Olhos Cor de Púrpura escrita por Luh


Capítulo 3
Capítulo 3 - Bia




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Acordei cedo na manhã seguinte, minha cabeça ainda doía um pouco, ressaca, e era que nem tinha bebido tanto na noite anterior. Carlos ainda dormia, ele só entrava no trabalho as dez horas.

Me levantei e fui até o banheiro me arrumar para mais um dia de trabalho. Eu trabalhava em uma empresa de censura, era responsável por ler todos os artigos que seriam publicados na internet e jornais e excluía qualquer coisa que relacionassem a manifestações ou direitos iguais para todos.

A internet era monitorada e o computador filtrava qualquer ato que fosse errado perante os olhos da coruja. as redes sociais já não eram assim tão interessantes quando não se tinha mais o privilegio que compartilhar o que quisesse.

A internet agora era dividida por usuários, desde o mais básico até o sênior, cada pessoa que comprava um pacote de internet usava um dos usuários que era disponibilizado de acordo os seus privilégios sociais. Pessoas comuns usavam usuário básico e só tinha acesso a informações da capital e pesquisas de livros e outras, já o usuário sênior tinha acesso a tudo e só era liberado para governadores, já que eles tratavam de negociações entre capitais e países do mundo.

Meu trabalho me dava acesso a um usuário master, não podia ver o que acontecia nos outros países, mas sabia por exemplo o que se passava em Minas, Rio de Janeiro etc., as cidades brasileiras já não era mais como antes, cada cidade tinha suas próprias doutrinas e regras, mas todos seguiam a mesma religião da Coruja.

Trabalhava em um prédio na avenida paulista junto com uma equipe de doze pessoas. Além de censurar noticias e exclui publicações de ódio contra o governo, também sinalizávamos para um outro setor as pessoas que publicavam esses discursos em suas redes sociais.

Alguns hackers conseguiram burlar as leis do governo e mantinham conversas secretas entre eles, outras pessoas aprenderam a conversar por códigos, sinalizando o que sentia, mas somente pessoas que conhecia aqueles diálogos podia captar a mensagem.

Quando terminei de me arrumar, coloquei as lentes de contato e sai de casa. Sempre tive o cuidado de não deixar Carlos me vê sem elas. Meus pais sempre esconderam quem sou, ninguém na família sabia ao meu respeito e eu tinha que fingir o tempo todo ser a filha perfeita. Passei tanto tempo me escondendo que se tornou algo comum para mim.

Entrei no meu setor de trabalho e me dirigi até minha mesa, era um espaço aberto e cheio de computadores portáteis. Não existiam divisões no setor e todos viam o que o outro fazia, era o uma espécie de garantia que nada passaria batido. Meu parceiro de trabalho era o Daniel, um grande babaca.

Liguei meu computador e comecei a receber os filtros de notícias, publicações, fotos e qualquer coisa que denegrisse a imagem dos Corujas.

— Bom dia Dani, tudo bom? — disse para meu colega de trabalho.

— Para mim está ótimo, já eliminei treze ameaças. — disse ele confiante.

Era assim que eles tratavam as manifestações, como ameaças. Como se lutar pelo direito de igualdade entre pessoas fosse uma espécie de ofensa ao poder religioso implantado na cidade.

— Você viu essa notícia. — disse ele me mostrando uma publicação em um blogue, era a maior ferramenta de comunicação, desde que baniram o YouTube do país. — Jovem homossexual é violentado sexualmente por três homens no interior de São Paulo. — Ele gargalhou com a notícia.

— O que tem de engraçado com isso? — questionei, tentando me controlar.

— Cara, nenhum homem hétero iria transar com outro cara, claramente é uma notícia fake e sempre produzida pelo menos autor misterioso. Ele devia ser preso por publicar notícias falsas.

A notícia em si era verdadeira e um homem hétero estupraria sim um homossexual, não por prazer ou interesse, mas para mostrar superioridade e diminuir ainda mais a imagem do garoto abusado. E o autor misterioso, eu o conhecia muito bem, mas não mantinha mais contato já tinha alguns anos.

— Mais uma noticia do babaca misterioso. Garotos apanham na rua ao saírem de mãos dada para ir no mercado. — gargalhou novamente. — Que século nos vive? Isso não acontece.

As pessoas estavam cegas, não via mais o que fazia e o governo ocultava qualquer vestígio de violência contra mulher e contra homossexuais. A verdade é que elas não ligavam para o que acontecia com outras pessoas que não faziam parte do círculo comum, elas não se interessavam se um gay era morto ou coisa semelhante. As únicas manchetes publicadas com apoio das Corujas, eram crimes cometidos por gays e lésbicas, essas viralizavam.

