A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 21
20: Criança da primavera.


Notas iniciais do capítulo

Vocês não têm ideia de quantas vezes eu revisei esse capítulo, parece que toda vez que eu lia eu mudava ou acrescentava mais alguma coisinha aqui e ali kkkk
Mas por fim ele ficou pronto! XD
De qualquer forma, se eu tiver deixado algum erro passar (o que é altamente provável com minha tendência a distrair-me) avisem-me! ;)

GLOSSÁRIO:

Naginata: Alabarda japonesa com tamanho médio em torno de 2m.

Obentô: semelhante a nossa marmita, porém na versão japonesa. É normalmente uma porção para uma pessoa, servida em uma bandeja com repartições. Com vários tamanhos e formatos, há modelos caseiros simples ou elaborados ou modelos prontos vendidos em lojas de conveniência.

P.S: caso haja alguma palavra que não compreendam avisem-me.



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Novamente a primavera estava desabrochando para um novo ano escolar e Aiha desceu de sua bicicleta próxima ao portão da escola.

—Bom dia, professor Haruna! — acenou ao professor responsável por vigiar o portão naquele dia, e se certificar de fechá-lo no horário certo para garantir que nenhum retardatário entrasse depois da hora.

Às vezes Aiha se perguntava como os professores faziam para escolher quem seria o responsável do dia por vigiar o portão, será que sorteavam no palitinho?

—Bom dia, Kanae-chan. — o professor Haruna sorriu acenando-lhe de volta, e nem sequer a repreendeu pela saia curta.

Dentre os professores ele era certamente o mais sorridente.

Esse ano o conselho estudantil havia novamente montado um posto de boas vindas para os calouros, Aiha notou ao ver as mesas enfileiradas com o banner de “boas vindas” de um lado da entrada com membros do conselho estudantil posicionados atrás delas entregando os broches de flores aos calouros, e foi para lá que ela se dirigiu logo depois de ter guardado sua bicicleta, infiltrando-se entre as fileiras de calouros com um sorriso agradável, até estar frente a frente com o próprio presidente do conselho estudantil: Tanaka Hiroshi.

—Bom dia, Hiroshin! — cumprimentou segurando a pasta escolar por cima de um ombro — Trabalhando duro desde o primeiro dia? Muito bem, bom trabalho!

Os dois outros membros do conselho estudantil que também estavam ali atendendo aos calouros, parados um de cada lado do presidente, pararam suas atividades com os olhos arregalados de surpresa — também haviam tido essa reação no ano passado quando ela, uma simples caloura, repentinamente o cumprimentou dessa mesma forma — parando a meio movimento de pegar um broche de flor Hiroshi ergueu os olhos, e pigarreou ajeitando os óculos e a olhando seriamente.

—Aiha, eu já não lhe disse para parar de me chamar dessa forma? — era um deja-vú do ano passado.

—Disse. — concordou solene.

Ele a olhou de forma aborrecida.

—Essa fila é para dar informações e boas-vindas aos calouros, você está obstruindo. Pode se retirar, por favor? — a censurou, mas ainda assim seguiu dizendo: — Confira a sua turma no mural ali e depois fique em sala até o inicio da cerimônia de boas vindas.

A única diferença era que dessa vez ela não ganhou um broche de flor, Aiha afastou-se para o lado com uma careta e deu passagem para o próximo calouro, mas ainda antes de ir realmente embora comentou:

—Eu só queria avisar que comprei uma roupinha fofa para Mimi, então hoje vou até a floricultura.

Hiroshi não a olhou uma segunda vez, mas acenou com a cabeça e fez um movimento com a mão descartando-a dali, e Aiha girou nos calcanhares e se foi, mas não sem antes escutar um dos membros do conselho se dirigir ao seu presidente:

—Amiga sua, presidente?

—Conhecida. — Hiroshi respondeu com pouco caso.

Alguns anos atrás, ainda no ginásio, Aiha havia encontrada uma pequena cadela perdida e sozinha na chuva, por sorte ela tinha uma identificação na coleira, então ligou para os donos assim que voltou para casa.

Não ficou surpresa em saber que o dono de Mimi estudava no mesmo colégio que o seu, pois em uma cidade pequena como aquela parecia só haver dois tipos de pessoas: aquelas que você conhecia e as que ainda ia conhecer, e por isso coincidências desse tipo aconteciam o tempo todo. Mas com certeza ficou surpresa quando Hiroshin apareceu para buscar a mascote com um buque de flores como agradecimento por ela ter encontrado Mimi.

—Meus pais são donos de uma floricultura. — ele justificou-se trocando o buque por Mimi com um suspiro de alivio — Realmente estou muito grato por ter encontrado Mimi, não durmo a trinte e seis horas, ela fugiu enquanto eu estava no colégio durante um momento de distração de meus pais que deixaram a porta aberta, provavelmente estava a minha procura, ela é muito apegada a mim.

Não foi a última vez que Mimi fugiu para ir atrás de Hiroshi, mas o interessante é que depois desse incidente ela realmente aprendeu a encontrar o colégio de seu dono, especialmente quando ele mudou de escola no colegial, já que agora Hiroshi estudava a apenas umas poucas quadras de distância da floricultura.

Um grande aglomerado de alunos se juntava em volta dos murais tentando conferir suas classes, e Aiha precisou se espremer e se esgueirar entre eles para também ser capaz de conferir sua própria turma.

Ela havia acabado de encontrar seu nome listado na turma 3 do segundo ano, quando uma voz familiar comemorou próxima a si:

—Yuki! Estamos na mesa sala de novo!

Girando a cabeça ela encontrou Hongo e Shibuya um pouco mais atrás no meio da multidão.

—Meninas! — esticou o braço agarrando Shibuya e a trazendo para perto, junto com Hongo.

—Bom dia representante. — a cumprimentaram solenemente como as duas filhas de pequenas casas tradicionais que eram.

Aiha estalou a língua.

—Me chamem pelo nome, não sou mais representante de classe de vocês, ano letivo novo, lembram? — comentou casualmente virando a cabeça novamente para os murais — Em que sala vocês estão?

—Turma 2-3. — Shibuya respondeu.

—Então parece que estamos na mesma classe. — comentou com um sorriso — E Ayaka também.

Indicou o nome da garota no topo da lista, mas não sem deixar de notar o pequeno franzir de cenho de Shibuya com essa informação, e então ela mesma franziu o cenho após percorrer os olhos pela listagem de classe durante mais alguns instantes.

—Não estou achando Nishiwake. — avisou.

—Aoi-chan ficou em uma turma diferente? — Shibuya começou a percorrer os olhos pelas demais listagens de segundo ano — Então onde ela está?

—Ali. — disse Hongo — Nishiwake Aoi. Turma 2-2.

Mas embora Nishiwake tenha sido a única a acabar caindo numa turma diferente, Ayaka também não apareceu em sala mesmo depois de o sinal soar e todos serem convocados para a cerimônia de boas vindas.

Claro, começar o ano matando aula, por que não?  Isso era mesmo bem a cara de Ayaka, mas ela ia perder o sorteio dos lugares mais tarde.

No entanto, o que as garotas desconheciam era que, naquele exato instante, Ayaka Shiori estava diante do colégio tendo sua passagem barrada pelo portão já fechado por ela ter chegado atrasada.

—Oh, por favor, professor, deixe-me entrar! — suplicou.

O professor Haruna não estava sorrindo como sempre dessa vez, e ao invés disso olhava-a incomodado através do portão e mexia-se inquieto transferindo o peso do corpo de um pé para o outro.

—Ayaka-chan, você não devia ter se atrasado...

—Foram apenas três minutinhos de atraso!

Sua querida aluna agarrou-se às grades do portão olhando-o tão, tão suplicante... Haruna deu um passo para trás.

—Três minutos ou três horas, não há nada que eu possa fazer, digo, se o portão se fecha ninguém mais pode...

—Abra-o um pouquinho! — pediu-lhe repentinamente, dando um pulinho inquieto — Só um pouquinho para que eu possa passar! Ninguém vai ficar sabendo, eu não vou contar a ninguém!

Haruna hesitou.

E então avançou e agarrou os portões.

—Passe rápido!

Sussurrou urgentemente, ele mal precisou abrir trinta centímetros do portão para que Ayaka-chan pudesse se esgueirar, e fácil assim ela já estava dentro.

—Obrigada, professor, obrigada! — agradeceu saltando sobre ele, lançando os braços delicados em volta de seu pescoço e beijando-lhe a bochecha.

—Tá, tá, não me faça arrepender-me! — Haruna a afastou-a, segurando-a pelos ombros — Vá logo Ayaka-chan, deixe suas coisas na sala de aula e vá direto para a cerimônia de boas-vindas. Você está na turma 2-3.

