Olhos Cor de Púrpura escrita por Luh


Capítulo 2
Capítulo 2 - Adrian




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/776592/chapter/2

Primeiro dia de aula era sempre uma tristeza para qualquer estudante como eu, não pelo falto de ser transferido para um colégio novo, mas sim por ter que dar explicações por ter sido transferido.

Fiquei um tempo olhando a escola de longe, criando coragem para entrar nela. Nosso senhor do Bonfim, um prédio grande e rústico, pintado de marrom e branco. Antes tinha sido um convento de freiras, mas foi fechado pelas novas regras religiosas estabelecidas a alguns anos. Ninguém comenta sobre isso, mas sei que faz muito tempo.

Deixei meu cabelo crescer até a altura do meio do pescoço e deixava a franja tampando metade do meu rosto, era um grande alívio ter cabelo comprido, isso me ajudava a me misturar no meio dos outros sem chamar atenção para os meus olhos. O único problema era ser confundido com uma menina quando estou de costas.

Subi os degraus e entrei na escola de cabeça baixa, torcendo para que ninguém me notasse. Os corredores eram largos e compridos, o que facilitava o tráfego de alunos entrando e saindo.

Usava o uniforme obrigatório, uma camisa cinza e um caça azul com listras, mais parecia um pijama do que um uniforme. Por debaixo da franja, olhava rapidamente para os outros alunos, tentando identificar alguém que pudesse ser amigável.

Localizei a minha sala, ficava no segundo andar sétima série, turma A. entrei na sala e sentei na primeira fileira, de frente para um armário de livros, longe dos holofotes.

Os outros alunos ainda não tinham chegado, o que me dava alívio, pois não queria que me vissem entrando. Peguei meu caderno e minhas canetas e deixei em cima da carteira.

Meu telefone vibrou e rapidamente o tirei do bolso da calça, era uma mensagem de André, ele queria saber se já tinha chegado na escola. Respondi que sim e voltei a guardar o celular ao ver que o professor tinha acabado de entrar na sala. André era três anos mais velho que eu, tinha dezessete e estava estudando em uma escola integral para rapazes.

Aos poucos os alunos foram entrando na sala de aula e fiquei ansioso por não conhecer ninguém ali.

O professor escreveu o seu nome na lousa e o nome da matéria que daria. Mauro, aula de matemática.

— Bom dia Classe. — disse ele com um ar de cansado, como se odiasse o seu trabalho.

Os alunos responderam e o professor começou a passar a matéria na lousa, antes que eu começasse a escrever no meu caderno senti uma mão puxando minha camisa.

— Oi. — disse uma garota atrás de mim.

— Olá. — disse.

— Como se chama? — ela perguntou.

— Adrian. — disse. — E você?

— As duas garotas gostariam de conversar lá fora? — disse o professor olhando na minha direção, senti meu rosto queimar. Não queria aquele tipo de atenção.

— Desculpe senhor. — respondi rapidamente e comecei a copiar a explicação.

Quando o sinal do intervalo tocou, os outros alunos se apressaram em sair da sala, mas eu permaneci nela. Tinha levado um pedaço de pão para comer ali mesmo. Quando coloquei a mão na mochila, senti alguém me tocando. Era a mesma menina de antes.

— Você não vai para o intervalo?

— Não, eu comerei aqui mesmo. — disse me abaixando para abrir o zíper da bolsa.

— Você é menino ou menina? — perguntou ela.

— Menino. — respondi sem levantar a cabeça.

Ela permanecei parada na minha frente esperando para falar mais alguma coisa ou esperando que eu puxasse assunto, mas não queria passar por aquilo de novo.

Peguei meu pão com frios e coloquei na carteira e tirei uma garrafa de suco, a garota permanecia ali me encarando, como se eu fosse um filme a ser assistido, quando outro estudante apareceu, dessa vez era um menino.

— Quem é sua amiga nova Pâmela? — perguntou o garoto com desprezo.

— Ele é um garoto, tenha modos. — socou o menino de leve.

— Parece garota com esse cabelo comprido. — sorriu o menino passando a mão no cabelo. Senti meu sangue ferver, mas não podia chamar atenção, era necessário que fosse invisível, não queria encrenca.

