Uma Canção de Neus Artells escrita por Braunjakga


Capítulo 3
O General




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/777005/chapter/3

Capítulo 2

 

O General

 

I

 

Madrid, Espanha

4 de agosto de 1714

 

Tarde

Um pássaro voa sobre um palácio em uma colina.

Aquele era o Real Alcázar de Madrid, sede do rei de Espanha.

Lá dentro, em uma sala com janelas voltadas ao oriente, andando inquieto, El Rey, Dom Felipe III, de Bourbon estava inquieto.

Às vezes, ele olhava uma tapeçaria vermelha atrás dele. A tapeçaria vinha com um brasão retalhado em quatro partes que ameaçava ser retalhado mais ainda a qualquer hora.

Era o brasão com os quatro principais reinos que formavam a Coroa de Espanha.

Abaixo dele, estavam quatro homens, igualmente nervosos com os passos do rei.

— Majestade, eu já alertei os bispos da Cataluña, eles não vão apoiar a rebelião! – Disse um homem barbudo com uma mitra na cabeça e báculo dourado na mão.

Era Dom Gabriel Garcia, Cardeal Arcebispo de Toledo.

— E quantos bispos responderam, eminência? – Perguntou o rei calmamente, firme, com forte sotaque francês.

— Bem, Majestade, só os bispos de Barcelona e Tarragona e…

— Que Maravilha! – Ironizou El Rey.

—  Majestade! Logo os outros vão acompanhar! Recebi uma mensagem positiva de Lleida e…

— Ou seja, a região inteira tá na mão dos separatistas! Majestade, eu insisto: uma ação militar firme, contundente em Lleida vai fazer eles terem medo da gente!

Interrompeu um homem fardado de azul e dragonas douradas de general nos ombros. Era Dom Pablo Urrutia, comandante de todo o Exército Espanhol.

— Devo lembrar, meu caro General, que as minhas cartas foram uma reação a sua campanha falida em Lleida que nos custou muitos soldados. – Respondeu o Cardeal.

— Acho que a gente tinha que ter feito como os ingleses, ter prometido terras e títulos pros nobres catalães e já acabava logo com isso!

Disse um homem gordo, corpulento e careca, vestido com um gibão elegante.

Era Dom Javier Lambam, Marquês de Teruel e primeiro ministro de El Rey.

— A gente já fez isso, mas Angel Colom rechaçou nossa oferta. O sucessor, Santi Castell, parece que não quer nos ouvir também, mesmo que o Arquiduque da Áustria tenha aceitado a Coroa de Viena e tenha abandonado suas pretensões ao trono de Espanha, metade da Catalunya parece escutar ele e pior: Ele tem ganhado força de onde menos se esperava!

Disse um homem de olhos azuis, careca na copa da cabeça com cabelos prateados crescendo dos lados, vestido com uma longa túnica branca e cinza. Era Dom Saul Martinez Garcia, Ministro do Rei para assuntos especiais.

— E de onde tem vindo essa força dele, Dom Saul? – Indagou El Rey.

— Estão queimando fazendas e cidades inteiras!

— Santa merda! Tão voltando o povo contra a gente!– El Rey passou as mãos na cabeça, se recusando a acreditar no que ouvia. – Que merda é essa, Urrutia?

Dom Gabriel Garcia, o Cardeal, sorriu:

— Está vendo, general, vocês fazem ideia de que monstros vocês criaram no lugar? Vocês mesmos estão mantendo a chama desse separatismo acesa! Que Negócio é esse, General Urrutia? Quem atacou Girona daquele jeito? Eu fiquei sabendo disso e fiquei horrorizado!

O general, indignado, respondeu:

— Eu não ordenei que queimassem Girona e nem sei quem foi! Só sei que apoio todo atentado contra os separatistas!

— Girona inteira é separatista? Ah, então você assume que foi você, General?

— E quem diz que não foram eles mesmos, Cardeal?