—Obrigada professor, obrigada! — ela agradeceu novamente, virando-se e afastando-se correndo dali.

—E tire essa pulseira do pulso, você não quer levar advertência logo no primeiro dia! — a alertou a distância.

Ayaka-chan agradeceu-lhe mais uma vez, acenando com o pulso onde cintilava a delicada pulseira prateada antes de entrar no prédio para trocar os sapatos, Kakeru disse a si mesmo que não havia nada demais naquilo, era o primeiro dia de aula, e a pobre menina nem sequer havia se atrasado tanto… e assim, sorrindo, ele mandou de volta para casa um aluno que apareceu cinco minutos depois.

Mas a verdade é que Gintsune havia chegado cedo ao colégio, mas assim que se deparara com Haruna no portão, ele recuara e se ocultara no plano astral, curioso em saber o que faria o professor, que não podia deixar nenhum retardatário passar, quando sua adorável aluna se pusesse a suplicar-lhe. Ah, a mente humana, sempre tão fácil e divertida de se manipular... Gintsune já fazia aquilo há séculos, mas ainda assim provavelmente nunca deixaria de se divertir com esse jogo.

Mas ele não teria perdido muita coisa mesmo se Haruna não lhe tivesse deixado entrar, pois não havia quase nada para se fazer no primeiro dia de aula: A primeira parte do dia foi ocupada unicamente pela cerimônia de abertura para dar às boas vindas aos alunos que regressavam de suas férias de primavera, e também aos calouros, assim como lhes apresentar alguns dos clubes da escola, sendo liberados pouco antes do horário de almoço de volta para as salas de aula.

—Bom dia, e bem vindos de volta pessoal! — Haruna os cumprimentou animadamente. — Primeiramente quero parabenizá-los por sua ascensão de ano, creio que aqui todos já me conhecem, mas vou me apresentar mesmo assim. — sorridente como sempre, ele lhes deu as costas e começou a escrever ser próprio nome no quadro — Meu nome é Haruna Kakeru, eu leciono matemática, e serei o professor conselheiro de vocês durante mais esse ano, então espero que possamos nos dar bem. Por favor, cuidem de mim.

Ele virou-se e curvou-se formalmente aos seus alunos, até que alguém o relembrou com uma risadinha:

—Professor é o senhor quem tem que cuidar de nós!

—Ah, claro! — Haruna assentiu rindo sem jeito, e bateu palmas — Então vamos recomeçar: De pé. Muito bem. E agora se curvem. Ótimo. Mas e então, começamos pelo sorteio dos lugares ou pela escolha do representante de turma?

A sorte garantiu a Gintsune um lugar na frente, bem próximo ao professor… infelizmente sua sorte não era absoluta, e Yukari pegou o lugar bem atrás de si.

Enquanto a escolha de representante ficou para depois do almoço.

—Vamos Aoi-chan, não fique assim, nós estaremos na sala ao lado, lembra? — Kaoru-chan tentou consolar a amiga durante o horário de almoço.

Embora ironicamente ninguém estivesse comendo e sim paradas no corredor.

—Sim, mas… estarei nessa sala nova e não conheço ninguém aqui! — a garota lamentou-se trêmula.

—Ora, vamos Nishiwake, tenha coragem! — Aiha-chan, pois já não era mais representante como fez questão de lembrar a todas, a pegou firmemente pelo ombro — Ano passado quando ingressamos no colegial você também não conhecia ninguém na sala! Ou sim?

O lábio inferior de Aoi-chan tremeu.

—Sim, mas… não posso fazer tudo isso de novo, eu simplesmente não posso!

—Mas é claro que pode! — Aiha-chan girou os olhos, ainda com a mão firmemente sobre o ombro de Aoi-chan — Força!

—E estaremos na sala ao lado. — Yukari a relembrou.

—Isso mesmo, e você pode vir almoçar conosco sempre que quiser! — Gintsune comentou alegremente. — Quanto mais gente melhor!

 

E Yukari olhou-o com olhos semicerrados pela desconfiança, certamente já adivinhando que as intenções dele com aquele convite era justamente ter mais comida de quem roubar durante o almoço, essa desconfiança Gintsune compreendeu perfeitamente bem, o que ele não compreendeu foi porque no dia seguinte ela lhe preparou um almoço, e no outro também, e no dia seguinte a este também… no fim não importava o quanto conhecesse aos seres humanos, eles sempre agiriam de forma que lhe fugia a compreensão.

*.*.*.*

Satoshi e Mayu já estavam juntos há cerca de dois séculos agora, para ele sempre foi suficiente apenas tê-la consigo, mas para sua esposa sempre fora diferente, desde o principio conforme as décadas passavam Mayu passou a necessitar de algo a mais, um desejo que lhe crescia desde o mais profundo de seu ser e que, de tempos em tempos, deixava-a cabisbaixa.

—Acho que ela quer ter um filho. — Gintsune declarou com absurda facilidade, certa noite em que os dois se punham a beber sob o luar.

E Satoshi, como não podia deixar de ser, se engasgou.

—Um filho? — repetiu com voz estrangulada.

A raposa arqueou-lhe uma sobrancelha.

—Ora, e o que esperava? Há quando tempo vocês já estão casados? Meio século? Creio que seja quase isso, de qualquer forma é apenas natural que alguma hora vocês comecem a pensar em filhos, se os querem ou não. — deu de ombros. — Já… falaram sobre isso?

Satoshi engoliu o resto da dose de saquê em um só gole.

—Não… nunca. — respondeu desconfortável.

Gintsune observou-o atentamente enquanto lhe servia de mais saquê.

—Acaso… não gosta da ideia de ter filhos?

Satoshi sacudiu a cabeça.

—Não é esse o caso! — baixou o rosto, apoiando a cabeça pesadamente sobre a mão — É só que… o que você acha que a vila fará se acaso eu e ela tivermos filhos? Os ignorarão por seu sangue humano? Ou os mandarão executar como fazem aos filhotes que nascem sem asas? Ou os exigirão para si por seu sangue tengu? O que acha que vai se passar?!

Sério e pensativo Gintsune tomou seu saquê.

—Ah, mas lembre-se bem, humanos são débeis e frágeis, mas seu sangue é surpreendentemente forte, então ainda que um dos pais seja youkai ainda há a possibilidade de que a criança venha a ser completamente humana e então eles certamente a ignorariam por completo. Mas na possibilidade de que fosse um meio youkai e a ordem fosse pela execução, você permitiria?

—Mas é claro que não! — o tengu respondeu sem titubear.

—Pois eu tampouco. — Gintsune concordou seriamente, e um sorriso cruel despontou-lhe os lábios — Provavelmente mataria a todos que tentassem tocá-los.

E bebeu seu saquê calmamente, até que Satoshi lhe tirou a taça das mãos.

—Creio que já está passando da conta, irmão. — comentou.

A raposa deu de ombros.

—De qualquer forma, já estamos de acordo que da parte dos tengus não há o que se temer. — afirmou.

—Mas não é apenas isso! — o tengu deixou também a sua própria taça de lado. — E se a criança nascesse com a minha cara?

—Pois melhor! — Gintsune voltou a pegar a própria taça e servi-se — Não me entenda mal, sua mulher é bela, mas é apenas uma humana, não se compara à beleza sobrenatural de um you...

—Mas não é dessa cara que estou falando! — Satoshi voltou a tomar-lhe a taça das mãos e pô-la de lado — É da outra, a verdadeira!

Gintsune girou os olhos.

—Ah claro, o bico, as penas e tudo mais.

—Sim! O bico, as penas e tudo mais! — Satoshi confirmou por entre dentes.

—Ainda continua neurótico com isso? Escute tengu, eu sei que bebês tengus não são nada bonitos, mas você já se deu conta de para que tipo de mundo a trouxe? Acaso sabe quanto tempo já se passou? O tanto de coisas que ela já viu? Sua esposa sabe perfeitamente que você não é humano! Sempre soube! E não pense você que ela não sabe como é a cara de um tengu, todo humano a conhece! Mostre logo sua cara a ela homem!

Satoshi remoeu aquilo por algum tempo antes de responder:

—Ainda não estou preparado.

Gintsune atirou os braços para o alto em sinal de desistência.

—Faça como quiser então! — ele jogou-se para trás e deitou-se ali mesmo, olhando o borrão turvo da lua por trás da névoa de miasma no céu — Sabe, estamos falando sobre isso, mas sua esposa nem sequer está grávida. — deu-se conta — E talvez nunca venha a ficar… essa possibilidade também existe, sabia? — Satoshi ouviu quieto — Já falaram sobre isso?