— Vamos para o intervalo, ele não quer se enturmar com a gente. — falou a garota saindo de perto, mas o menino permaneceu.

— Qual é seu problema em? ela só queria ser legal com você. — disse ele, dando um peteleco na minha cabeça. — Será que você pode olhar para mim quando eu tiver falando?

— Por favor, me deixa em paz. Só quero comer meu lanche aqui na sala. — respondi com toda paciência que reuni em alguns segundos, mas o menino queria provar alguma coisa para ele mesmo.

O garoto pegou minha garrafa de suco e saiu de perto de mim, fazendo gesto para que eu fosse pegar. Rapidamente fiquei de pé e encarei ele nos olhos. Foi então que ele mudou seu semblante, de confiança para espanto. Por instinto ele soltou a garrafa no chão e limpou as mãos na calça, como se minha garrafa tivesse contaminada ou algo do tipo, eu conhecia aquele olhar, mas não compreendia como minha presença pudesse causar tanto desconforto a ele.

Sem falar nada, ele apenas saiu da sala em silencio e sumiu de vista no meio da multidão de crianças. Recolhi minha garrafa do chão e voltei a me sentar na minha carteira.

Tinha certeza que aquele seria um longo ano de aula e esperava que pudesse ser sem nenhuma complicação.

Quando o segundo tempo começou e o professor voltou para sala de aula, percebi que a menina que tinha sentado atrás de mim não estava mais lá, tinha mudado de carteira. Era possível que o garoto tivesse comentado com ela sobre mim.

Quando as aulas acabaram e o sinal novamente tocou, recolhi minhas coisas e sai da sala de aula de cabeça baixa, tentando esconder minha condição o máximo que pudesse. André sempre me dizia para que eu tomasse cuidado e nunca arrumasse encrenca com ninguém, “seja um bom garoto e fique longe de encrenca, as pessoas espera que façamos algo ruim para nos discriminar. “dizia ele, no entanto eu não conseguia entender porque tanto medo e ódio, porque eu tinha de andar de cabeça abaixada? enquanto eles podiam andar livremente pelos corredores como se fossem superiores, esse mundo deve estar quebrado se acha que devo ser tratado diferente só porque não penso como os “iguais”.

Quando estava terminando de descer as escadas para ir até o ponto de ônibus do outro lado da rua, percebi que tinha alguém me apontando. A única coisa que deu para ouvir foi as palavras “foi ele”, o que tinha sido eu? Continuei seguindo em frente, mas um homem alto me parou.

— Você é o veadinho que tá na sala do meu filho? — gritou ele na frente da escola, não tinha medo de ser ouvido.

Permaneci de cabeça baixa e tentei continuar andando, mas ele segurou braço e jogou no chão, estava vermelho de raiva e a saliva sai pela boca. Coloquei minhas mãos contra o peito caso ele me chutasse e não reagi, não queria mostrar agressividade.

— Fique longe do meu filho, sua aberração. — cuspiu no chão e saiu pisando fundo, como se minha existência ali fosse um insulto a sua masculinidade. Uma garota que passava por mim estendeu a mão e me ajudou a se levantar.

— Obrigado. — disse. Tentei parecer calmo, fui ensinado a me conter ou podia sofrer coisas piores.

— Aquele homem é ridículo.  — disse ela.

Fiquei em silencio olhando para ela, era estranho uma pessoa comum prestar ajuda a pessoas como eu, mas agradeci e me virei para ir embora.

— Espera, quer que eu espere seus pais chegar com você? — disse ela rapidamente.

— Eu não tenho... quer dizer eu não moro com eles, vou te ônibus para casa. — disse.

— Tudo bem, eu espero com você. — Ela sorriu e caminhou do meu lado até o ponto de ônibus. Não conseguia entende-la, por que ela estava sendo legal comigo? Desde criança eu aprendi a nunca esperar nada das pessoas, elas foram ensinadas a nos odiar, discriminar e esse ciclo de raiva vem se repetindo a anos e ninguém faz nada para impedi-lo.

No ponto de ônibus só tinha nos dois, as outras crianças ou moravam perto da escola, ou tinha seus pais para busca-las, eu como não tinha nenhuma dessas opções pegava o ônibus para o orfanato que vivia.