Os dois começaram a discutir e El Rey não gostou:

— Basta vocês! A cada vez que vocês soltam uma palavra mais um separatista nasce na Catalunya! Meu tio, Dom Carlos II de Habsburgo, me deixou um reino unido e eu vou entregar pro meu filho um reino unido! Me cansei de vocês!

Dom Gabriel Garcia e Dom Pablo Urrutia olharam assustados para o tom de voz usado pelo monarca:

— E minhas cartas, Majestade? Ainda não recebi respostas!

— Nem vai receber mais!

— Minhas tropas estacionadas em Saragoça estão prontas para agir, El Rey! basta uma ordem! São homens com experiências nas américas! Enfrentaram índios canibais! Estou pronto pra atacar Lleida a qualquer momento, dessa vez vai ser diferente! – Disse o General, desesperado.

— Chega, General, já deu! Eu já pensei numa solução para o problema catalão que não tem nada a ver com vocês e é mais efetiva pelo que eu pude ver, ou melhor, eles me demonstraram…

Os ministros se calaram. Olharam-se silenciosamente tentando adivinhar que solução El Rey tinha encontrado.

— Somos seus conselheiros, sou seu general! Que solução é essa que a gente não sabia?

— Não sabiam porque eu só contei para Dom Javier hoje e exatamente hoje, nesse exato momento, um grupo chegaria nas portas do palácio. Eles são a minha solução. Eu já conversei com eles e já dei permissão para que entrassem. E por falar nisso,  Dom Javier, eles já chegaram?

— Vou conferir, majestade…

O primeiro-ministro foi até a porta daquela sala, abriu e falou com um soldado que estava fora. Dom Javier voltou sorrindo.

— Estão sim, majestade! Já chegaram como previsto há uma hora.

— Porque não me falaram?

— Não queriam interromper a reunião, majestade!

— Minha reunião agora é com eles! Peça para entrarem!

Dom Javier deu o recado para os soldados e, em instantes, a porta tornou a abrir novamente.  

Entraram na sala três homens para a surpresa dos ministros.

 

II

 

Os homens vestiam fardas como as do exército espanhol, só que vermelhas como sangue e carregavam armas nas costas, igualmente vermelhas como sangue.

O primeiro homem era um homem de cabelos grisalhos, barba longa apenas no queixo e bigode, pele branca como a neve e olhos cinzas. O homem era esguio e magro, tinha um cheiro de rum que mais parecia perfume e carregava uma espada de duas mãos maior que ele nas costas.

— Como diabos ele carrega isso? – Indagou o General Urrutia.

Os outros dois homens eram rapazes.

Os dois tinham um arco nas costas, mas sem um estojo para guardar flechas.

O mais adiante deles era loiro sem barba, pele rosada, corpo robusto, olhos azuis e muito bonito.    

O mais atrás tinha também olho azuis e corpo robusto, mas tinha também uma barba volumosa no rosto e um cabelo castanho denso na cabeça.

— Com certeza são mercenários! – Cochichou o Cardeal Garcia para Dom Saul.

— Eu acho que é coisa pior eminência, muito pior… – Respondeu Dom Saul.

O rapaz loiro foi quem falou primeiro:

— Majestade, Sou Enric Miró, sub interventor da Ordem do Dragão em Catalunha e porta-voz geral da Ordem, aos seus serviços!

Um arrepio subiu na espinha de Dom Saul quando eles começaram a falar:

— Majestade, o que é isso? Eu exijo saber que métodos eles vão usar na Catalunya!

— Não se preocupe, Dom Saul, nada que envolva o seu departamento de “assuntos especiais”. O que eles fizerem é problema meu!

— Mas Majestade, isso é sério! Como isso vai ser visto na Europa?

O ministro não teve resposta.

— Tá vendo o careca alí, garoto? Ele é Dom Saul e é o dever dele garantir que magia não seja usada na frente dos comuns, tá entendendo?

O rapaz de cabelos castanhos fez sim com a cabeça.

— Ordem do Dragão? Nunca ouvi falar… – Disse o General Urrutia.

