo de Tàrrega e não repetiu as ações de Enric na cidade.

O mesmo aconteceu com Balaguer, Tortosa, Cervera, Montblanc, Artesa de Segre e Solsona, igualmente poupadas.

Mas outras cidades ainda resistiam aos avanços do exército espanhol e nem sempre a chegada de tropas era bem recebida.

Se não conseguiam combater em campo aberto, eles se rendiam ou recuavam para engrossar a fileira de soldados em Girona ou Barcelona.

Se os combatentes fossem pegos com vida, eram executados sem hesitação.

Diante do prédio da prefeitura de Tárrega, na praça central, uma fila de miquelets e coronelas, sob a mira de fuzis, com as mãos atrás da nuca, conduzidas por soldados do exército espanhol, era levado pela rua central da cidade para os campos lá fora.

Iriam para prisões em Teruel e marchariam meia Catalunya até lá.

Até o prefeito e alguns membros da administração municipal, tava no meio.

Sobre uma tenda gazebo, Gerard e Zigor conversavam com alguns oficiais do exército, até que dispensaram todo mundo e só ficou Gerard e Zigor.

Zigor entornou uma garrafa de rum e Gerard estava com cara de preocupado:

— Você sabe que o General Urrutia mandou a gente fuzilar eles, certo?

— Quem comanda isso aqui sou eu, Zigor!

— Só sei que não vai ter prisão pra todo mundo em Teruel…

— Então que vão pras américas! Já mandei um monte de Montblanc pra Valência e de lá, pra Cuba!

Zigor entornou um gole de rum e mudou de assunto:

— Daonde você tirou aquelas palavras bonitas, garoto, pra tratar bem aqueles filhos da mãe que tentaram matar a gente?

— De um livro que eu e a Neus lia quando a gente era criança; falava de um senhor nobre e leal que tratava todo mundo com justiça e respeito e não gostava de ter que fazer execuções como aquelas que a gente fez hoje de manhã; se ele tinha que fazer, já que ele era o senhor das terras e tinha que fazer justiça, nunca usava um carrasco, preferia usar sua própria espada pra isso; tinha uma frase que ele falava: a mesma voz de onde sai a sentença tem que brandir a espada da execução. A Neus gostava desse tipo de nobreza e lealdade e eu também…  

— Isso vale pra aquelas mulheres, garoto? – Perguntou Zigor, provocando.

— Isso tá errado! Lugar de mulher não é pegando em armas!

— Tá errado nada! O lugar delas é onde elas quiserem!

— Eu nunca permitiria que a Neus pegasse em armas por mim!

— Mas elas estão pegando, vai fazer o que? Vai mandar elas pilotarem fogões pra filhos e maridos que nunca mais vão voltar? A guerra tem suas consequências, essas mulheres já devem ter perdido tudo pra tomar uma decisão dessas…

Gerard calou-se e depois voltou a dizer:

— Zigor, já parou pra ver quantas mulheres disfarçadas de soldados a gente já encarou até agora?

— Se eu pensar nisso eu fico doido…

Zigor deu um gole demorado na garrafa de rum antes de continuar:

— Garoto, em campo de batalha, não existe sexo, cada um tá lutando pelo que acha que tá certo; ou são eles ou somos nós, ninguém tá lá por prazer, você entende? A não ser o Enric que acha graça nisso tudo…

Gerard recebeu com desdém a fala de Zigor; o mais velho gargalhou:

— Pensa nisso, garoto, vou falar mais uma vez: essas mulheres tomaram a difícil decisão de pegar em armas e lutarem pelo que acham que é certo, já devem ter perdido os maridos, pais, irmãos ou filhos ou tudo isso ao mesmo tempo e agora resolveram partir pra briga; quantas você vê com essa coragem nos dias de hoje?

— Uma coragem tomada por motivos inúteis que é uma alta traição ao seu próprio país!

— Sim, uma traição, uma traição julgada com toda a sua justiça e nobreza e não por prazer em matar, correto?

— Sim, mas…

— Mas ao mesmo tempo uma prova de coragem, força e ousadia por parte dessas mulheres; você vai negar isso?

— Eu não tenho como negar isso, mas… toda vez que eu vejo uma no campo de batalha, eu penso na Neus e não acho isso certo! Isso tá errado! Pra que isso?   

Enquanto falavam de mulheres no campo de batalha, duas mulheres de armaduras vermelhas como sangue desceram ao lado da tenda gazebo onde estava os dois, vindas do céu.

Uma tinha um imenso escudo nas mãos e a outra tinha uma cimitarra numa bainha na cintura.

A mulher que tinha um imenso escudo nas mãos era tão branca, olhos tão cinzas e tinha os cabelos tão loiros, tão galegos e tão curtos que parecia ser transparente.

A outra era morena, feições árabes, cabelos longos até a cintura que parece ter vinda do norte da áfrica ou da arábia.

— Ora, deixa disso, Gerard! O lugar dessas mulheres, traidoras ou não, é onde elas quiserem! Ou vai mandar a gente pilotar fogão também? – Disse a mulher branquíssima.