—Não falamos sobre coisa alguma a respeito disso. — Satoshi resmungou.

—Deviam falar. — Gintsune estalou a língua — Nem sempre é possível a um humano e um youkai gerarem uma criança.

Satoshi suspirou afundando a cabeça entre as mãos.

Mas ele só veio a mostrar seu verdadeiro rosto à Mayu praticamente um século mais tarde quando, independente dos temores dele, ela ficou grávida, mesmo que ambos já houvessem desistido ou mesmo se esquecido de que essa possibilidade existia.

—Agora que está grávida você precisa saber. — ele lhe dissera naquela vez — Tenho certeza que já vistes algumas gravuras de tengus por aí, e inclusive aquele desgraçado do Gintsune deve ter te mostrado algumas ele próprio, mas… ainda assim é melhor que você veja por sim mesma como realmente são as coisas.

Ele fechou os olhos e, repirando fundo, revelou-se a ela.

Penas, asas e bico, tudo às claras para que Mayu o visse como era realmente e então quando abriu os olhos para ver à quão horrorizada ela encontrava-se… viu que havia lágrimas em seus olhos.

Envergonhado Satoshi cobriu a face com as mãos.

—Sinto muito. — desculpou-se — Sei que essa visão é um duro golpe para você, mas você precisava estar preparada para quando…

Mayu afastou suas mãos.

—Não ouse pensar algo assim! — disse-lhe, e agora as lágrimas corriam-lhe livremente pelas faces — É só que… cheguei a pensar que nunca confiaria em mim para mostrar-me isso.

Aquelas palavras quase o fizeram relaxar e Satoshi inclusive ergueu a mão para secar-lhe as lágrimas, até que se lembrou do verdadeiro propósito para ter-se resignado àquilo:

—Ouça Mayu, você por acaso já viu como se parece um passarinho recém-nascido? — ela deu de ombros e Satoshi continuou: — Eles não têm pena alguma, são mirrados, rosados e pelancudos. Não é algo bonito e um bebê tengu... — pigarreou — Bem, eles têm o corpo de um recém-nascido humano, mas a cabeça é a de pássaro que acaba de romper a casca do ovo e há também as asas, e tengus são incapazes de mudar sua forma durante boa parte da infância…

—Satoshi. — Mayu o chamou seriamente — O que trago aqui é nosso filho, seu e meu, irei amá-lo independente de como se pareça. — e então o puxando para si, beijou-lhe o topo da cabeça emplumada e sorriu-lhe docilmente — Não seja tolo.

Todos os medos de Satoshi foram tranquilizados naquela noite, pois eram infundados, tal como a raposa sempre lhe dissera, na verdade Gintsune poderia muito bem ter tripudiado do amigo, rindo-lhe e dizendo-lhe “eu te avisei”, mas ao invés disso ele limitou-se a fumar seu cachimbo e pergunta-lhe:

—E já escolheram o nome?

Meses mais tarde Satoshi foi assolado por uma nova onde de pavor, e dessa vez muito mais avassaladora, quando Mayu começou a sentir as dores do parto.

—Ela está sofrendo! — exclamou angustiado, arregalando os olhos ao ouvir os gritos de Mayu.

Embora houvesse um ou outro tsukumogamis agressivos, especialmente aqueles nascidos de armas, a grande maioria era pacifica e até simpática aos humanos, e por isso para auxiliar Mayu naquele momento Gintsune e Satoshi se encarregaram de chamar duas tsukomogamis nascidas de um par de jarras gêmeas, e eram elas que estavam com sua esposa agora, enquanto Satoshi fora expressamente proibido de se aproximar.

—Mas é claro que está sofrendo! — Gintsune exclamou, tratando de mantê-lo onde estava — A mulher está fazendo passar uma melancia pelo buraco de uma ameixa!

Satoshi nunca antes havia se inteirado de que forma se dava, ou do quão doloroso realmente era, o nascimento de uma criança, na vila as mulheres que concordavam em ter os filhos dos tengus eram mantidas afastadas, na chamada “vila secreta” onde davam a luz auxiliadas umas pelas outras e ali criavam seus filhos pelos seus primeiros anos de vida até ser chegada a hora de entregá-los para a vila e partir (caso não quisessem mais ter as crianças dos tengus) ou levá-las consigo (caso tivessem uma filha não tengu), mas agora ali, ouvindo os gritos e a agonia de sua amada Mayu, Santoshi era em fim capaz de compreender porque até mesmo deusas podiam padecer naquele processo.

—Mas ela é tão frágil e delicada! — desesperou-se — Uma dor assim...! Por que ninguém me disse nada? — Mayu voltou a gritar — Ela pode morrer!

—Não vai! — Gintsune o segurou pelo braço, puxando-o para trás — É tormentoso assim mesmo! Crê que se todas as mulheres humanas morressem na cama de parto a espécie ainda existiria?!

—Mas nem todas as mulheres humanas colocam no mundo o que minha esposa está colocando agora! — Satoshi tentou soltar-se — Ela é humana, o bebê não! — Novamente ele puxou o braço, em vão — Mas por que está me segurando aqui imbecil?! — lutou para ver-se livre — Não posso ficar sentando bebendo tranquilamente enquanto ela sofre! E se ela...?!

Uma bofetada da raposa o calou.

—Não sabe que dizer coisas ruins as atrai? — perguntou furioso — Acalme-se tengu estúpido!

Há poucos metros dali Mayu ainda gritava em seu quarto.

Satoshi tinha os olhos arregalados.

—Como posso acalmar-me?! — perguntou frenético. — Não a está ouvindo?! Preciso estar ao seu lado...!

Mais uma vez ele tentou ir ao encontro de Mayu, e mais uma vez foi detido por Gintsune, que dessa vez o prendeu numa chave de braço.

—Você fica aqui estúpido! — rosnou ao seu ouvido — Aquela garota já está sofrendo e apavorada o suficiente lá naquele quarto! Quer entrar lá com essa cara de pavor e fazê-la crer que há algo de errado que não a estamos contando e assustá-la ainda mais? Se quiser mesmo entrar ali, primeiro vai ter que se acalmar!

Satoshi não sabia o que poderia ter feito daquela vez, seu primeiro impulso era socar a cara de Gintsune — e qual teria sido sua reação? — e então correr para junto de Mayu, mas justo naquele instante ele ouviu um som diferente: o choro de seu filho.

E só então Gintsune o deixou partir.

Chamaram ao primeiro filho de Akira, pois ele nasceu com a primeira luz de uma manhã de outono.

É claro que mesmo já tendo passado por tudo aquilo, o tengu voltou a entrar em desespero quando, uma década e meia depois, Mayu voltou a entrar em trabalho de parto… e talvez tenha reagido um pouco pior, porque dessa vez Gintsune ameaçou inclusive nocauteá-lo para mantê-lo onde estava.

Eles chamaram ao segundo filho pelo nome de Akihiko.

E muito mais tarde Mayu lhe confessou que na verdade seu maior temor era que tivesse que por um ovo ou regurgitar comida para alimentar seu bebê...

—Sua mulher quer que você vá embora.

Satoshi ergueu os olhos do chapéu ainda meio trançado em suas mãos.

—Como é? — engasgou-se.

—Sua mulher quer que você vá embora. — repetiu o oni de pele azul à sua frente. — Agora. Pra bem longe e o quanto antes melhor. Isso entre vocês não vai dar certo.

Meses atrás a deusazinha os convencera a permanecer com eles na vila oni.

 

—Sua esposa está grávida, ela não pode se mover tanto, não é? — ela lhes dissera, agarrando as mãos de Satoshi — E também precisa ficar em segurança! Certo? Então fiquem aqui! Vamos mantê-la segura! Ninguém jamais poderá tocá-la enquanto estiverem aqui! Fiquem! Fiquem!

É claro que eles sabiam que tudo o que Hikari queria era ter por perto a única humana daquele mundo e os tão raros meio tengus, mas ela tinha razão, Mayu precisava de um lugar seguro para ter o bebê e a vila oni certamente o era, pois apesar de seus constantes ataques, nenhum jamais era bem sucedido, e muito menos logravam em alcançar a caverna da deusa, onde Mayu também habitava agora, pelo menos até a primavera.

O tengu colocou-se de pé com um salto.

—Espere! Espere! Espere! O que quer dizer com isso?!

—A deusa disse que seu filho vai nascer nos próximos dias — O oni grunhiu. — E por isso sua mulher te quer bem longe daqui.

—Mas por quê?!

O oni já estava se afastando, e sacudiu os ombros com descaso.