As manchetes não eram mais “homem mata lojista em assalto”, se tornavam “homem gay mata lojista em assalto” tudo que pudessem enfatizar o fato de a pessoa ser ou não gay para eles era importante. Pessoas como nos vivia a margem da sociedade, sobrevivendo com as sobras. As empresas não contratavam gays e as que os aceitavam corriam o risco de fecharem as portas, pois outras empresas não queriam fechar contratos com elas. Outra questão era que nem todos tinham dinheiro para comprar lentes especiais e passar pelas entrevistas ridículas no RH. Onde somos obrigados a fazer um escâner de íris e nos declaramos héteros. As coisas se complicavam também para mulheres, elas por lei são obrigadas a estarem casadas com um homem, se quiserem trabalhar e ter independência financeira, eles acreditam que uma mulher solteira que não se casa, pode estar sofrendo de homossexualismo, como se isso fosse uma doença contagiosa e transmitisse pelo ar.

A sociedade estava de ponta cabeça e o motivo para eu trabalhar ali é para não me esquecer disso. Diariamente sou obrigada a excluir notícias de violências contra gays, lésbicas e mulheres; vendo isso eu sei que não posso me conformar com minha vida perfeita, mas ao mesmo tempo tenho medo de ser pega e tudo isso acabar.

Outro privilegio de trabalhar naquele lugar é fato de receber notícias da resistência e de pessoas que conheci na infância. Faço parte de um grupo que ajuda crianças e adolescente homossexuais e alguns outros trabalhos ilegais.

Peguei uma notícia que dizia: “como os animais noturnos estão sofrendo com o problema de falta de habitat nas grandes cidades. Precisamos conversar sobre corujas e seus filhotes...”  A notícia inteira era uma forma de convite, o filtro puxou a informação por causa do nome coruja, mas a pessoa que enviou sabia que chegaria até a mim, a parte útil da notícia era, “precisamos conversar”.

No final do texto tinha números aleatórios sobre quantidade de pássaros e época de acasalamento, mas todos aqueles números eram informações escondidas, como data e hora do encontro. Fazia meses que não participava de um encontro da resistência, mas estava decida e voltar a frequentar.

O líder da resistência era André, ele estava a frente das manifestações e mantinha o blogue arco-íris de sangue ativo, para não deixar passar em branco todas as barbaridades que a cidade estava ignorando. As pessoas só precisavam de uma fagulha para começar uma guerra civil, a única coisa que os mantinham quietos era o atual governo, que mesmo discriminando todos os homossexuais, ainda mantinham a lei de proteção a vida, mas somente quando ele queria usa-la, a maioria das vezes ele apenas ignorava.

Em um de seus discursos ele dizia “precisamos dos homossexuais, pois sem eles quem faria o trabalho sujo”, ele e as pessoas que o apoiavam realmente acreditavam no discurso que éramos inferiores, peças quebradas e por conta disso tínhamos que fazer o trabalho que ninguém faria. A maioria de nós trabalhava nas ruas, pois era a única maneira que tinham para sobreviver.

O governo não era ruim somente para nós, mas também para todos que eram contra as leis ridículas. Outras religiões mantinham seus cultos em locais secretos, longe dos olhares da coruja, mas a grande questão era que eles podiam simplesmente sumir no meio da multidão, mas para nós era visível em nossos olhos, não dava para simplesmente mudar ou fingir ser quem não somos.

André dizia que precisávamos nos unir e ficar por dentro de tudo que tivesse acontecendo, ele acreditava que uma hora tudo iria ruir e quando esse dia chegasse, eles precisariam estar prontos para contra-atacar. Ideia essa que eu nunca concordei. O marketing feito em cima de nós se baseia em violência, pobreza e medo. Um ataque só iria fazer o povo apoiar ainda mais o governo, precisávamos de uma estratégia diferente e vencer o ódio com amor.

Por volta do horário do almoço havia recebido uma mensagem de marina, dizendo que o filme tinha sido bem legal e que deveríamos marcar outra sessão com nossos maridos. Respondi que estaria disponível e que Carlos também iria. Ela respondeu que iria passar o endereço de onde poderíamos nos reunir em casais.

Eu nunca pensei que ela fosse realmente me mandar mensagem depois de ver minha aliança, mas de acordo com o texto ela estava ciente que eu tinha um álibi e que isso facilitaria um encontro, afinal eu era casada e dessa forma não poderia ser lésbica.


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Notas finais do capítulo

Gostaria de saber o que vocês estão achando da história e se puderem deixar um comentário eu agradeceria.



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