Olhos Cor de Púrpura escrita por Luh


Capítulo 4
Capítulo 4 - Adrian




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Acordei com o barulho das crianças rindo e gritando entre elas, estavam brincando de pega-pega. Abri os olhos lentamente e aos poucos me acostumei com a luz natural que vinha da janela aberta. Era um sábado de sol e eu tinha acordado muito tarde.

Me levantei preguiçosamente, arrumei a minha cama e fiquei observando as outros beliches, tinha um total de oito. Ao todo dormia quatorze meninos ali, de cinco a dezessete anos. O mais velho do dormitório era André e Diego, eles que que ajudava cuidar de nós quando os tios e tias não estavam presentes e colocavam ordem no pedaço quando os meninos passavam dos limites.

O orfanato ficava em um prédio antigo do interior de São Paulo, antes era um casarão que havia sido fechado depois de um incêndio acidental. A casa tinha dois andares, na parte de cima ficavam os quartos e na parte de baixo a sala, a sala de jantar e a cozinha. Tinha uma grande área externa o que facilitava a criação de tantas crianças.  Lucas Rodrigues era o fundador do abrigo, ele era um senhor muito gentil que usou o dinheiro da aposentadoria para restaurar o prédio e criar o primeiro abrigo olhos cor de purpura. Durante muitos anos ele sustentou o lugar sozinho e com muito apelo social ele conseguiu incentivos de um grupo anônimo chamado Pombas, onde qualquer pessoa podia ajudar e sem precisar se identificar. Três anos depois da fundação do abrigo ele faleceu, mas mesmo eu não o conhecendo sei que morreu feliz.

Além do fundo de caridade os ex-moradores da casa ajudava financeiramente quando conseguia se virar sozinhos.

Me aproximei da grande janela e fiquei observando as outras crianças correndo no campo em frente ao casarão, estava distraído quando senti duas mãos tamparem meus olhos, segurei as mãos dele.

— Advinha quem é? — disse.

— Não seja idiota! — era André que estava fazendo graça, ele pegou um espaço na janela e ficou olhando para fora, como eu estava fazendo. — Por que não me acordou hoje?

— Você estava tão bonitinho dormindo, não quis estragar seus sonhos. — disse ele, sempre preocupado comigo, de todas as pessoas dali ele sempre me tratava de um jeito especial e por isso gostava muito dele, além da amizade, mas isso era um segredo meu.

— Sobrou alguma tarefa para hoje? — perguntei.

— Nenhuma, todas as tarefas de casa estão feitas, mas você pode me ajudar organizar a sala de arquivo, tem muitas tralhas lá que foram se acumulando com o tempo. — disse.

— As tias dizem que não precisamos fazer isso, não é importante.

— Quer me ajudar ou não? — disse ele me encarando. De todas as pessoas que já tinha visto a cor purpura dos olhos dele eram tão vivas e nítidas que me fazia se perder. André era muito bonito, e não digo isso por gostar dele, mas ele realmente era. Alto, ombros largos, sorriso cativante. Talvez se ele tivesse nascido em outra época, sem a mutação ocular, poderia ter sido modelo ou ator de novelas, coisas essas já extintas.

— Tudo bem. — dei de ombros e segui ele.

O segui até a sala que ficava no final do corredor, passamos pelos outros quartos e todos tinha pessoas conversando e rindo, parecia muito mais que um abrigo

Ele pegou uma chave do bolso e olhou envolta para ver se ninguém estava olhando e abriu a porta rapidamente, me puxou para dentro e fechou a porta. A sala estava muito escura e não conseguia enxergar um palmo a minha frente, ele acendeu a luz e pude ver a sala de arquivos. Estando ali eu pude ver que não era como havia imaginado. Havia umas dez prateleiras e uma infinidade de caixas sobre elas, a luz era fraca, mas dava para ver que os arquivos estavam em ordem alfabética. Havia também várias caixas no chão e moveis quebrados que foram colocados ali em cima para não ocupar espaço na casa.

Nunca precisei entrar ali e pensando melhor, nem me lembrava da existência daquele cômodo, era um daqueles lugares que você passa várias vezes por dia e depois de um tempo você nem nota mais que aquele lugar existe.