— Devem ser mercenários catalães! Sua majestade vai usar catalães contra catalães! Cochichou o Ministro Lambam para o general Urrutia.

— Então devem ser eles que queimaram Girona, não? – Indagou Dom Saul.

— Dom Enric. – El Rey Sorriu. – No nosso primeiro encontro o senhor me mostrou coisas “fantásticas” que me surpreendeu muito. Eu tenho certeza que essas coisa fantásticas vão fazer pelo reino o trabalho que cartas e fuzis não fizeram.

— Em um mês a Catalunha será do senhor, majestade, isso eu garanto! – Disse o homem grisalho.

— Em um mês? – gargalhou o general – Estamos lutando há 14 anos e não avançamos nada na Catalunha, nada! Agora vocês um bando de mercenários com armas antiquadas me fala que vai conquistar a Catalunha em um mês? Ficou bêbado, foi?

O homem grisalho olhou para o General Urrutia de forma intimidadora.

— General Pablo Urrutia, né? Eu me lembro do seu pai, Iñigo Urrutia, e de quanta merda eu tive que limpar da bunda daquele bebê chorão na batalha de Osona! Ele levou uma bala na bunda e ficou no meu pé “Ah, Eu não posso morrer, eu não posso morrer! Eu tenho filho novo pra criar! Eu acabei de voltar do inferno das Américas e não posso morrer aqui! Por, por favor, me salva!”. Levei uma bala por ele, mas salvei a vida daquele merda, aqui, ó! – O homem grisalho apontou para um corte na testa. – Tomei um tiro e não fiquei fazendo cena! agora o cara toma um tiro de raspão na bunda e fica se borrando todo? Até a calça do cara tava mijada! Esse é o nível dos nossos generais?

O homem grisalho gesticulava e encenava a situação na frente de todos e os ministros tentaram conter o riso. Enric Miró, o rapaz loiro, sorria freneticamente, colocando a mão na barriga de tanto que riu.

O General Urrutia, humilhado, sacou o sabre e apontou para o pescoço do homem grisalho:

— Maldito! Tou no exército há quase 50 anos e sei o que é real e o que não é! Tou vendo aqui muita coisa difícil de acreditar! A batalha de Osona Foi há 60 anos! Como você tava com o meu pai?

O homem grisalho sacou a espada enorme das costas com uma mão só e desarmou o general com um simples movimento:

— Com a mesma facilidade que eu tou segurando essa merda aqui na minha mão e apontando pra você! Eu podia muito bem enfiar isso aqui no seu rabo e te fazer chorar como seu pai chorou naquela guerra!

— Parem vocês dois! – Gritou El Rey.

— Interessante, um homem que vive há mais de sessenta anos já deveria ter oitenta, noventa agora e esse aqui tá bem na flor da idade! Acho que já estou entendendo o que eles vão fazer; Majestade. – Dom Saul estava rubro de raiva. – Exijo mandar um observado!

— Negado, Dom Saul! O senhor vai ficar aqui em Madrid comigo!

— Isso vai justificar qualquer ação ilegal por parte dos separatistas, majestade! Eu sou o único capaz de parar essas “ilegalidades”; eu já tou avisando!

— Eles já estão tomando ações “ilegais”, Ministro, e o senhor não moveu uma vírgula pra detê-los! Violaram a soberania de outro país pra destruir a nossa e cadê nosso ministro?

Enric olhava para o ministro zombando-o e desafiando-o com os olhos.

— Eu já estou de olho nisso, Senhor Enric!

— E eu já estou agindo, ministro, fazendo o serviço que o senhor deveria fazer.

— Então continue, Dom Enric! Não tenho mais nada a falar!

Dom Saul não falou mais nada naquela reunião.

— Eu não disse, Garoto? O que eu falei do careca? – Disse Zigor para o rapaz de cabelos castanhos.

— Não quero mais discussões aqui! E, Senhor Zigor Iñigitz, por favor, peça perdão ao general Urrutia! Ele é o meu comandante geral e vocês estão sujeitos à autoridade dele!

