Uma Canção de Neus Artells escrita por Braunjakga


Capítulo 23
Julgamento




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Reze suas preces e não conte com ninguém

Veja tudo como se não houvesse amanhã porque

Parece um dia tão normal

Mas em cada esquina você pode vacilar, e então

Vê se se cuida, rapaz

Então, estamos quase quites

Se ainda não percebeu isso é uma

Emboscada, armadilha

Emboscada, armadilha

Se cada ação traz junto uma reação

Você sabia que essa hora ia chegar e

Ainda assim se escondeu

E eu, cada vez mais perto, esse jogo é meu

Então é xeque-mate, rapaz

Então, fim de festa pra você

Se ainda não percebeu, isso é uma

Emboscada, armadilha

Emboscada, armadilha

 

(Emboscada, Pitty)

 

I

Barcelona, Espanha

Setembro de 1714

 

Neus Artells estava sentada num banco frio de madeira no centro de uma sala fria, com olhares frios sobre ela.

Não estava sozinha.

Ao seu lado, seus leais comandantes, mais velhos do que ela: Germà Gordò, comandante dos miquelets, Joseba Otegi, comandante da patrulha da cidade, Andreu Collel, vice-presidente da Generalitat de Catalunya.

Vestiam suas melhores fardas para aquela ocasião. Neus, com seu casacão vermelho, dragonas nos ombros, medalhas no peito e o broche da presidência da Generalitat.

Na frente dela, atrás de uma mesa, o olhar implacável do juiz: Dom Saul Martínez Garcia, ministro de sua majestade para assuntos especiais, com sua túnica e careca reluzente.

Ao lado dele, os jurados, gente que não viu a batalha, nem a luta de Neus, mas estavam aptos a julgá-la: cardeal arcebispo de Toledo, Dom Gabriel García, e Dom Javier Lambam, primeiro ministro de El Rey.

O general Dom Pablo Urrutia era o promotor da coroa e, desde o começo do julgamento, olhava para Neus com cara feia.

Ao lado da mesa do juiz, encostados na parede, as vítimas de Neus. Representando o estado espanhol, El Rey Don Felipe III da casa Bourbon, representando o exército, Gerard Bernat e Zigor Iñigitz.

Na frente deles, o advogado de defesa, Enric Miró.

Todos, com suas fardas azuis de general impecáveis, cheias de medalhas. Parecia até mesmo que o general Urrutia tinha posto um par de dragonas a mais para destacar a sua patente de general comandante acima de Zigor, Gerard e Enric.

Neus não tinha quem a defendesse, nem mesmo os seus quatro comandantes.

Eram eles sozinhos contra toda a estrutura do estado.

Quando pensava estar só, Clow acenou de longe naquela plateia, com Kero no ombro. Ele poderia defendê-la, mas Clow estava com mais problemas do que ela e se complicaria mais ainda se se expusesse.

Havia uma platéia enorme naquele julgamento cheia de lealistas da coroa desejando ver Neus sendo espetada até o fim, como um touro sendo morto na touradas.

Todos os outros três já foram julgados e condenados à morte no paredão.

Até mesmo Santi foi julgado depois de morto por alta traição.

Agora era a hora de Neus.

Don Saul Martínez García, bateu o martelo de juiz e começou a julgar Neus:

— Silêncio! Silêncio! Vamos começar a última etapa do julgamento, da Senhorita Neus Artells i Maragall. Queira a promotoria fazer a acusação.

O general Urrutia se posicionou no meu da sala.

— Eu acuso a ré por matar seis generais, seis generais, do nosso Exército e tentar matar outros três.

— Esse juízo é uma farsa! – Gritou Andreu Collel. Os soldados agarraram o homem, e ele foi tirado da sala.

Neus se lembrou que Enric matou uma general também e estava lá, impune, pior: como advogado de defesa. Vai lá entender. Urrutia continuou:

— Eu acuso a ré de rebelião, conspiração para um golpe de estado, tentativa de entregar a Catalunya para os ingleses…

— Conspiração contra os ingleses é crime de lesa-pátria, general! Você tem provas? – interrompeu Dom Saul.

— Sim, muitos testemunhos conforme os autos, tinha até um médico inglês de nome Clow Reed ajudando os separatistas!

Toda a plateia ficou boquiaberta com o relatório e cochichou.

— Silêncio, silêncio! – Dom Saul bateu o martelo pedindo ordem. Urrutia continuou:

— Eu acuso Neus Artells de tentativa de assassinato contra sua majestade ao voar numa fera voadora e cuspir fogo contra nossas tropas. Isso parece até bruxaria, Dom Gabriel!

— E ela está acusada pelo crime de bruxaria também, General! – disse Dom Gabriel Garcia, batendo o báculo dourado que carregava no chão.