—Para que ela possa ter o bebê em paz, sem você arrancando os cabelos ao lado dela, então se vá logo de uma vez, por uma quinzena ou duas talvez, mas vá pra longe. — bufou — Seus filhos podem ficar.

E Satoshi permaneceu parado e completamente boquiaberto, exatamente onde estava.

*.*.*.*

Como era próprio dos predadores, Gintsune tinha sentidos e instintos aguçados que o auxiliavam em suas caçadas… e a raposa pôde ouvir como o coração de Haruna se acelerava ao ouvir a voz de sua querida e doce aluna.

Amor? Nervosismo? Culpa?

Possivelmente um pouco dos três.

O fato era que, indiscutivelmente, Haruna o andava evitando… algo até bem engraçado quando se levava em conta que agora Ayaka Shiori sentava bem na frente da sala e especialmente sendo ela tão fofa.

—Olá professor! — Gintsune surgiu repentina e sorridentemente diante de Haruna.

O professor deteve-se bem a tempo de evitar o choque com sua aluna, mas que escolha Gintsune tinha? Se ele ia ficar sempre fugindo assim, só lhe restava pegá-lo de surpresa daquela maneira.

—Ayaka. — o professor a cumprimentou — Desculpe, mas tenho que ir para minha próxima aula agora.

“Ayaka” e não “Ayaka-chan”.

Ele também deu um passo para trás e segurou seus materiais em frente ao peito, tudo isso apenas para manter distância?

—Mas do que está falando, professor Haruna? — Gintsune não conteve seu sorriso — Estamos bem no meio do intervalo!

O professor trocou o peso de um pé para o outro, e quase sem hesitação alguma arrumou uma nova desculpa:

—Sim, o que eu quis dizer foi que preciso ir me preparar para a próxima aula!

Ele lhe deu a volta e começou a afastar-se, mas Gintsune começou a segui-lo.

—Ora professor, não seja tão mal! — reclamou seguindo-o — Eu só quero saber dos gatinhos, o senhor os rebatizou? Disse que se todos se chamassem Tama, seria muito confuso, lembra?

—Ora, Ayaka-chan, nem todos os gatos podem se chamar Tama, sabia disso? — ele riu.

Ayaka-chan. Haruna baixava a guarda rápido demais. Gintsune continuou seguindo-o.

—Então que nome deu a eles?

—Os machos são Tsuki e Yuki. A fêmea é Hana.

—“Lua”, “neve” e “flor”, que bela composição. — Gintsune sorriu — Que lindo professor, há algo de poético em você, não é?

E ele certamente conhecia alguém que teria gostado daqueles nomes... “Lua, neve e flor, você consegue ver? Como expressam a natureza e a passagem das estações de maneira tão delicada e sensível? Mesmo sendo criaturas tão brutas e vulgares...”.

Momiji os desprezava ou os admirava? Talvez um pouco dos dois, simplesmente não havia como Gintsune saber, pois sua irmã era um ser nobre e digno, com uma mente muito diferente a dele, aquilo lhe despertou um pequeno sorriso, quando fora a última vez que a vira?

Um século e meio ou dois, talvez… não era grande surpresa, ele sempre estava metido entre os humanos, e quando isso deixou de ser possível, passou praticamente todo o tempo encerrado naquele “antro imundo” — ele a conhecia bem o suficiente para saber exatamente que tipo de palavras ela usaria — onde fizera sua casa, e ela jamais gostou das multidões, e tampouco da “imundice”, além de que provavelmente jamais pensou em procurá-lo em um lugar como aquele… sua irmã provavelmente deveria estar em algum lugar isolado, sim, e alto, para que pudesse ver a lua.

Gintsune sabia como a irmã amava a lua e as flores, e também amava o outono, por isso escolhera aquele nome para si.

—Tem isso também. — Haruna riu — Mas Tsuki é muito agitado, entende? Eu achei que um nome mais tranquilo poderia acalmá-lo, e quando vi já havia combinado os três!

—Funcionou?

—Nem de longe! — o professor balançou a cabeça, ajeitando os óculos — Ele pulou na minha cara enquanto eu dormia no meio da madrugada, umas quatro noites atrás, depois disso tentei proibi-los de entrar no meu quarto, mas então Hana começou a chorar e arranhar a porta a noite inteira, então eu simplesmente não p...

Eles já estavam andando lado a lado agora, Gintsune quase podia roçar “acidentalmente” seu braço ao professor, há quanto tempo ele não visitava os sonhos de Haruna? Umas duas semanas. Provavelmente. Havia se descuidado e diminuído a frequência das visitas graças aquele seu encontro com o deus das flores… talvez ele devesse lhe fazer uma visita em breve?

—A sala dos professores! — Haruna exclamou de repente, como se ele próprio houvesse ficado surpreso por já terem chegado ao seu destino. E virando-se para sua aluna disse: — Bem Ayaka, a partir daqui é território proibido para você, então até mais!

E ele entrou rápido demais na sala, quase como se estivesse fugindo.

Gintsune riu dando meia volta e voltou assoviando pelo corredor, com o embrulho contendo a caixa vazia de obento sacolejando em suas mãos, Yukari continuava preparando o almoço para ele todos os dias, pois “cozinhar para duas pessoas não é muito diferente de cozinhar para uma, e assim você para de comer a comida das minhas amigas seu descarado”, entretanto depois dos primeiros dias as outras garotas começaram a ficar curiosas sobre porque os almoços de Yukari e Shiori eram sempre iguais, e ele podia muito bem ter dito a verdade e se divertido com a confusão e o, quase certo, constrangimento de Yukari tentando explicar as coisas ou arrumar algum tipo de desculpa — embora na maioria das vezes ela fosse péssima mentirosa —, mas ao invés disse acabou optando por ser, ao menos uma vez na vida, cavalheiro e solicito e deixou de comer com as garotas para não despertar mais perguntas nelas a respeito de seu almoço… ao menos ele tinha uma desculpa plausível para se afastar da sala de aula durante o intervalo.

—Ah Yonekura, a que devemos sua presença aqui pela terceira vez na semana?

A representante, que independente da vontade dela havia voltado ao seu antigo posto pela maioria dos votos, perguntou cinicamente deixando a entender que sabia exatamente o porquê de ele estar ali.

Yonekura Eisuke o novo representante da classe 2-7 — assim como havia sido no ano passado da classe 1-7, porque aparentemente os cargos de representante eram praticamente vitalícios — sorriu-lhe pegando-a pelo queixo.

—Vamos Aiha-chan, não precisa estar com ciúmes.

A representante girou os olhos e afastou a mão dele de seu rosto.

—Ayaka não está. — avisou-o, e então sorrindo maldosamente acrescentou: — Parece que ela o está evitando, não é mesmo?

Desde o semestre anterior Esisuke havia começado a fazer algumas esporádicas visitas à sala de Gintsune durante o intervalo, na primeira vez havia lhe feito um convite para sair, e embora tenha parecido hilariamente surpreso quando foi rejeitado ele se recuperou rápido o bastante para dizer-lhe que “não precisava de pressa para responder, porque ele voltaria para buscar sua resposta em cinco dias”, o que apenas por acaso coincidia exatamente com o dia dos namorados, Gintsune seria capaz de apostar uma de suas caudas que o garoto esperava encontrá-lo com chocolates, olhos apaixonados e uma resposta afirmativa ao seu convite… e a cara de decepção/surpresa ao não encontrar nada disso foi com certeza três vezes mais engraçada que a primeira!

Mas o garoto não desistia tão fácil assim, e lhe deu o seu número de telefone para que “ligasse quando quisesse” — Gintsune poderia tê-lo enfiado na bolsa ou jogado-o fora, francamente  não fazia a minima ideia — e depois disso deixou de aparecer por ali pelo resto do semestre levando a raposa a crer que ele havia desistido.

Porém não foi bem assim.

Talvez Eisuke realmente acreditasse que alguma hora Ayaka Shiori fosse lhe ligar, e quando as coisas não ocorreram assim, ele acabou passando para outro “plano de ataque” de forma que aquela era apenas a primeira semana de aula e ele já estava ali pela terceira vez!

Não que Gintsune pudesse culpá-lo, afinal quem não ficaria fixado em um rosto como o seu? E, além do mais, ele também estava sendo de grande ajuda a ele e a Yukari, já que era a sua desculpa para não comer mais em sala de aula.

Hum… na verdade Gintsune até poderia sair com ele, afinal o rapaz era, provavelmente, até bonitinho — para os padrões humanos, é claro —, mas isso não tinha importância, porque ele simplesmente não lhe via nada de interessante, então… é. Sem chance. Deu de ombros.