— O nosso Interventor Gerard nao vive num mundo de igualdades como a gente, Pietra, ele não sabe o que é isso! Muito tempo vivendo com os comuns, e as mulheres comuns são todas umas coitadas! Cruzes!  

— Pietra, Nadja! Fazendo uma visitinha? Aceitam rum?

Zigor levantou a garrafa de um e ofereceu um gole para elas

— Deixa pra lá…  – Disse Pietra, a mulher galega.

— Eu quero! – Disse Nadja, a árabe.

Zigor tirou uma garrafa de uma caixa que estava na tenda e jogou para Nadja.

Gerard irritou-se vendo as duas:

— Mas que diabos vocês duas fazem aqui?

— Oras! Eu vim ver como vocês estavam; ou você é machista como os comuns, Gerard? – Disse Pietra.

— O que é Machista? – Gerard estava realmente confuso.

Nadja, Pietra e Zigor gargalharam:

— O nosso senhor Gerard não sabe o que é isso, Pietra! Muito tempo entre os comuns!

— Mas se o Gerard precisar da gente para lutar, ele chama, não? Como interventor líder da Ordem é o dever dele, correto?

—  Sim, mas eu não chamei vocês aqui, Pietra! Eu já disse que a Catalunya é assunto meu e eu não queria nenhum outro interventor do meu lado!

— Sim, Gerrard, mas o que o Zigor está fazendo aqui? – Perguntou Pietra.

Zigor levantou as mãos para o ar como se quisesse dizer para Gerard “tá vendo? elas te pegaram!”

— Eu pedi a ajuda dele por ele ser um veterano da guerra dos segadores, só isso…

— Gerard, eu sou a interventora da Galícia, Pietra Beltrán, uma das três grandes, junto com você, entenda bem! – Dizia Pietra, apertando as bochechas de Gerard. – Você não está sozinho nessa! Você tem a gente! Você pode pedir ajuda quando quiser! Isso não é fraqueza! A Ordem têm que estar unida nesse momento de desafio a nossa soberania que estamos enfrentando...  

— E pelo visto o Enric não era o que o senhor esperava, Senhor Gerard…

— Não mesmo… Mas pelo jeito que vocês falam, parece que eu tenho mais um problema além dos separatistas e do Enric, não é?

— Sim, meu senhor, eu quem o diga. – Prosseguiu Nadja. Ontem mesmo eu prendi em Málaga um mago inglês.

— Um mago inglês? Indagou Gerard.

— Sim. Ele tava fugindo de Gibraltar quando eu encontrei ele. Um capitão inglês queria levar ele de volta, mas eu tive que matar o capitão antes de ele conseguir fazer isso e prendi o mago inglês comigo. Levei ele pra Toledo…

— Matar?

— Sim. Ele tava invadindo a gente de Gibraltar pra pegar o Mago inglês que eu peguei…

— Mas que Mago inglês é esse que saiu de Gibraltar? Isso não me soa bem…

— Você se lembra, garoto, daquilo que o Enric falou na sala do trono? Os separatistas estavam atrás de uma arma mágica em Gibraltar; aquele cara que o Enric tava tentando reviver era um dos ladrões! Ele me contou… e, pelos informes do Enric, eles conseguiram a arma… talvez os ingleses tenham mandado esse mago ir atrás da arma que eles mesmo perderam…

— Faz sentido…

— E olha que eu falo pra vocês que deu trabalho prender ele! Ele é muito poderoso! Não é só um mero capacho, senhor Gerard, Zigor! Por isso eu pedi a ajuda da senhora Pietra!

— Será que esse mago não está ajudando os separatistas? Já pensou nisso, Gerard?

— Eu ainda nem tive tempo pra pensar nisso, Pietra, nem recebi os informes do Enric… Mas esse negócio de mago inglês me preocupa… Já me basta uma frente de guerra aqui, agora ter que abrir outra em Gibraltar é o terror! Eu quero saber quem esse mago é! Pietra, você fica no meu lugar e ajuda o Zigor no que precisar! Nadja, vamos!    

— Sim, meu senhor!

Nas costas de Gerard e Nadja, asas invisíveis de traços vermelhos apareceram. Eles levantaram alguns metros na atmosfera e Pietra aproveitou para conversar com Gerard:

— Senhor Gerard, o senhor precisa acreditar mais no Enric; ele é o seu sucessor na ordem! Vocês precisam se entender!

— Eu já tentei me entender com o Enric, Nadja, eu tentei, mas acho que ele pensa que isso aqui é diversão, e não é bem assim!

Gerard levantou voo e foi com Nadja até Toledo e as últimas palavras de Enric, na sala do trono, surgiram em sua mente:

“Não só conseguiram como também meu contato em Gibraltar viu tudo em pessoa. Pena que levou um tiro no ombro e morreu. Meu outro contato em Sabadell disse que a arma agora tá nas mãos de uma moça, ela tá indo pra Setcases, nos Pirineus, Majestade, uma moça sardenta e ruivinha.”

 

Continua…   


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Uma Canção de Neus Artells" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.