— Isso é tudo, Dom Saul. A pena para esses crimes bárbaros é a morte! Ela que agradeça ao santo padre por não te mandar pras garras da santa inquisição…

Como uma tortura pode ser santa? Indagava Neus por dentro.

O tribunal voltou a cochichar e Dom Saul tornou a pedir ordem.

— Tem a palavra o advogado de defesa.

Enric foi para o centro da sala.

— Muito obrigado, ministro. Quem é Neus Artells? Uma fazendeira? Uma conspiradora? Porque não perguntamos para ela?

Enric deu alguns passos e ficou na frente de Neus:

— Você é a líder dos separatistas?

Uma forte dor de cabeça veio até Neus só de vê-lo.

Então se lembrou de tudo o que aconteceu.

 

¥

 

Acordou numa cela com a cabeça enfaixada a ponto de explodir.

Na sua frente, estava a cela de Joseba Otegi, chefe da patrulha da cidade.

Deu um pulo da cama.

Sua cabeça martelava de dor a cada passo, a cada palavra, a cada respiração, mas não se importou.

— Joseba! Você aqui!

— Sobrevivemos, Neus!

— Cadê os outros?

— Nos outros andares, eu acho…

— O que aconteceu? A gente tinha mais gente…

— O General Urrutia bateu duro na gente! Ele arrombou Barcelona! Neus? Neus!

Desmaiou.

Ficou três dias dormindo e sentiu uma mão afagando sua testa.

— Gerard… Gerard…

Abriu os olhos devagar e viu que era Clow.

— Siu… – disse ele com os dedos nos lábios – Fala baixinho, eles não podem saber que eu estou aqui…

— O que tá acontecendo?

— Durma, Neus, Um novo dia vai nascer amanhã…

Dormiu por mais um dia.

Não estava mais com dor de cabeça, nem estava na cela diante de Joseba.

Estava num quarto com janela, cama confortável e um banheiro ao lado onde poderia tomar banho e usar a latrina.

Mas ainda era uma cela.

Dois soldados espanhóis, um mais velho e outro mais novo, se revezavam para dar comida duas vezes ao dia para ela e café da manhã.

Quando vieram trazer a refeição, perguntou:

— Os outros estão recebendo a mesma refeição?

— Eles só comem uma vez por dia. – disse o soldado mais novo.

Neus pegou o prato e devolveu para ele:

— Vou comer a mesma coisa que os outros! Quero ir pra mesma cela dos outros também!

O soldado mais velho interveio:

— Temos ordens para deixar a senhora aqui! Com licença!

Os soldados saíram da cela e o soldado mais velho brigou com o que respondeu para Neus.

Queria perguntar quem foi quem colocou ela ali, mas no fundo, no fundo, sabia a resposta.

Mesmo não perguntando, ela veio, das janelinhas da porta daquele quarto.

— O general Gerard vais gostar de saber o que você falou, rapaz! Espere e verá!

O rapaz não tinha papas na língua.

— Porque essa mordomia toda com ela? Ela é uma separatista de merda! Isso sim!

 

¥

 

— Estou repetindo, Neus, é você a líder dos separatistas?

A pergunta de Enric fez ela voltar para o presente, para aquela sala fechada do tribunal.

O olhar dele era sério, não zombava mais com os olhos, afinal, perdeu as mãos e os braços, mas não perdeu a arrogância.

Ele também sabia do que ela era capaz.

Gerard o olhava também, sério, como se quisesse fulminar Enric com os olhos e não pudesse.

Seu namorado não conversava com Zigor, nem olhava para ele.

Enric ainda usava a luva preta nas mãos.

Como ele ainda conseguia mexer os dedos, só a magia explicaria.

Enric dava voltas e voltas na frente de Neus. Aquilo irritava Neus mais do que a sensação ruim que sentia quando ele se aproximava.

Respirou fundo e pensou em seu irmão Pau.

— Sou sim, sou a presidenta da Generalitat de Catalunya

— Santi Castell que era o presente da Generalitat, não era?

— Sim, mas agora eu que sou a responsável por todos eles! Eu só não sou a presidenta legítima porque ainda não fui votada pelo povo.

Todos ficaram chocados.

Enric gargalhou.

— Votada? Sei… A senhorita é acusada de rebelião e assassinato, o que tem a dizer para se defender e voltar a disputar as eleições, Neus?

A plateia gargalhou. Dom Saul voltou a pedir Ordem.

— Eu não sei se vou disputar as eleições, só sei que tudo que eu fiz foi pra encontrar os caras que queimaram a minha fazenda… No caso, você!

A platéia ficou em estado de suspensão.

Gerard, até então cabisbaixo, prestou atenção com mais detalhes ao diálogo.