—Yo. Ayaka. — a representante cumprimentou — Se chegasse uns quinze segundos antes você teria dado de cara com o seu admirador.

—Meu admirador? — deu um risinho inocente — Ora, representante, eu tenho dúzias de admiradores! A qual deles em específico você se refere?

A representante cruzou os braços e deu de ombros.

—Pois creio que ao mais recente e ousado deles: Yonekura Eisuke.

—Então ele veio novamente? — franziu o cenho fingindo ignorância.

—Eu ouvi dizer que Yonekura-kun é um mulherengo, embora haja outros piores, é claro. — Yukari intrometeu-se na conversa, aproximando-se por detrás da representante — Deve haver outras dezenas de garotas atrás dele, então por que ele está cismado assim agora?

Ela o olhava diretamente e de uma forma explicitamente acusadora enquanto fazia aquela pergunta, como se realmente acreditasse que ele pudesse ter… sei lá, enfeitiçado o garoto talvez? Que besteira, será que ela não era capaz de ver o quão belo era seu rosto? É claro que qualquer um cairia suplicando aos seus pés.

—Acho que ele não está habituado a ser rejeitado. — a representante opinou.

—Você o rejeita o tempo todo, representante. — Kaoru-chan a relembrou.

—Eu sou diferente, entre nós é mais como uma brincadeira porque o conheço desde que usávamos fraudas, a mãe dele costumava ser a senpai da minha em algum clube da escola, eu acho, e as duas eram vizinhas antes de se casarem ou qualquer coisa assim. — declarou com pouco caso, esse tipo de coisa acontecia o tempo todo em cidades pequenas — Embora eu não duvide que aquele sem vergonha não perdesse tempo em tirar proveito se eu lhe desse qualquer tipo de brecha, mas de qualquer forma, Ayaka, não há com o que se preocupar, porque eu garanto que em pouco tempo ele se cansará.

—E então você poderá voltar a almoçar conosco, Ayakashi-chan. — Kaoru-chan segurou suas mãos.

Ou ter que arranjar outra desculpa para evadir-se dali... Gintsune lançou um olhar de relance a Yukari.

—É melhor entramos de novo, o intervalo já vai acabar. — Yukari chamou-as, pondo a mão no ombro de Kaoru-chan.

—Sim, está certo. — concordou a representante já as seguindo — Mas aposto que realmente não são muitas aquelas que recusam o Yonekura, sabe? Mesmo se não estivessem muito interessadas, ele sempre usa o fato de ser um “pequeno herdeiro” a seu favor.

—Pequeno herdeiro? — Gintsune repetiu, sentando-se em seu lugar.

—Não é grande coisa. — garantiu a representante — Seus pais tem um restaurante tradicional e... — Restaurante?! — Ayaka, aonde vai?

—Eu acabo de me lembrar de algo importante! — respondeu apressadamente fugindo da sala.

—Mas e a aula? — gritou-lhe uma surpresa Kaoru-chan.

—Eu assisto à próxima! — respondeu sem querer perder mais tempo.

—Ah, francamente! — ainda chegou a ouvir Yukari bufar — Nem sequer tenta disfarçar!

Isso era verdade, mas que culpa ele tinha? Afinal mesmo humanos desinteressantes podiam se tornar repentinamente muito interessantes!

Naquele dia Ayaka Shiori foi vista saindo da escola alegremente em companhia de Yonekura Eisuke, Yukari bem que gostaria que aquela raposa fosse um pouco menos óbvia, mas aparentemente ele não se importava se ficava ou não com fama de ser interesseiro — certamente porque era verdade.

Ele também não apareceu pelo resto do final de semana na pousada ou no quarto de Yukari, porque com certeza estava por aí se divertindo com Yonekura-kun ou qualquer outra pessoa, mas não que ela se importasse, pois preferia ouvir o mínimo possível a respeito de suas aventuras — ou melhor, preferia não ouvir coisa alguma! —, porém ela também queria ter podido lhe perguntar se, agora que ele estava saindo com o herdeiro de um próspero restaurante, ainda havia a necessidade de ela continuar preparando-lhe o almoço para que ele não precisasse mais surrupiar dos pratos de suas amigas… se bem que, para inicio de conversa de conversa, Gintsune nunca realmente roubou comida de suas amigas por necessidade. Era só porque era um sem vergonha mesmo.

E esse mesmo sem vergonha não se importou nenhum pouco quando ela não lhe levou o almoço na segunda-feira, — afinal ele não havia aparecido em casa e ela nunca que iria lhe dar o obento[i] na escola à vista de todos! — porque, de qualquer forma, Yonekura-kun já havia prometido lhe dar o que comer naquele dia.

Talvez ele se mudasse para a casa de Yonekura-kun. Afinal com certeza havia muito mais comida a se encontrar em um restaurante do que em uma pousada, e Yukari pensou em perguntar a respeito disso para Gintsune da próxima vez em que o visse fora de seu papel como Ayaka Shiori, mas ela obviamente nunca esperou que isso fosse acontecer em frente à escola imediatamente após o final das aulas daquele mesmo dia.

—O que faz aqui?! — perguntou tão chocada que mal notou as colegiais que já se agrupavam em volta dele.

—Yuki, você o conhece? Quem é ele? — Kaoru perguntou ao seu lado, pois estavam saindo juntas da escola, visto que naquele dia Kaoru não tinha atividades do clube.

Gintsune ergueu os olhos das garotas com quem conversava e ria.

—Yo! Yukari! — a cumprimentou, desvencilhando-se das garotas para aproximar-se dela.

Yukari cruzou os braços franzindo o cenho.

—O que faz aqui? — voltou a perguntar.

Ele ergueu as mãos.

—Calma, por que sempre é tão ranzinza? — sorriu — Juro que não vim até aqui incomodá-la, apesar de a sua cara irritada ser tremendamente divertida!

Sem dúvida ele estava fazendo pouco dela, Yukari semicerrou os olhos.

Os cabelos estavam escuros como sempre ficavam quando Gintsune estava se passando por humano e eram presos no alto da cabeça por uma fita prateada que se destacava contra os fios, mas naquele dia a raposa estava usando as calças jeans e os tênis que havia roubado no distrito comercial no verão passado, porém a camisa era nova, de cor azul, e Yukari se perguntou que loja ele havia roubado daquela vez. Aquela raposa era ruim para os negócios da cidade, mas, pelo menos, não tão ruim quando poderia ser.

—Você definitivamente está me incomodando! — alegou.

—E o que posso fazer se você é tão ranzinza? — ele riu — Mas eu juro que não vim aqui para isso.

Ela franziu o cenho.

—E veio para que?

—Eu vim para...

—Obrigado por me esperar! — Yukari recuou quando um rapaz um pouco mais alto que Gintsune chegou, tocando-o no ombro amigavelmente — Vamos?

—Tudo bem. — ele sorriu-lhe, e então acenou para Yukari despedindo-se: — Até mais Yukari.

Yukari girou os olhos e virou-se para a direção oposta.

—Quem era aquele? — perguntou-se em voz alta, embora tivesse a impressão de já tê-lo visto em algum lugar.

—Você não sabe? — Kaoru perguntou surpresa ao seu lado, e Yukari sentiu-se envergonhada por ter se esquecido de que ela estava ali — Mas estava falando com ele!

—Não, não ele, desculpe Kaoru. — pigarreou — Aquele era um conhecido irritante meu, ele tem ido com alguma frequência à pousada ultimamente.

—Então é um cliente?

Um que não paga.

Sim.

—Estou surpresa! — Kaoru exclamou — Nunca te vi falar desse jeito com nenhum cliente!

—Bem, é que ele é realmente irritante. — deu de ombros — Mas esqueça, eu estava me referindo ao outro, o que chegou depois, tenho certeza que o conheço, mas não consigo lembrar o nome, está na ponta da língua...

—Isso é porque você quase não presta atenção no circulo social a sua volta, Yuki! — Kaoru disse quase em tom de repreenda — Aquele era Hannyu-senpai, ele está no clube de atletismo e também é amigo da representante.

—É mesmo? — perguntou educadamente.

Mas isso não significava muita coisa, Yukari pensou consigo própria, a representante tinha um monte de amigos… claro! Era aquele com quem a representante sempre estava disputando pelo primeiro lugar no raking de notas. Sim, o mesmo que vira sozinho na confeitaria pouco antes do natal.

Kaoru balançou a cabeça.

—Ele é popular, sabia?

Yukari inclinou a cabeça, não se importava realmente com a popularidade de um atleta aleatório.