Zigor, o homem grisalho, embainhou a espada.

— Então a gente vai conquistar a Catalunha e ele vai levar o crédito sem fazer esforço nenhum… hum – Zigor ficou alisando e enrolando a barbicha branca no queixo, olhando para Dom Pablo – … Muita coisa aqui difícil de acreditar… – Zigor disse debochadamente, entregando o sabre ao General que lhe olhava com dentes trincados de raiva.

— Senhores Zigor, Senhor Enric e Senhor Gerard – El Rey sacou seu sabre da bainha e os três se ajoelharam. El Rey colocou a ponta da espada em cada um dos ombros deles e foi fazendo isso de um em um. – Nos ombros de vocês eu estou entregando muita autoridade; vocês agora não serão nem forasteiros, nem mercenários. Vocês são homens a serviço do Rei! A partir de agora, vão se chamar Teniente-General Gerard Bernat…

— Teniente-General pra um rapaz tão novo? – Indignou-se Dom Pablo Urrutia.

El Rey continuou:

— Generais de División Dom Zigor Iñigitz y Dom Enric Miró, em nome do pai, do filho e do espírito santo. Amém!

— Amém! – Disseram todos.

Os três se levantaram e El Rey embainhou a espada.

— Você ainda continua como meu General de Exército, Dom Pablo e eu como Capitão General. – Voltando-se para os três – Podem pegar tantas tropas quanto quiserem dos nossos quartéis, generais.

— Majestade, vai ser mais seguro deixar eles aqui. – Disse Gerard, o homem de cabelos castanhos. – Como disse o Enric, apenas precisamos de tropas de apoio pra ocupar a região depois que a gente limpar tudo.

— Tudo bem, façam como quiserem, mas vão lá e recuperem a Catalunha! Não admito que, no meu reinado, o reino seja rachado por gente como Santi Castell!

— Muito menos eu admito isso, Majestade! – Disse Dom Gerard Bernat.

— Vão! Façam o que for necessário!

Os três se curvaram perante o rei e se retiraram.

Antes de sair, Dom Felipe chamou o homem loiro:

— Enric, antes de ir, me diz uma coisa: os separatistas conseguiram roubar mesmo aquela arma dos ingleses que você me falou?

— Como eu acabei de falar na cara de Dom Saul, Não só conseguiram como também meu contato em Gibraltar viu tudo em pessoa. Pena que levou um tiro de flecha no ombro e morreu.

— Sabe o que eles fizeram com ela?

— Meu outro contato em Sabadell disse que a arma agora tá nas mãos de uma moça, ela tá indo pra Setcases agora, nos Pirineus, Majestade, uma moça sardenta e ruivinha.

Enric aumentou o tom de voz e o homem castanho o olhou como se um raio caísse em sua cabeça.

— Quer que a gente vá lá?

— Agora, não, Enric, deixe seu contato em Setcases cuidar disso…

— E se ele tiver êxito, majestade, e conseguir as cartas, o que faremos da garota?

— Julguem e fuzilem ela por alta traição! não vou admitir qualquer outro tipo de violência desnecessária contra prisioneiros, entendido, Enric?

— Entendido, Majestade!

— Já me basta ter Girona incendiada pra botar o povo contra mim!

Enric saiu da presença do rei sorridente, mas Gerard Bernard voltou preocupado:

— El Rey, eu, como Tenente General exijo interrogar a moça antes de qualquer coisa!

— Como quiser, Gerard, mas isso não muda o fato de que quem age contra a Coroa e o Reino de Espanha merece ser punido!

— Tudo bem…

Os três saíram e Gerard ficou triste e melancólico com a revelação:  

“Neus, me diz que não é você…”, pensou.

Quando saíram, Dom Saul comentou com o Cardeal Garcia:

— Eu não disse, eminência, que eles eram coisa muito pior?

 

III

 

Lleida, Catalunya

6 de agosto de 1714

 

Noite.

Nos portões e muralhas de Lleida, atrás de um pilar de pedra, Um soldado espanhol engatilha o fuzil e atira contra a muralha.