André me encarava com um sorriso malicioso no rosto, pensei que ele tivesse planejando alguma coisa entre nós, senti um frio na barriga ao imaginar coisas que não devia, a culpa era dos hormônios bagunçando meu corpo.

Ele se virou para os arquivos e começou a procurar nas caixas alguma coisa que ele ainda não queria me contar e decidi que era melhor esperar até que ele tivesse pronto para isso.

Enquanto ele procurava nos arquivos alguma coisa, me lembrei da primeira vez olhei para André de um jeito diferente. Eu tinha oito anos e ele tinha onze.

Eu estava brincando na grama com meus carrinhos, a tia Jane estendia roupas no varal e o vento soprava forte naquele momento. Sinal que choveria mais tarde, mas Jane dizia que tinha que aproveitar os momentos bons, pois eles eram curtos. Eu já ouvia piadinhas na escola, porque eu não me misturava com os outros meninos, preferia conversar com as garotas, elas eram muito mais inteligentes e tinha assuntos mais legais para discutir.

Naquela mesma época eu estava muito chateado por ouvir piadas dos meninos da escola e lembro que chorava muito por isso e naquele dia perguntei para Jane qual era o meu problema.

— Jane, por que os meninos da escola zombam de mim? — perguntei.

— O que você tem feito? — perguntou ela.

— Nada, eu gosto de ficar conversando com minhas amigas no intervalo e eles dizem que sou estranho.

— Não liga para eles Dri, eles têm mentes pequena iguais seus pintos — ela gargalhou.

— Jane, porque seus olhos são castanhos.

— Eu não entendo muito bem isso, mas significa que amo pessoas do sexo oposto. — disse ela.

 — Como assim? O que isso significa?

— Voce está vendo as outras crianças? — disse ela.

— Estou.

— Se você pudesse escolher uma delas para se casar e viver feliz para sempre, qual escolheria? — perguntou ela.

Eu lembro que olhei para cada menina que brincava ali e não senti nada por nenhuma delas, comecei então a olhar para os meninos e senti um arrepiou em meu estomago e quando olhei André correndo sem camisa pela grama, senti algo que novo dentro de mim, um calor no coração e foi naquele , momento que tive certeza de que o amava.

— O André é muito bonito. — disse.

— Ele é um rapaz bonito sim, é dele que você gosta?

— Acho que sim, isso significa que sou gay? — perguntei.

— Não dri, significa que você está apaixonado. — ela sorriu, mas o semblante dela se desfaleceu. — Os olhos são o espelho da alma e diferentemente do passado, hoje vocês refletem quem são através dos olhos.

— Eu gosto de ser diferente. — disse.

— Isso é importante, mas temo pela sua vida Dri e todas as outras crianças. — ela não apareceu mais no abrigo depois daquele dia e era muito novo para entender o que tinha acontecido, mas sei que os parentes dela não queriam mais que ela andasse conosco.

André ainda estava concentrado na caixa de arquivos e fingi limpa o pó das caixas, mas na verdade estava olhando para ele. Ele já não era um menino magrelo e briguento, estava virando um homem, a barba falhada começava crescer em mais pontos do seu maxilar e seu corpo tinha mudado, suas mãos estavam maiores e havia aparecido mais pelos pelo seu corpo. Olhava para ele com atenção, observando cada movimento que fazia e sentia meu corpo arder em chamas ao olhar o volume em sua calça. Já tínhamos tomado banhos juntos, mas não o via com interesse sexual, aquele sentimento tinha surgido recentemente em mim e as vezes não tinha controle.

Em breve ele faria dezoito anos e provavelmente fosse embora do orfanato e talvez eu nunca conseguisse dizer o que sentia por ele. Queria saber o que se passava em sua mente e entender o que ele sentia por mim, era nítido que ele se preocupava muito comigo e me ajudava em tudo que eu precisasse, mas ele nunca se aproveitou disso, nunca tentou nada diferente em nenhum momento me fez ficar constrangido em sua presença.

— André posso te falar uma coisa? — disse de repente, sentindo meu coração parar, só tinha eu e ele, era uma oportunidade única.

— Calma, tenho certeza que está aqui. — disse ele com desdém.

— O que você está procurando? — perguntei;

— Achei! — disse ele feliz e rapidamente se sentindo triste. — Tome.

— O que é isso? — perguntei.