Diferente dos dias anteriores, dessa vez Gintsune voltou para casa e estava no quarto de Yukari assistindo um filme no computador dela, quando a garota finalmente conseguiu arrumar um tempo para ir guardar o uniforme.

—Yo! Yukari! — a cumprimentou sem virar-se. — Escute. Essa senhora aqui com as roupas azuis e sacudindo essa vareta enquanto canta e transforma ratos em cavalos, é uma raposa, não é? Sim, porque esse negócio de transmutar uma coisa em outra por tempo limitado é coisa de raposa!

Mas Yukari deixou seu uniforme escolar pendurado em uma cruzeta e saiu do quarto fechando a porta atrás de si, sem sequer dirigir a palavra a ele.

—Ora. — Gintsune piscou — E agora o que foi que deu nela?

...

Quando a pousada tinha muitos “convidados” — como eles gostavam de chamar os hóspedes ali — Yukari geralmente era posta para trabalhar como uma das atendentes, sempre limpando cada mínimo canto e correndo de um lado para o outro para atender todas as vontades dos convidados, mas ainda assim havia umas poucas vezes em que ela era retornada à recepção. E foi ali que Gintsune a encontrou daquela vez.

—Quer me dizer por que está irritada dessa vez? — perguntou sobressaltando-a ao surgir repentinamente próximo a ela.

Yukari levou a mão ao peito, puxou a respiração por dois segundos, e só então perguntou:

—O que faz aqui?

 —Vim saber por que está irritada. — respondeu com calma.

—Vá embora daqui. — ela girou os olhos e o enxotou dali sacudindo as mãos — Se alguém o ver aqui...!

—Irão acreditar que sou apenas mais um hóspede. — ele abriu os braços exibindo a yukata exclusiva para os hospedes e recém roubada da pousada — Sua avó é a única que poderia me reconhecer e até aonde eu sei ela está lá nos fundos cuidando do jardim e alimentando os peixes. E se a sua preocupação é o seu pai, ele não vai sair do escritório por um tempo.

Yukari franziu o cenho.

—Você trancou meu pai com um de seus truques?

—Claro que não, eu apenas posso escutá-lo bem. — ele ocultou as mãos dentro das mangas — E então, vai me contar ou não por que está irritada comigo dessa vez? — ela deu de ombros, apoiando o rosto sobre a mão — Ah, mas está irritada! — acusou-a, recebendo em resposta um novo dar de ombros — E é comigo?!

Perguntou chocado. Ela olhou-o de canto.

—Obviamente.

—Mas por quê? — piscou confuso.

—De uma forma ou de outra parece que eu estou sempre irritada com você. Não é mesmo? Então que importância tem saber ou não o motivo?

E lhe deu as costas, arrumando a postura para atender um par de mulheres de meia idade que queriam saber a direção para um templo qualquer da região. Gintsune sorriu-lhes educadamente, mas assim que as duas se foram ele pegou Yukari pelo ombro e a virou novamente para si.

—Ouça Yukari, isso talvez possa ser uma grande surpresa para você, já que tem sempre alguém em algum lugar muito irritado comigo ou quem sabe até com desejos de me ver morto, mas me incomoda muito quando não sei a razão pela qual os outros estão irritados comigo! — declarou.

—Isso é porque você geralmente os irrita de propósito! — acusou.

—Exatamente! — confirmou aliviado por ela estar começando a compreendê-lo, ao menos em parte — E eu tenho certeza que dessa vez não fiz nada para te provocar, então será que pode me dizer por que está irritada? E não venha dizer que é porque eu peguei essa yukata, porque você já estava irritada antes disso!

Um trio de homens jovens saiu das termas conversando entre si sobre disputarem algumas partidas de ping-pong, e Yukari sorriu e acenou-lhes cordialmente com a cabeça, antes de voltar-se novamente para Gintsune.

—Dificilmente. — respondeu-lhe impassível.

—Por quê?!

—Porque não sei o porquê de estar irritada com você.

—Uou, espera, espera, espera! — ele inclinou-se sobre o balcão — Está me dizendo que está irritada comigo, mas nem sequer sabe o porquê?!

—Isso mesmo. — cofirmou tranquilamente. — Será que pode me deixar em paz agora? Estou trabalhando.

Mas que complicados eram os humanos!

—Não, só espere um minuto. — ele endireitou as costas, erguendo o indicador, enquanto apoiava a outra mão na lateral do quadril — Até hoje de manhã na escola estava tudo bem, não é?

—Correto. — ela confirmou.

Gintsune passou a mão pelo queixo de maneira pensativa.

—Então, o que pode ter acontecido de lá para cá, para que você... — franziu o cenho — Yukari, você por acaso não se irritou porque eu estava esperando Say-chan em frente ao colégio hoje ao invés de você, se irritou?

Yukari franziu o cenho, como se também estivesse ponderando sobre aquela possibilidade.

—Acho que sim. — admitiu.

Oh, droga!

—Yukari. — chamou-a seriamente, ocultando as mãos dentro das mangas — Você está com ciúmes?

—Ciúmes? — ela repetiu com voz monótona e rosto impassível. — Por que eu teria ciúmes?

Ela não estava negando ou tampouco se esquivando da pergunta, Gintsune percebeu, era uma dúvida genuína aquela que estava exprimindo ali.

Gintsune pigarreou.

 

—Talvez isso seja um pouco minha culpa... — começou por dizer — Eu já devia ter lhe advertido antes, Yukari, mas não é uma boa ideia apaixonar-se por mim, entende? Você é minha amiga, e não seria divertido machucar seu coração.

A garota inclinou a cabeça levemente de lado, mas não alterou sua expressão impassível.

—Você é só um velhaco, bêbado e libertino. Francamente o que há de bom para gostar em você além do seu rosto? — perguntou-lhe.

—Ai. — Gintsune levou a mão ao peito, com expressão falsamente magoada — Pois fique sabendo que eu tenho sim vários pontos positivos. Mas creio que não seria vantajoso para nenhum de nós se eu começasse a enumerá-los aqui.

E então desapareceu no ar e Yukari girou os olhos, ele nunca deu a mínima se ela estava ou não irritada com ele, apenas lhe importava saber o motivo. Porque aparentemente raposas eram movidas pela curiosidade.

E além do mais... ciúmes dele? Ela? E principalmente... amiga?! Desde quando eles eram amigos?!

—Olá Shibuya-chan! — o professor Haruna a cumprimento, surgindo repentinamente diante dela, quase dá mesma forma que a raposa fizera há poucos instantes.

—Professor! — Yukari exclamou — Que surpresa!

—Eu sei, já faz um tempo, não é? — ele sorriu sem jeito tirando a carteira do bolso — Mas hoje pensei que um bom banho seria justamente o que minhas costas precisam.

—Faça um bom proveito. — ela inclinou educadamente a cabeça ao receber o pagamento.

Porém, assim que o professor entrou no balneário, Yukari ouviu um grande estrondo, como se todo um time de beisebol estivesse descendo as escadas correndo.

—Foi o Haruna que passou aqui?! — Gintsune exclamou euforicamente atravessando o salão como um raio.

Yukari suspirou e deitou a cabeça sobre os braços cruzados.

Idiota!

*.*.*.*

Akihiko já estava acostumado a ser odiado aonde quer que fosse desde que nascera: Na sua cidade natal ninguém nunca ousou erguer a mão, ou tão pouco mostrar as garras ou presas para ele e sua família, porque todos tinham muito medo de Gintsune-Sama, e sempre se afastavam deles com resmungos e olhares raivosos cheios de desprezo… apesar de que Akihiko nunca entendeu direito o porquê de terem tanto medo de Gintsune-Sama se ele era sempre tão engraçado, divertido e inofensivo. Mas isso era bom para a sua família, então ele não se importava.

E aí Gintsune-Sama desapareceu e todos os youkais os tentaram matar.

Já na vila tengu ninguém nunca os tinha tentado matar — pelo menos não tão abertamente —, mas todos estavam sempre gritando e erguendo as mãos — às vezes segurando pedaços de pau com elas — para ele e Akira, eles tinham que aprender a serem tengus, diziam, mas também diziam que eles nunca seriam tengus de verdade.

Ah, e eles odiavam a existência de Akihiko e do irmão, e desprezavam o pai deles, mas ainda assim sempre exigiam que voltassem para lá e eram altamente contra o fato de eles abandonarem suas terras — e talvez inclusive os estivessem caçando agora.

Parece que tengus estavam sempre zangados, gritando e se contradizendo assim.

Eles eram mesmo uma raça muito confusa afinal… e os onis o lembravam deles um pouco, porque apesar de serem menos inteligentes e mais fortes, eles também eram territoriais e brigões.