Cinco tiros voam em sua direção e acerta o ombro do soldado.

O sangue do ombro sai numa velocidade espantosa; a farda azul do exército começa a ficar vermelha escura.

O soldado faz cara de dor e escorrega no pilar, tonto.

E depois morre.

Em alguns casos, os soldados têm a sorte de sobreviver e ser arrastado por um companheiro para fora daquele fogo aberto.

Quando morriam soldados o bastante, o capitão mandava todo mundo recuar.

Essa era a rotina daquele destacamento há um mês, tentando tomar Lleida em vão.

Se Lleida caísse, ficaria mais fácil atacar o interior da região e retomar o controle, mas enquanto isso não acontecia, os soldados buscavam uma saída.

— Droga! Tamo ferrado!

— Tamos tudo ferrados!  Nós somos os últimos do destacamento!

— Eu tou sabendo que já chegou um reforço de coronelas de Barcelona! E pra nós, nada!

— E o general Urrutia manda a gente pra esse inferno!

— Nem mesmo ele sabe como avançar!

— Mantenha suas posições, soldados! – Gritou um Capitão atrás de um dos pilares –  Em Breve reforços chegarão!

— Há quanto tempo a gente tá escutando isso e não vimos nada! Tamo ficando sem…

Três tiros perfuraram o pilar e acertam o soldado ferido na nuca e nas costas.

O chapéu de três abas que usava voou para o lado e ainda recebe um tiro.

— Droga, vamos todos morrer!

De repente, no meio do desespero, uma seta roxa voa de trás da fileira de pilares onde estavam os soldados e acerta um Coronela no alto da muralha. Ele grita e cai morto na frente do portão, coisa que nunca aqueles soldados fizeram antes.

— Mas, o que é Isso? – Indagou o Capitão.

Dois homens de armadura vermelha como o sangue andam tranquilamente por aquele vale da morte.

Zigor, portando uma espada de duas mãos, se dá o luxo de andar sem capacete. Gerard, com arco nas mãos, não trazia um estojo para flechas.

Os tiros batem na armaduras, mas não perfuraram nada, nem mesmo a cabeça de Zigor sem o capacete.

— Mas que sorte de bruxaria é essa?

— Capitão. – Disse Zigor com autoridade – Mande seus homens re-agruparem e esperem pelo meu comando, entendido?

Sem opção, o capitão faz sim e bate continência:

— Sim… Como devo chamá-lo?

Zigor ficou lisonjeado com a pergunta e respondeu sem hesitar:

— General Zigor! Do comando Basco… de Guipúscoa! Isso, isso! Guipúscoa!

O capitão estranhou:

— Comando Basco de Guipúscoa? Mas nós somos o Comando Basco de Guipúscoa e nunca ouvi falar de um General Zigor lá!

Zigor ficou agoniado:

— Capitão, eu tou aqui porque El Rey em pessoa me mandou… Tá vendo algum tiro bater em mim?

O capitão fez não com a cabeça.

— Então se apronte ou morre todo mundo!

— Reagrupar! Reagrupar!

O capitão acenou para os soldados sobreviventes e todos fugiram.

 

IV

Nas muralhas de Lleida, os coronelas deram vivas e comemoraram a fuga dos soldados espanhóis, dando tiros para o alto.

— Conseguimos! Eles foram embora! Eram os últimos!

— E aqueles ali são o que?

Os coronelas olharam para os dois que sobraram, prepararam os fuzis e voltaram a atirar.

Os tiros não deram efeito.

— Intendente, tem certeza que não são sombras? Estamos atirando e até agora nada!

Gerard puxou seu arco e uma flecha acertou no rapaz que falava.

Outras dezenas de flechas roxas saíram de lá e mataram os outros coronelas do topo da muralha.

— Atirar! – Gritou o Intendente.

Nada deu efeito. Gerard puxou o arco e mais coronelas morreram e caíam mortos da muralha.

— Como ele dá tantos tiros assim com só um arco! Cadê as flechas? Só vejo buraco!

