Premonição: Congelados escrita por VictChell


Capítulo 7
Adivinhação


Notas iniciais do capítulo

☠ - Bom, aqui está. Esse foi um capítulo que eu gostei muito de escrever. Espero que curtam =D



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Maybe your right is broken up but I believe in repair

Piece it back together or leave it there

At other time, in another life

 

Ao contrário do que inicialmente eles presumiram, Mac se mostrou cordialmente receptivo à história que Jake contava. Começou com a visão que teve na pista Howclover, seguindo pela sua expulsão com os amigos. A luz nos olhos castanhos do homem faiscava conforme Jake ia se aprofundando cada vez mais nos acontecimentos que assolaram ele e seus amigos nos últimos tempos, de vez em quando balançando a cabeça para cima e para baixo demonstrando sua atenção, e principalmente, fascínio.

— Agora, a nossa amiga está morta. – Jake faz uma pausa quando Melissa segurou sua mão.

Estão sentados num sofá bege de frente para outro de mesmo modelo, só que com a cor um pouco mais clara, onde Mac estava sentado com o dorso posicionado para frente e cotovelos apoiados aos joelhos.

— Achamos que você poderia saber de alguma coisa para nos ajudar. Qualquer coisa. – Melissa disse cheia de esperanças nos olhos.

— Como me acharam? Quero dizer, por que procuraram a mim? – Mac apontava para o próprio peito nu.

— Através do Harper. – Jake não hesitou em deixar de menciona-lo. – Ele disse que moraram juntos por um tempo.

Mac deu um sorriso otimista, tendo pensamentos reminiscentes evocados da memória.

— Harper? Oh, esse cara. Tem bastante tempo que a gente não se fala. Sim, é verdade, dividimos um apartamento há muito tempo atrás. Quando estávamos começando nossas carreiras. Sabem, né? Dando nossos corre.

Carreiras, a palavra que fez Melissa juntar um mais um. Imediatamente procurou ao redor algum indício que poderia comprovar sua suposição. Algo real, algo sobre o qual ela pudesse caminhar com segurança sem tropeçar em equívocos. Nas paredes, algumas fotos de Mac ilustravam as molduras neutras em preto e branco (assim como as fotos). Muitas delas ele exibia idoneidade, mostrando que aquelas fotografias não foram tiradas por qualquer amador e ele não estava sendo informal, era um trabalho profissional. Lembravam bastante os que ela vira no apartamento de Harper quando esteve lá com Brandie e Jasmine.

— Você é modelo. – Ela apostou e, indubitavelmente, acertou. Ele confirmou com a cabeça logo em seguida com um sorriso de surpresa, imaginando que eles já soubessem disso.

— Como acha que eu e Harper nos conhecemos? – Ele deu uma risada sarcástica.

— Mac, além da nossa amiga, outra pessoa morreu. Uma pessoa que também saiu com a gente da pista de patinação. – Jake fez uma breve pausa antes de continuar. – O Harper estava lá naquela noite.

Nenhum deles falou mais nada. Mac conseguiu entender o que Jake queria dizer de imediato. Apesar de ambos não serem mais próximos, o modelo sentiu-se um pouco aluído com a notícia. Oh, velho amigo. Piscou rapidamente duas vezes e voltou a olhar nos olhos de Jake, sem ter certeza se aquela notícia foi absorvida por completo.

— Tudo bem. – Fala ele calmamente, mantendo-se firme. – Hum... Se ele contou que moramos juntos, deve ter falado que eu tenho interesse na morte. Ela não é tão simples como muita gente pensa, ela trabalha ardilosa e cautelosamente.

— Então estamos certos? – A voz de Melissa sai falhada na primeira vez. Seu tom demonstrava pressa, cedendo à impaciência de preencher as lacunas vazias de uma suposição insuficientemente concebida. Ela pigarreou delicadamente e voltou a dizer. – Isso não é coincidência. Está acontecendo a mesma coisa com os sobreviventes do voo 180.