Mas ainda assim Akihiko gostava da vila dos onis.

Os onis os chamavam de “pequenos meio corvos” e ao pai simplesmente como “corvo” ou “tengu”, mas eles não os odiavam ou erguiam suas monstruosas patas contra eles, exceto durante os treinos de batalha, e não se incomodavam se Akira gostava de se meter entre eles para treinar — embora agissem mais como se ele fosse um inofensivo inseto do que realmente um adversário a se levar em conta — ou se Akihiko não gostava de batalhas e preferia realizar outras tarefas ao invés disso, ali eles também eram livres para voar para onde quisessem e quando quisessem, afinal o território daqueles onis era muito vasto, mas ainda assim o pai os alertara que não se afastassem demais da vila, porque os onis não contavam com as mesmas proteção mágica dos tengus e, graças ao cobiçado poder de sua deusazinha, estavam constantemente sob ataque. O que em parte não parecia ser de todo mal também, já que os onis adoravam brigar.

E daí que antes eles quiseram matá-los e entregar seus corações para serem devorados pela deusa oni deles? E que agora toda a “hospitalidade” era apenas porque Hikari-chan havia dito que eles não podiam machucá-los? Na sua cidade natal ninguém nunca os tocava apenas porque tinham medo de Gintsune-Sama também, e mesmo assim sempre os olhavam de maneira hostil como se os fossem tentar matá-los na primeira oportunidade que tivessem — como de fato fizeram —, já ali ninguém parecia se importar com eles.

Afinal se a deusa deles havia dito que eles eram convidados, então eles eram convidados.

Devia ser legal ser uma deusa.

—É cansativo! — sua mãe reclamou enfadada deixando os braços caírem ao lado do corpo.

Erguendo a cabeça bruscamente, Akihiko parou de olear a lâmina da naginata da mãe e olhou-a.

—Cansativo?! — repetiu surpreso — Mas a senhora só está deitada há dias!

—E é exatamente disso que eu estou falando! — reclamou inconformada, e impaciente começou a disparar várias perguntas de uma vez: — Quanto tempo faz que eu não saio daqui de dentro? Como está o dia lá fora hoje? Se é que é dia ainda, ou será que já é noite...?

Ela parou de falar com um gemido e Akihiko piscou atordoado.

—Tem vinte e dois dias, mãe, hoje o dia está bom eu acho… e sim, ainda é dia, é quase hora do almoço agora.

Ao contrário de Akira e Akihiko, os pais de ambos não pareciam estar gostando muito de sua estadia na vila dos onis, pois enquanto Akira e o irmão se alojaram numa das cabanas da vila junto com o pai, a mãe permanecera na caverna da deusazinha e desde então havia saído pouquíssimas vezes dali, não apenas porque o lado de que fora era muito perigoso, como também porque o pai deles se recusava a ficar carregando-a no ar o tempo todo, pois “sacudi-la daquela forma podia machucar o bebê”, deixando-a muito irritada com ele — mas por outro lado isso era uma grande alegria para Hikari-chan que a tinha o tempo todo ao seu lado para falar-lhe sobre os humanos.

E embora a entrada nos aposentos da deusa oni fosse proibida a quase todos exceto aos seus pequenos tsukomogamis serviçais, que estavam o tempo todo correndo de um lado para o outro por ali, tanto Akihiko, quanto o irmão e o pai tinham plena liberdade para entrarem sempre que quisessem, inclusive quando o pai dos garotos voou irado para lá uns poucos dias atrás — ele havia exposto as asas mais vezes naqueles poucos meses na vila oni, do que em séculos na cidade natal deles ou na própria vila tengu!

Nesse dia era Akira quem fazia companhia à mãe, portanto Akihiko não tinha entendido muito bem o motivo da briga, mas foi realmente estranho porque, segundo Akira, foi o pai que se irritara primeiro, mesmo que antes sempre tenha sido o contrário, inclusive com a mãe de ambos declarando por várias vezes que “o marido e o amigo idiota dele davam mais trabalho que os filhos”! E agora ela queria que ele fosse embora, apesar de que os garotos não tenham entendido ao certo se isso era porque os dois haviam brigado, ou se os dois haviam brigado porque ela queria que ele fosse embora. De uma forma ou de outra o pai teimara em ficar, a mãe estava cada vez mais impaciente e nada fazia sentido.

—Parece que voltei a viver entre os humanos. — sua mãe suspirou.

—Era assim a sua vida antes, mamãe? — perguntou curioso.

Afinal ela quase nunca falava daquele passado.

—Quase assim. — ela assentiu entediada, recostando-se à parede atrás de si — Eu era de uma família nobre, já lhe contei isso querido? Garotas nobres tinham que ficar o tempo todo obedientemente enclausuradas em seus lares, longe dos olhares curiosos, lendo e escrevendo poesia, pintando, ou o que fosse. — Aquilo trouxe uma pequena careta ao rosto do garoto, que não conseguia imaginar a sua sempre tão agitada mãe tão quieta e submissa daquela forma. — Claro que eu sempre fugia, e levava umas boas surras por isso. — ela relembrou-se com uma risadinha, ah sim, aquilo sim fazia mais sentido. — Mas acho que isso de agora talvez seja um pouco pior… mais do que sentir-me de volta a minha vida humana, sinto-me como uma verdadeira princesa imperial!

Ela girou os olhos.

—O que quer dizer mamãe?

—Meu irmão contou-me que as princesas não podiam ser vistas e nem ouvidas por ninguém abaixo delas, somente aqueles de alto nível social ou que por elas eram favorecidos é que possuía esse privilégio, eu ao menos era livre dentro do terreno de meu pai, mas uma princesa deveria permanecer perpetuamente oculta em seus aposentos por detrás de um biombo, sem jamais ser ouvida e muito menos vista por alguém de classe inferior. Não lhe parece um martírio ser tão nobre assim?

Na verdade parecia-se um pouco com Hikari-chan, exceto que em grande parte ela se enclausurava ali por vontade própria, já que amava estar cercada de seus tesouros.

—E a senhora tinha muitos irmãos?

—Dois irmãos e três irmãs. — contou-lhe — Claro que não éramos todos filhos da mesma mãe.

—O que quer dizer com isso? — Akihiko olhou-a surpreso.

—Quando se é um homem humano nobre, tem-se o direito a ter mais de uma mulher, além de sua própria esposa, como uma forma de ter mais filhos e garantir um herdeiro, e quanto mais rico, mais mulheres se podem ter, porque é necessário sustentar a elas e toda a sua pro... — começou a explicar-lhe, mas deve-se com um gemido e um espasmo de dor.

—Mãe, a senhora está bem? — perguntou preocupado.

—Estou sim, é claro. — ela garantiu relaxando e entrelaçando os dedos sobre a barriga — Meu pai tinha uma esposa e duas concubinas, ouvi dizer que a esposa dele esteve grávida por seis ou sete vezes, mas só o primogênito sobreviveu, ele era meu irmão mais velho e também o herdeiro de meu pai, depois dela havia a primeira concubina, mas ela não teve nenhum menino, apenas três meninas, e depois vinha a minha mãe: a segunda concubina. Ela teve a mim e, anos depois, o meu irmão mais novo Akio... — Ela deteve-se novamente, dessa vez gemendo um pouco mais forte, porém antes que Akihiko voltasse a interrogá-la, deteve-o erguendo uma mão. — O bebê só está chutando um pouco mais forte hoje. — garantiu, mas havia gotículas de suor começando a surgir em sua testa — Então como eu estava dizendo, a esposa e a primeira concubina, assim com as filhas dela, me detestavam, mas meus irmãos e meu pai me amavam profundamente.

—E brigavam muito?

De repente fechando os olhos e cerrando a mandíbula com força, sua mãe esticou o braço para pegá-lo pela manga.

—Akihiko. — chamou-o com o rosto contorcendo-se em um espasmo de dor — Seu pai ainda está lá embaixo na vila?

—Está. — respondeu, e observando bem o rosto da mãe questionou: — A senhora tem certeza que está realmente bem?

—Acha que você e seu irmão juntos conseguem imobilizar seu pai? — ela perguntou-lhe em lugar de responder-lhe e voltou a gemer.

—Mas por que faríamos...?

—Akihiko! — Hikari-chan chamou-o entrando no grande salão cavernoso — Desça o rochedo, rápido! E traga a avó Nanako até aqui!

Akihiko empalideceu assustando-se com a urgência na voz de Hikari-chan que não demonstrara qualquer traço de preocupação nem mesmo quando aquele gashadokuro atacou o território oni e alcançou a vila, tendo inclusive matado quase uma dúzia de seus onis antes de finalmente ser derrotado, dizendo com seu típico sorrisinho malicioso apenas que “era uma pena que ele não tinha um coração para ser devorado” depois que o monstro foi morto.