— Droga! Recuar, recuar! Tragam os canhões para as ameias!

— Mas eles já estão no portão, Intendente! O canhão tá na torre e vamos morrer todos ante que ele chegue até aqui! Já temos um canhão lá embaixo, Intendente, E se abrimos a porta…

— E deixar os espanhóis entrarem também? Jamais! Podem nos matar na muralhas, mas jamais passarão dos portões! O portão é inquebrantável!

E de fato era.

Lleida já sofreu muitas incursões antes, mas os soldados nunca conseguiram destruir os portões da cidade. Tentaram arietes e troncos, mas eram logo repelidos pelos soldados nas muralhas. Tentaram queimar, mas uma mistura de piche com bastante ferro e carvão só servia para reforçar o portão, pois criava aço.

O portão era feito de duas grades de ferro na frente e atrás preenchidas com madeira no miolo, unidas por três grandes aros de aço. Era pesado ao abrir, mas muito resistente.

Os coronelas começaram a escutar golpes de espada contra o portão. Como os tiros não deram efeito, nem gastaram mais munição atirando contra ele.

A esperança eram os canhões.

— Vamos trazer o piche quente!

Mal o Intendente falou e sons de metal e lascas de madeira foram ouvidos.

O portão estava sendo destruído com facilidade.

Uma voz do lado espanhol dizia “re-agrupar, reagrupar”.

— Os canhões, gente!

Zigor e Gerard deram os primeiros passos de forças espanholas na cidade.

Os coronelas trouxeram três canhões e mais estavam vindo pelas ruas.

— Fogo!

Com sabre erguido no ar, o Intendente mandou todos atirarem contra Zigor.

Zigor rebateu as bolas de canhão com a espada longa e elas mataram todo mundo, até mesmo o Intendente e as balas acabaram acertando algumas casas.

Os coronelas, de fardas vermelhas começaram a chegar. Se posicionaram nos portões da cidade, preparados para atirar.

Zigor e Gerard também estavam na frente deles, prontos para atacar e sem medo algum.

Um Intendente dos coronelas deu um passo para frente e ficou encarando Zigor, tremendo:

— Visca Catalunya lliure i independent! – Berrou, hesitando, quase chorando.

Zigor deu um leve sorriso:

— Alguém tem uma garrafa de rum ai? O tio aqui tá se borrando nas calças e quer alguma coisa pra aliviar a bexiga!

Alguns coronelas gargalharam e, milagrosamente, foi atendido por um rapaz:

— Viva España y Viva El Rey! Tou cansado disso!

O coronela jogou o fuzil no chão com tudo e saiu pelo portão quebrado.

Os coronelas ficaram em choque com a deserção. Alguns cochichavam e chamaram-no de traidor.

Zigor ofereceu a garrafa ao Intendente e ele não quis. bebeu tudo e jogou a garrafa na parede de uma casa.

— Eu prometo que vou ser rápido… – Zigor levantou a espada enorme no ar, pronto para cortar o Intendente ao meio.

Gerard não se mexeu.

No final, Zigor jogou a espada com tudo no chão, do lado do Intendente. A espada enorme furou com facilidade os paralelepípedos da rua e ficou balançando no ar.

— Todo aquele que quiser desistir dessa luta inútil, está convidado a abandonar a cidade e entregar os líderes dessa merda! Só passar pro outro lado da espada! Mas quem quiser continuar. – Olhando para Gerard –  O garoto aqui vai satisfazer seus desejos de lutar e morrer! Vocês que sabem!

Os coronelas se calaram e depois tornaram a cochichar, olhando as armaduras vermelhas como sangue dos dois.

Os soldados espanhóis, aqueles homens conheciam e enfrentaram, mas esses dois soldados diferenciados que não levavam tiros eles nada conheciam.

Só sabiam que o portão indestrutível da cidade estava agora no chão e que todo mundo que lutou na muralha estava apodrecendo nas ameias.

Os coronelas olharam um para o outro e jogaram seus fuzis no chão.