— Sua origem, sua mãe não morreram no parto e talvez eles estejam vivos. — disse ele por fim.

O nome Adriana Reis estava escrito no registro, senti minhas mãos tremerem ao ler aquilo, parecia que estava revivendo uma lembrança que nem sabia que tinha, nunca tinha ouvido falar daquele nome, mas ao ver sabia que pertencia a minha mãe.

 Havia no documento todos os detalhes de todo processo da gravidez, desde o primeiro pré-natal até o dia da entrada no hospital. Eu tinha nascido com 3.000 mil gramas o que era um peso muito bom para um bebê nascido de forma normal. Tudo estava em perfeito estado e abaixo do documento tinha a assinatura do médico que tinha feito o parto e da enfermeira que havia cuidado de mim nos primeiros momentos de vida.

Virando as folhas havia um questionário de avalição médica sobre os procedimentos feito e tudo mais e a caneta tinha um pequeno texto escrito: “mãe se recusa amamentar o filho e prefere que o bebê venha a óbito ao ter que criar uma aberração.”

Naquele momento eu comecei chorar sobre a ficha, não entendia o porque me sentia tão triste ao ler aquilo, sabia que havia sido abandonado pelos meus pais, mas no fundo eu queria acreditar que eles realmente tinham morrido e por conta disso eu tinha sido largado no orfanato, mas lendo aquele relatório medico minhas esperanças tinha sido engolidas. Senti minha garganta apertar e a raiva crescer dentro de mim, quando tentei rasgar o prontuário médico, André foi mais rápido e tomou de minha mão. Ele me puxou e me envolveu em seus braços.

— Calma, vai ficar tudo bem. — ele disse suavemente, enquanto acariciava minhas costas.

Naquela sala húmida e cheia de pó, apenas eu e André abraçados, eu soluçava de chorar por um sentimento de abandono que guardava em meu peito, mas que agora estava desmoronando.

Quando consegui me acalmar eu o olhei nos olhos e tentei entender o porquê ele me mostrar aquilo assim tão de repente, será que era para me ver triste? Era uma brincadeira de mal gosto? Ele percebeu que eu tinha ficado com raiva de repente e se adiantou.

— Tem o endereço dela aqui no prontuário. — Ele apontou na ficha, onde tinha dos dados cadastrais do convenio.  — Talvez eles ainda morem lá e você possa conhecê-los pessoalmente e talvez perguntar o porquê fizeram isso.

— Por que eu faria isso? Eles são as aberrações e não eu, eu não tenho culpa de ter nascido assim. — gritei.

— Quando nos éramos pequenos, você me disse que queria saber como seus pais eram e achei que estava pronto para realizar esse desejo. — disse ele meio desapontado e mais uma vez pude ver o modo como ele se importava comigo. — Pode ser que não esteja mais aqui nos próximos meses e por isso decidi te contar agora, que ainda tenho tempo para te ajudar.

— Preciso pensar. — disse olhando para a ficha médica, para o nome da minha mãe, Adriana Reis, a enfermeira ainda teve a gentileza de me batizar como o nome Adrian, já que ela não teve coragem de me nomear.

— Tudo bem, quando tiver pronto nós vamos até a casa deles para você ver como eles são.

— E você? Não quer conhecer seus pais?

— Eu não tenho nada deles para procurar, a única coisa que me deixaram foi meu nome André Duarte, já pesquisei e tem milhões de pessoas com esse sobrenome.

— Sinto muito.

— Não se preocupe comigo, eu estou bem. — Ele abriu a porta do arquivo e saiu e quando eu sai atrás dele ele a fechou. — Quer ir brincar com as crianças lá fora?

— Acho que vou ficar um tempo sozinho, preciso pensar.

— Tudo bem e desculpa se te deixei zangado.

— Não mesmo, você me deu algo a mais para pensar e agradeço por cuidar de mim todo esse tempo, não quero pensar que você irá embora.

— Sempre vou cuidar de você Dri. — Ele se virou e desceu as escadas depressa, me deixando ali sozinho com milhões de sentimentos, tristeza, raiva, amor, ódio, amizade, excitação e um sentimento de medo.

Pensei na história da Bia e como os pais dela a negava em vida, talvez se eu tivesse sido criado pelos meus pais, poderia ter sido a negar quem sou para ser aceito socialmente.


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