— Pode ser que sim. – Diz Mac concentrado, tentando construir mentalmente uma linha de raciocínio – Entendam. Vocês deveriam ter morrido naquele acidente da pista de patinação. Não era para vocês terem saído. A sua visão – Ele aponta para Jake. – foi um evento sobrenatural que mudou tudo, a saída de vocês mudou tudo.

— Tá dizendo que devíamos ter morrido lá? – Jake pergunta. – Essa visão pode ter sido uma advertência para salvar a todos. Eu podia ter salvado. Não é isso o que significa?

— Não é. Com ou sem visão, vocês não deveriam estar vivos. Isso altera todo um plano.

— Plano? Que plano? – Melissa, agora, aperta a mão do namorado com força.

— Algo maior que nós, além da nossa compreensão. Nosso tempo de vida é pré-determinado por algo além dessa natureza ou que qualquer ciência poderia explicar. Quando esse tempo acaba, a morte vem buscar o que é dela. Quando tirou seus amigos da pista de patinação, tirou da morte aquilo que é seu por direito. Isso causou, não só na linha de tempo de vocês, mas de todos ao seu redor, uma falha. A morte está corrigindo esse erro, recuperando as almas que perdeu. – Mac observa a expressão de preocupação do casal a sua frente. – Esperem um minuto. – Ele se levanta, contorna o sofá e segue por um corredor no fim da sala de estar. Jake e Melissa ouvem o barulho de uma porta se abrindo e então tudo fica quieto.

— A gente vai ficar bem. – Jake tenta acalmar Melissa beijando sua têmpora direita. Suas palavras não afirmavam real segurança, ainda que ele desejasse isso mais do que tudo naquele momento. Os dois trocam olhares como se estivessem encarando um abismo, profundezas estalaram sem convicção de segurança ou assertividade.

— Preciso ir ao banheiro. – Ela se levanta e faz o mesmo caminho que Mac fizera antes.

No corredor, as fotos dele deixam a parede branca menos sem graça. Ela para pra observar uma que está sobre um aparador em que não há nenhum traço de modelagem, tirando, claro, o modelo nela. Mac está ao lado de Harper, ambos com aparências bem mais joviais. Os amigos sorriem desengonçadamente numa espécie de píer, nenhum deles se preocupando em fazer uma pose seleta ou tentando sair fotogênicos. Algumas pessoas passam por trás, mas são irreconhecíveis sob um efeito embaçador, deixando somente Mac e Harper límpidos ao resto. Logo abaixo, escrito à caneta nanquim preta, os nomes “Harper Laurent Mitchell” e “Cameron Finnigan” delatam os belos rapazes sorridentes da foto.

— Eu o conheci nesse dia. – A atenção de Melissa foi desviada para voz ao seu lado. Era a moça loira que abrira a porta momentos antes. Tinha saído da porta da cozinha, que não ficava muito distante do corredor. – Eu que tirei a foto.

— Ele é o seu namorado?

— Marido. – Ela corrige, levantando o dedo anular para mostrar a sua aliança. – Desculpa, não me apresentei antes. Sou Christie.

— Eu sou Me...

— Melissa. Eu sei. – Disse ela se aproximando. Mantinha a voz baixa e serena, como se estivesse prestes a cantar uma canção de ninar para Melissa sem seu consentimento. Christie tinha uma postura leve e receptível, provavelmente adotada na adolescência, quando estava se encontrando no meio de uma guerra de identidades. Ou foi algo captado de sua mãe. Não importava de onde vinha, contanto que Melissa continuasse sentindo o carisma em sua voz. – Ouvi vocês conversando.

Mac é algum tipo de nome artístico? – Perguntou curiosa.

Christie sorriu da forma terna e olhou a foto na parede.

— Na verdade, é sim.