Fiquei em silencio esperando o ônibus passar, enquanto não vinha fiquei olhando para a garota, tinha pele morena, cabelos alisados, e expressava ansiedade, como se quisesse dizer algo, suas mãos estavam fechadas em punho e o suor começava pingar de sua testa.

— Está tudo bem? —  perguntei.

— Não. — Ela respirou fundo e abaixou a cabeça no colo e começou a chorar. Me levantei do banco e fiquei de joelhos de frente para ela, tentando ajuda-la com o que tivesse passando.

— Pode falar comigo, eu prometo que não vou julgar. — disse

Ela se acalmou um pouco, limpou as lagrimas do rosto e se abanou com as palmas da mão. Respirou mundo mais uma vez e disse:

— Eu sou lésbica. — Ela pareceu tão aliviada ao dizer aquilo, como se estivesse carregando uma pedra o tempo todo no peito e de repente soltasse ela no chão. Ela sorriu e voltou a dizer. — Eu sou lésbica.

— Eu não sei o que dizer. — Ela não tinha os olhos cor purpura como eu.

— Eu nunca contei isso para ninguém e eu só queria falar isso em voz alta uma única vez. — Ela já parecia bem mais calma e começou sorrir.

— Mas seus olhos não são... — ela me interrompeu.

— Eu sei, meus pais compraram para mim essas lentes especiais para esconder quem sou e fingir ser uma menina comum. — Ela vagarosamente tirou algo gelatinoso de um dos olhos, revelando a brilhante cor purpura que tinha nele.

— E qual diferença dessa para uma comum? — pergunte.

— Ela foi projetada para mim, todos os traços do meu olho verdadeiro estão nelas, assim se eu passar por um escâner de retina, eles não vão suspeitar de nada. — disse, recolocando a lente. — Se você viajar para fora de São Paulo, eles checaram seus olhos.

Eu nunca tinha saído da capital, não tinha dinheiro e muito menos pais para me sustentar, vivia em um orfanato para crianças como eu, que muitas foram abandonadas assim que nasceram. Tia sara dizia que minha mãe havia falecido no parto, mas eu sabia que era mentira.

— Isso é bom para você, não precisa se esconder ou temer sofrer ofensas, você pode ter uma vida normal. — tentei não ser grosso com ela, ela tinha sorte.

— Normal? Eu sei que não é fácil estar à vista das pessoas, mas fingir ser outra pessoa não tem nada de normal, dói muito ter que entrar na minha casa e ver meus pais me tratarem como se eu tivesse quebrada. Eu nem posso levar amigas lá, eles acham que eu vou transar com elas ou algo do tipo. Meu pai acha que quando eu crescer eu irei virar uma mulher de verdade, só estou passando por uma fase.

— Sinto muito por isso, acho que nenhum de nós tem uma vida fácil então. — disse por fim.

— Desculpa também, é que eu estava sufocada com tudo isso e nunca tive ninguém para contar.

— Você não conhece outros aqui? — perguntei.

— Vejo alguns nos corredores, mas você é a primeira pessoa que converso sobre isso, obrigada por me ouvir.

— Bem-vinda então ao nosso mundo, não garanto que sua vida será fácil, mas será divertido descobrir. — Ela sorriu e pude ver a alegria no rosto dela, queria que todos pudessem sorrir assim, livres de culpa, livres de preconceito, apenas pessoas rindo sobre algo bobo.

— Olha seu ônibus está vindo. — disse ela apontando para rua. — Alias eu não perguntei seu nome.

— Me chamo Adrian e você?

— Beatriz, mas pode me chamar de Bia.

— Prazer em te conhecer. — Ela me abraçou e agradeceu por eu ter a ouvido.

Pais... eles não deveriam amar incondicionalmente seus filhos? Proteger e dar amor? Porque eles tinham tanta vergonha de ter uma filha saudável, bonita e cheia de energia? Deveríamos ter apoio das pessoas que nos colocaram do mundo, nos sentirmos seguros perto deles, mas isso era um privilégio que nós não tínhamos.

Entrei no ônibus de cabeça baixa para não atrair atenção dos outros passageiros e me sentei na janela., era uma viagem de mais ou menos uma hora até o orfanato.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Olhos Cor de Púrpura" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.