Uma Canção de Neus Artells escrita por Braunjakga


Capítulo 4
O prisioneiro




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Gibraltar, Sul da Espanha

7 de Agosto de 1714

 

I

 

Os primeiros raios de sol do dia começaram a entrar pelas três barras daquela janela quadrada há trinta pés de altura.

Dava para se ouvir o som das ondas do mar batendo na parede da cela.

Sorria, ele sempre sorria, não importava a situação.

Os dias eram sempre iguais nas paredes daquela cela metálica de cinco jardas quadradas, mas ele sabia que aquele dia era diferente.

Todos os dias, aquele senhor se servia de um prato de curry, arroz ou lampreia. Pela manhã, tinha pão e, quando os guardas estavam de bom humor, tinha ovo ou bacon.

Seus cabelos, antes curtos e bem aparados, ao estilo inglês, agora estavam longos, ressaltando ainda mais suas feições asiáticas. Sua pele antes rosada, ficou branca, quase cinza com os anos no cárcere.

Os tempos na prisão mudam muito uma pessoa, ele sorriu pensando nisso.

De mente, não mudou nada, era como se aqueles anos fossem horas, mas fisicamente falando… seu corpo era de carne e osso como de qualquer um e tinha suas necessidades.

Havia uma latrina na cela que lhe permitia um pouco de conforto sanitário.

Usar magia é um delito? Para ele sim.

Haviam celas mais embaixo onde ele estava, onde traidores e invasores eram postos. Eram as celas de sal. Nelas, as marés cresciam até afogar o prisioneiro e o que restava depois era o sal e cálcio dos ossos, por isso eram celas de sal.

Felizmente não estava lá, mas estava muito perto.

Podia escapar? Claro que sim! Sua magia era quase ilimitada e pra quem já fez coisas tão fantásticas como atravessar dimensões e viver mil vidas em uma o que era aquela prisão?

O problema era: a palavra.

Por mais que pudesse pintar e bordar com seus poderes, isso não significa que podia fazer coisas como adulterar a história ou a realidade sem ninguém perceber.

A sua realidade agora era aquela. Se ele quisesse acabar com aquilo, havia muitos outros dispostos a impedi-lo.

Seja mago ou não, a palavra de uma alma vale muito. Dera sua palavra que se entregaria e aceitaria o exílio em Gibraltar.

E estava cumprindo.

Enquanto pensava em tudo isso, a porta de aço da cela se abriu.

Kero e Yue foram jogados com tudo dentro da cela pelos guardas.

— Vocês também por aqui, pessoal?

— Desculpa, Clow, a gente não conseguiu proteger as Cartas! – Disse o leão dourado.

Diante do roubo das suas preciosas cartas, Clow apenas sorriu, nem estressado ficou:

— Tudo bem… eu já sabia que isso ia acontecer…

 

II

 

Há alguns metros dali, numa sala no topo do rochedo, olhando pela janela do escritório, Um homem observa o sol que nascia.

Era o mesmo homem com chapéu de plumas e detalhes dourados na farda vermelha e uma espada embainhada na calça branca que apareceu diante de Josep e Carles há três dias atrás.

Tinha cabelos grisalhos e rugas, gordo e sem barba.

A porta bate.

— Entra! – Disse um senhor grisalho que estava.

— Coronel MacDonald! – Era um jovem rapaz que lhe batia continência.

— Capitão Firth, conseguiu alguma coisa?

O capitão Firth era um jovem rapaz magro com rosto magro, sem barba, olhos verdes e cabelos pretos lisos penteados para o lado. Era o subencarregado de tudo o que acontecia naquela base militar e responsável por tudo o que acontecia nela.

— Com o Kerberos e o Yue não, interroguei a noite inteira e parece que não sabem de nada mesmo…

— Não sabem, é? Vamos jogar eles nas celas de sal e aí vamos ver se não sabem de nada mesmo!

— Eu já cuidei disso, coronel, deixei eles com o Clow pra ver que a gente não tá de brincadeira!

— Você mostrou pra eles o corpo do maldito bandoleiro?

— Mostrei e nenhum sinal de que conheciam ele. Perguntei até mesmo se tramavam a fuga do Clow e nenhum sinal de mentira!

O coronel MacDonald ficou angustiado com a resposta e deu um soco na mesa:

— Mas que droga, Firth! Isso é uma violação da nossa soberania!

— Isso não é tão ruim assim, Coronel! Pensa! A gente pode se livrar de um problema! Em Londres, no Parlamento, nem sabem disso! É mais ilegal manter ele preso aqui só porque a raça dele quer!  

— E a raça dele vem atrás da gente querer saber dele! Você não sabe o que é isso, Firth!

O Coronel MacDonald sentou-se, estafado e cansado.

— Conseguiu alguma pista do bandoleiro antes de ele morrer?   

— Sim. O maldito espanhol disse que era de Germans Sabats. Girona. Isso fica no nordeste da Espanha. Meus informantes me disseram que a cidade inteira tá nas mãos dos austracistas, os mesmos que a gente armou há alguns anos, Coronel.

O coronel MacDonald estranhou:

— Os austríacos estão por trás disso?

— Não, parecem que agem por conta própria agora. O arquiduque virou imperador e deixou toda a merda que fizeram na Catalunha pros espanhóis limparem. Agora tem outro doido lá gastando o resto da munição que a gente deu.

— Hum, então eles ainda lutam pelo quê?

— Lutam pela “independência”, Senhor.

— Independência? Podem ganhar?

— Não. Os Espanhóis já retomaram Lleida ontem com facilidade e é questão de meses pra tomarem o resto.