—O que está acon...?! — Sua voz foi cortada pelo grito estridente da mãe, que se curvou para frente levando ambas as mãos a barriga. — Mamãe!

Jogando a naginata de lado ele se apressou a acudir a mãe, mas foi empurrado de lado pela deusazinha.

—Não fique aí parado! Vá logo chamar vovó Nanako! — incitou-o.

Sua mãe voltou a gritar, fazendo-o ficar de pé com um salto.

Os gritos atraíram imediatamente a atenção dos guardas de Hikari-chan que estavam sempre apostos na entrada da caverna, mas ainda assim eles não ousaram atravessar as persianas de bambu.

—Senhora! — chamaram lá de fora — O que está acontecendo?!

E sem entender o que se passava eles ainda tentaram deter Akihiko quando ele fugiu em disparada dos aposentos da deusa oni, mas ele era pequeno e muito ágil, e conseguiu desvencilhar-se deles, jogando-se da caverna e abrindo as asas para mergulhar no ar ainda há tempo de ouvir as últimas palavras de Hikari-chan:

—O bebê está chegando! Então haja o que houver não deixem aquele tengu entrar aqui até ouvirem o primeiro choro da criança!

“Aquele tengu”, como disse Tennyo Hikari, estava naquele momento pescando em um rio das proximidades da vila, junto a Ryota, o próprio pai da deusa oni.

—Como ela pode querer-me longe durante o nascimento de nosso próprio filho?! — nu da cintura para cima e com água até os joelhos, Satoshi reclamava irritado atravessando com sua lança um peixe que nadava nas proximidades.

—Tente não espicaçar o peixe todo e deixar o bastante do bicho para comermos. — Ryota o advertiu em tom entediado, agachado na margem do rio — Afinal por que quer estar lá? Eu também não estava lá quando minha filha nasceu, ela veio flutuando até mim num cesto! Quando as mulheres da vila têm filhos, os homens também são proibidos de se aproximar, é normal, sabe? 

—É claro que sei! — Satoshi arrancou o peixe da ponta de sua lança e então o jogou para o oni que o guardou num cesto ao seu lado — Na vila secreta as mulheres também tinham seus filhos sem a presença dos tengus, mas isso é diferente! Eu preciso estar lá para ela!

Distraidamente Ryota mergulhou a mão no rio, tirando dali um peixe e, ainda enquanto o animal se debatia, arrancou-lhe a cabeça com os dentes.

—Mas não é ela própria que o está enxotando? — questionou ainda mastigando — Além do mais, mesmo que estivesse lá, de que ajuda você seria em caso de algum problema? É um processo bem difícil, pelo o que ouvi dizer, toda aquela dor e gritos, e todo aquele sangue também!

O oni girou os olhos e enfiou o resto do peixe na boca.

—Por que você mencionou problemas e sangue?! — Satoshi virou-se alarmado, cravando sua lança no fundo do rio sem perceber que havia empalado outro peixe no processo — Quanto sangue?! E por que disse problema?! O que vocês estão escondendo de mim?! O que foi que a deusazinha realmente disse?!

—Acalme-se homem! Minha filha disse que vai ficar tudo bem, não disse? “Será um parto rápido e fácil” e ela nunca errou em uma predileção dela! — Ryota bradou levantando-se impaciente — Você é um guerreiro e fica nervoso assim por causa de um pouco sangue?

—Sangue humano é diferente de sangue youkai! — Satoshi protestou, arrancando sua lança do fundo do rio e tirando o peixe que tinha na ponta — Um youkai normalmente não vai morrer só porque perdeu uns poucos litros de sangue!

Ryota franziu o cenho.

—Humanos morrem por uma coisinha dessas?

—Mor...!

Satoshi deteve-se quando duas sombras, uma seguida da outra, passaram sobrevoando rapidamente acima de sua cabeça e, sem notá-los ali, Akira e Akihiko jogaram dois vasos de cerâmica no rio e os arrastaram com cordas por alguns metros antes de içá-los de volta para o céu e saírem voando com eles.

—O que está acontecendo? — o tengu estranhou.

—Eles só estão aparando água. — Ryota respondeu pouco interessado, coçando o ouvido com a garra do mindinho.

—Não. — ele franziu o cenho — Tem alguma coisa errada!

E repentinamente expondo as asas o tengu voou ao encalço dos filhos, alcançando-os ainda a tempo de ouvir pequenos trechos de sua conversa:

—Também… quando eu...? — Akihiko perguntava assustado.

—... Lembro… muito pequeno. — dizia Akira.

—... Está sofrendo...!

—Oi! Parem aí os dois! — Satoshi gritou para os filhos — O que está acontecendo?!

Pálidos e com os olhos arregalados, os garotos viraram-se tão abruptamente que Akira derrubou meio litro de água de seu vaso.

—É um ataque?! Um incêndio?! — inquiriu agarrando um braço de cada filho ao alcançá-los, mas então parou, e todo o ar pareceu fugir-lhe do peito — Mayu! — os sacudiu — O que aconteceu com Mayu?

—O bebê está nascendo e nos mandaram buscar água!

Akihiko contou assustado, recebendo um chute do irmão por isso.

—Idiota! Papai não devia saber!

Satoshi os deixou ali. Não devia saber? O que Mayu estava pensando?! Ela estava em trabalho de parto naquele exato instante e pretendia esconder isso dele?

Assim que o avistaram, os onis que estavam de sentinela na entrada da caverna colocaram-se em posição de sentido, erguendo ameaçadoramente seus imensos kanabôs, com certeza a deusazinha oni lhes havia ordenado que o detivessem caso aparecesse, embora eles obviamente não vissem diferença em apenas deter ou esmagar o crânio de alguém.

Mas Satoshi era capaz de ouvir agora a voz de Mayu gritando de dor, e nada o deteria...! Mas o choro de um bebê recém-nascido substituindo os gritos de sua esposa o deteve.

E Satoshi parou no ar, estendendo suas longas asas negras, pasmo por um segundo, antes de repentinamente voltar a investir contra os onis que, dessa vez, afastaram-se para o lado permitindo-lhe a passagem sem maiores problemas e o tengu adentrou os aposentos da deusazinha com tamanha pressa que inclusive esqueceu-se de guarda as asas novamente.

—É um menino. — disse-lhe a velha e amarga curandeira que realizara o parto ao vê-lo entrar enquanto ainda lavava as mãos — E onde estão aqueles moleques com a água que pedi?

Satoshi ignorou-a, Mayu estava deitada ao fundo da caverna, com o bebê ainda chorando deitado sobre o peito, enquanto Tennyo Hikari, sentada ao seu lado, inclinava-se curiosamente sobre ambos.

—Essas coisinhas nas costas dele são as asas? Mas por que não tem penas? — quis saber com os olhos arregalados.

Mayu estendeu a mão ao marido, e com voz cansada disse:

—O que você acha de o chamarmos de Akio?


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Notas finais do capítulo

A família de Mayu e Satoshi está crescendo! ♥

Curiosidades do Japão:

A divisão de nível escolar no Japão!
No Japão a divisão de nível escolar é dividida em seis anos de “shogakkou”, adaptado geralmente como primário, e três anos de “chuugakkou”, adaptado para ginásio, e respectivamente equivalentes ao nosso Ensino Fundamental I e II, e três anos de “koukou”, adaptado para colegial e equivalente ao nosso Ensino Médio.

A primeira deusa a morrer.
Quando Satoshi menciona que até deusas podem padecer no parto, ele se refere a Morte de Izanami, a deusa Izanami, morreu ao dar a luz ao seu filho Kagutsuchi, o deus do fogo, que queimou sua mãe de dentro para fora durante o parto, e seu pai, Izanagi, ficou tão furioso com isso que decapitou Kagutsuchi.

Lua neve e flor.
Famosa composição de pinturas japonesas atribuída ao pintor e poeta Sakai Hoitsu (1761 – 1828), formada com os três quadros justapostos, demonstrando em um deles um pinheiro coberto de neve, no segundo a lua cheia e no terceiro um galho florido, a neve, a lua e a flor são temas que representam de modo simples e resumido a sensibilidade japonesa sobre as estações do ano.

Bestiário:

Gashadokuro: Descrito como um ser resultante da união dos ossos das pessoas que morreram de fome, em estado de abandono, ou não foram sepultadas, se reerguendo na forma de um esqueleto gigantesco. O gashadokuro seria um ser nômade irracional, que se alimenta de carne humana. 



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