— Parem! Continuem o ataque!

De repente, um coronela com dragonas douradas nos ombros apareceu, vindo do fim da rua e montado em um cavalo.

Ele puxou as rédeas bruscamente quando viu Zigor e Gerard:

— Gerard?

— Pere?

— Mas o que significa isso?

— Significa que você perdeu, meu chapa! Peguem ele!

Os coronelas obedeceram Zigor sem hesitar e derrubaram Pere do cavalo.

 

V

 

Dez da manhã.

Uma fileira de oficiais dos Coronelas, facilmente distinguíveis pelas dragonas nos ombros, estava alinhada na frente de uma parede branca.

Eram as lideranças dos Coronelas em Lleida. Uns dez ao todo.

Zigor queria ter feito isso mais cedo, mas não deu.

Porque, apesar de os primeiros coronelas se render de imediato, muitos deles não defendiam o portão e não entenderam a rendição.

Patrulhavam a cidade, eram fiéis até o final com o separatismo.

Houve luta e resistência quando as tropas espanholas, por fim, entraram em Lleida e algumas ruas ficaram encharcadas de sangue.

Mas durou pouco.

O exército neutralizou os focos de resistência e tomou o resto da cidade com rapidez.

Quando o sol nasceu e as pessoas despertaram para a realidade, já não existia um mando separatista na cidade.

A bandeira espanhola, branca com um xis vermelho, agora tremulava no alto da prefeitura.

Os corpos de Coronelas rebeldes espalhados pelas ruas, a pilha de fuzis em carroças do exército e os homens de farda azul andando pela rua fizeram o povo de Lleida entender o que aconteceu.

A rebeldía acabou e poucas vidas foram perdidas no processo.

O povo aceitou e entregou o resto dos líderes separatistas aos espanhóis.

Isso só foi possível porque Zigor e Gerard juraram ao povo em praça pública que a vida continuaria a mesma e ninguém mais da cidade seria punido por apoiar a revolta.

E tudo o que sobrou daquela revolta estava naquele paredão, enfileirados, com as mãos para trás, esperando a outra fileira de soldados espanhóis receberem a ordem daqueles comandantes de armadura vermelha como sangue.

Gerard foi quem falou:

— Vocês são acusados de encabeçar uma rebelião contra El Rey, destruir a ordem e levar ao caos a vida e povo da Catalunya! A sentença de vocês é a morte. Alguma objeção?

Ninguém falou nada. Exceto Pere:

— E você, Gerard, eu acuso de se juntar com as pessoas que querem destruir nosso país, nossas leis, nossa língua! Sua sentença é a morte da sua alma!

— Ei não estou atacando nada, Pere…

— Nunca vamos aceitar um Rei e uma Nobreza que tem todos os privilégios do mundo enquanto os burros de carga dele aqui, na Catalunya, se matam domingo a domingo pra ele beber uma taça de vinho em Madrid!

— Tem muita gente aqui que se identifica com a Espanha, nosso rei e nosso império!

— E tem muita gente que não! Queremos construir uma república livre de pessoas iguais!

— Eu não vou continuar a discutir com você!

Gerard voltou-se para o pelotão de fuzilamento e Pere sorriu:

— Quem diria que aquele rapaz forte, bonito e valente que foi meu amigo de infância em Terrassa e tinha orgulho do país que nasceu  faria isso com a gente?

— E quem diria que aquele menino chorão e covarde que era o Santi viraria presidente e levaria tudo ao caos!

— Você pode me matar, Gerard, mas você nunca vai calar a voz de um monte de gente aqui que vai contra tudo isso que você defende! E se a Neus e o Pau que você tanto ama resolvesse pegar em armas e lutar pela república, hein? Você ia ser homem o bastante pra fuzilar e olhar nos olhos deles?

Pere sorria como se segurasse um trunfo nas mãos.

Gerard olhou para ele por um instante, fez um sinal para Zigor e os soldados atiraram.

Continua…


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Uma Canção de Neus Artells" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.