— Firth, você percebe o perigo disso? Se usarem essas “Cartas Clow” nessa guerra pra reverter essa desvantagem, vão descobrir que essas cartas vieram daqui e só Deus sabe o que vai acontecer depois! A gente não pode deixar essas cartas nas mãos desses rebeldes, Firth!

— E como a gente vai atrás delas, Coronel? Não temos nada a nossa disposição capaz de sentir elas, saber onde elas estão e…  

— Temos sim!

— Coronel, não me diga que…

— Eu já estive pensando nisso há tempos, Capitão! Eu assumo a responsabilidade.

III

 

Praias de Gibraltar.

Já era uma da tarde e o sol brilhava sobre as areias do rochedo, transformando os grãozinhos da praia em cristais de vidro.

As ondas do mar estavam misteriosamente calmas para uma tarde agitada de vento, mas o céu estava azul e limpo o bastante para que não tivesse tempestade pelos próximos dias no mar.

Do outro lado do rochedo, a costa marroquina era fácil de ser vista e estava muito convidativa.

Era Clow quem estava olhando para aquele mar azul tranquilo, aquela costa marroquina. Ao seu lado estavam Kero e Yue, em suas formas verdadeiras.

— Cabelo longo ainda, Mr. Clow? O senhor sempre gostou dos seus cabelos curtos…

— Coronel… Como o senhor disse, a prisão muda muito um homem.

— Eu vejo… nem mesmo o gibão quis usar; ainda continua com essa capa preta velha e essa roupa chinesa?

— Ela lembra a minha mãe…

Clow e o Coronel MacDonald se permitiram um riso breve. O capitão Firth, que estava ao lado, não estava tão otimista assim.

O coronel tossiu e ficou sério de novo:

— Você entende, senhor Clow, a situação em que a gente se encontra? – Perguntou o Coronel MacDonald, atrás deles.

— Perfeitamente, Mylord; as cartas Clow são tão parte de mim quanto dos senhores, quanto do reino.

Sorria.

O capitão Firth criticou:

— Não ria pra gente com tanta facilidade! Os seus malditos guardiões era quem devia proteger as cartas do perigo; e o que eles fizeram? Deixaram elas escaparem! Isso sim! O senhor merecia uma cela de sal, Mr. Clow, isso sim! Isso só dá mais trabalho pra gente!

— Basta Capitão! Eu acho que o senhor Clow conhece os riscos, vai ser pior para o senhor do que para mim.

— Perfeitamente pior, mylord!

Clow continuou a sorrir, agora com preocupação.

Atrás do Coronel MacDonald e do Capitão Firth, havia uma fileira de soldados da infantaria britânica que guardava a parte sul do rochedo, preparados, se necessário, para conter o mago ou seus guardiões ali mesmo com tiros de fuzil.

— Coronel, eu insisto que a gente fique com um deles como refém! Que garantias que a gente vai ter que Mr. Clow vai trazer as cartas pra gente?

O Coronel deu um rosário de explicações:

— As mesmas garantias de que ele sabe que essa operação é ilegal, que a sua saída da prisão é ilegal, os parceiros dele nunca iam autorizar isso, ele já pensou nos custos humanos dessa operação!

“Se o Rei da Espanha descobrir essas cartas, ele vai enviar uma segunda armada invencível para as terras de sua majestade!

“Vamos ser responsabilizados e estamos perdidos! Fomos nós que deixamos as cartas escaparem! Quer ficar pendurado no ar numa gaiola, capitão, nu e ressecando em Cambridge?

— Não, Coronel!

— Exato! Nem eu, mas com o senhor Clow sendo, digamos “dispensados” por nós, ele está por sua conta e risco. Se ele for encontrado por alguém por aí, ele fugiu da prisão e levou as cartas; a gente sabe que ele pode fazer isso. E estamos limpos! Ok?

— Ok!

“No final é sempre eu que me ferro! Quem manda ter poderes mágicos? Eles se acham muito espertos…”, pensou.

— Agora vem o difícil…

O coronel MacDonald tirou do bolso uma chave e entregou para Clow.

Ela era dourada e tinha um sol na ponta.

Era o báculo padrão de Clow que desde sua prisão estava nas mãos do Coronel.

— Aqui, Mr. Clow. Se você tiver sucesso, eu tento te tirar daqui com um perdão real junto aos seus parceiros, mas se você falhar, bem, a culpa é sua! Vejo o senhor quando isso tudo acabar, ok?

— Como o senhor desejar, mylord.

— Qualquer coisa, eu nunca vi você.

Então Clow segurou a chave em suas mãos e ela brilhou como um pequeno sol em sua mão, ofuscando a visão de todos e até a própria luz do dia.

A chave se tornou um báculo enorme dourado com um sol gigantesco de raios desiguais nas mãos de Clow.

Clow montou em Kero, em sua forma verdadeira e saiu voando pelos ares junto com Yue, arrastado os chapéus dos oficiais e soldados com as correntes de ar que criou com o voo.

 

IV

 

Nas costas de Gibraltar, enquanto o Coronel MacDonald olhava o último vôo de Clow e suas criaturas, o capitão Firth perguntou ao Coronel, irritado:

— Vai deixar eles escaparem mesmo, Coronel, depois de ficar tão preocupado?

— Você sabe que não, Capitão, Você bem sabe que não! Eu tenho certeza que Mr. Clow tem algum dispositivo pra encontrar as cartas, eu não acredito que ele  tenha criado as cartas sem uma coisa dessas! E outra: quando ele se encontrar com elas, a gente vai ser passado pra trás! Fica vendo! Assim que descobrir qual é esse dispositivo, prenda-o, Capitão!

O capitão Firth bateu continência e chamou consigo todos os soldados britânicos que viram o voo de Clow.

 

Continua…


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