— Você tem provas do que você está dizendo?

— Se você é incapaz de manter a sua palavra, então não sei do que você é capaz!

— Justiça não é uma questão de palavras, Neus!

— Mas você me falou que queimou a minha fazenda! - berrou Neus.

— Você tem provas de que eu disse isso? Cuidado, pois você pode estar me caluniando…

— Seu papel como advogado aqui que é uma calúnia! Uma calúnia pra todo mundo!

— Aprenda uma coisa, Neus: palavras são vento, provas são substanciais… Eu tenho provas de que você se rebelou contra o estado e matou nossos generais. Cadê suas provas contra mim?

Neus se calou, mas depois voltou a responder:

— Como eu assassinei uma pessoa em pleno campo de batalha? Como eu, em plena luta, tive a intenção consciente de matar alguém, ainda mais alguém que queria me matar? – gritou.

— Sua farda, suas medalhas dadas por um governo golpista não são fardas de um soldado, mas sim de um rebelde!

— A minha luta é legítima!

— Você luta contra a coroa, não tem legitimidade nenhuma sua luta!!

— Eu não podia dizer o mesmo da sua?  Minha fazenda, meu irmão, eu perdi tudo nessa guerra suja de vocês!

— Sua fazenda pegou fogo antes da nossa operação na Catalunya, e seu irmão… seu irmão sabia no que se meteu se juntando com um bando de golpistas… eu não assassinei ele, não há assassinatos numa guerra, como você mesma disse…

— Então eu não matei seus generais, já que se trata de guerra!

— Você matou. Você matou sim, você estava do lado errado da história…

— O que faz sua luta ser mais legítima que a minha!!!

— Nós somos a coroa, simples assim… sem mais palavras, meritíssimo.

Enric voltou a sentar-se com El Rey, Zigor e Gerard.

A platéia começou a comentar o julgamento, Saul bateu o martelo pedindo silêncio e olhou para Neus.

— Você sabe o que está sendo julgado aqui, não é, Neus?

— Sei… minha luta, a luta do meu irmão, a luta de pessoas livres… contra a guerra suja de vocês!

— Essa sempre foi uma guerra pelo trono do Reino da Espanha, Neus.

"Eu não estou dizendo que lutar pela sua fazenda seja errado, mas você, desde o início, fez a escolha errada.

"Você lutou uma guerra em que você não tinha nada a ver com a situação, uma guerra em que você colocou seus motivos pessoais acima de qualquer coisa.

"Você foi ingênua, Neus, agora aceite as consequências de seus atos… – repreendeu Dom Saul.

— Não, não fui ingênua, estou pronta pra aceitar essas consequências desde quando eu entrei nessa guerra, só tive duas opções: a cruz e a parede. Entre ficar parada e fazer alguma coisa, eu prefiro pegar a espada, tanto faz as consequências…

Gerard ficou magoado e sentiu a lágrima arder no olho.

Não querendo escutar mais, se levantou de seu assento e andou até a porta.

— Eu não autorizei as testemunhas falarem ainda, General Gerard! – disse Dom Saul.

— Esse julgamento é uma farsa, um atentado contra todo o povo da Catalunha. Qualquer sentença aqui, será entendido como uma sentença contra o povo, porque esse povo está insatisfeito com a coroa, e quando tem alguma coisa que a gente não se entenda, a gente tem que parar pra conversar – Gerard olhou Neus – O que Neus Artells levantou aqui vai ser continuado no futuro enquanto a gente não chegar num acordo, não há leis eternas, nem tormentos eternos…

O cardeal Dom Gabriel Garcia ficou contrariado, pois condenação eterna era um dos pilares da igreja.

— Mas a estupidez consegue continuar até virar uma bola de neve e esmagar todo mundo… Estamos a ponto de perder uma das mulheres mais fantásticas que esse século concebeu…

Gerard saiu pela porta dos fundos.

Todo mundo ficou apreensivo, esperando pela reação de El Rey e Dom Saul.

O monarca fez um gesto, informando para que ele continuasse com a sentença.

— Todos de pé.

Dom Saul deu uma martelada, e todo mundo se levantou

— Neus Artells i Maragall, você está condenada por atentados contra membros da coroa e tentar dividir o reino pela metade, sua sentença é a morte, a ser executada em três dias a partir da data de hoje.

"Essa sessão está encerrada!

Dois soldados se aproximaram de Neus, e algemaram seus pulsos.

Neus não sentiu nada ouvindo a sentença.

Só sentiu um aperto no coração, vendo Gerard saindo daquela sala, tão impotente quanto ela.

Sentiu que ele ainda escutava tudo, se escondendo atrás da porta, sem nada para parar aquilo.

 

Continua…


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