Quantas vezes Christie pronunciou o nome “Cameron” até que soasse como o refrão de uma música que se ouvia toda tarde na rádio? Nem ela mesma saberia dizer, mas o ponto de partida foi quando conheceu Cameron Finnigan. A afinidade entre os dois “deu mais certo que aquele álbum da Taylor Swift”, como sempre dizia Christie ultimamente. Com pouco mais de intimidade, chama-lo pelo apelido que todos diziam não parecia precipitado. “Cam” era um doce em sua boca e num tom que deixava o namorado excitado. A sugestão de inverter o apelido para se tornar o slogan da campanha do namorado para seu trabalho era, a princípio, uma brincadeira, mas se viu dando uma grande ajuda quando Mac acolheu confiante a sua ideia.

— Estão juntos há quanto tempo? – Melissa quis saber.

— Onze anos. – Christie diz com um sorriso encantador, e tão intenso que o poderia sentir como um abraço. Ou uma lembrança viva.

— Ual! – Disse automaticamente. – Desculpa, é que é muito tempo. – Melissa se espantou, visto que a garota bem à sua frente não aparentava ter mais que vinte e cinco anos.

— Tudo bem. Nunca se case tão jovem. – Sua voz pronuncia as palavras de forma delicada, como uma flor querendo desabrochar... Lentamente. – Ah, me desculpe. Esqueci de oferecer algo para beber. Água, café, chá? – Christie lista as opções.

— Um chá seria ótimo. – Melissa retribui o sorriso dela. – Ah, Christie, onde fica o banheiro?

— Final do corredor, última porta. – Ela aponta.

— Obrigada. – Melissa responde e vê a garota seguir para a sala para fazer a mesma pergunta para Jake, que ao contrário dela, preferiu apenas água.

Caminhando sobre um piso de madeira, ela passa por uma porta entre aberta e espia rapidamente o que tem dentro. Uma janela com cortinas de pano completamente fechadas no final quarto. O ambiente é iluminado somente por um abajur fraco no canto do quarto, com a cúpula torta. Esse cenário sugeriu a Melissa a desconfortável imagem de alguém preso numa masmorra, sendo eternamente um prisioneiro de seus próprios medos. Dois gaveteiros do tipo porta-arquivo de metal cinza encostados à parede, um mural com vários post-its colados e neles palavras escritas à caneta, ao lado um calendário com anotações, marcações e vários “x”. No quadro também haviam alguns diagramas pregados por alfinetes, ligando anotações numa cama de gato. Uma mesa com tampo de vidro faz a bagunça sobre ela parecer organizada, posicionada rente à parede oposta de modo que ninguém poderia chegar por trás da pessoa sentava na cadeira a fim de espreitar sobre seu ombro. No centro do quarto, Mac desliza uma camisa para o corpo e antes que possa vê-la, Melissa demoveu suas intenções no caminho até o fim do corredor.

 

 

— Vocês estão com fome? Deve ter algum congelado na geladeira. – Sierra diz da porta do quarto de hospedes. – Eu acabei com as sobras da noite passada.

— Obrigada, amiga, mas já almoçamos. – Responde Brandie.

Apesar de Sierra não acreditar no que os amigos diziam, ela se pega contaminada pelo clima de temor que ronda entre eles. Ela baixa o olhar para Jasmine que está sentada na cama com as costas encostada à parede e abraçando os joelhos. Tenta sentir algum tipo de pena por ela, mas indescritivelmente tudo o que lhe vem é um sentimento de identificação. Por mais que não queira falar em voz alta ou admitir a alguém, entre as duas existe uma experiência compartilhada que levou a outras duas tragédias. Caiu, então, num buraco de insulamento onde teve vontade de se sentar ao seu lado e abraça-la, sem, necessariamente, dizer nada. No entanto, disse apenas uma frase e deu meia volta.

— Fica a vontade, minha mãe vive recheando a geladeira com sorvete, chocolate e pizzas congeladas.

— Obrigada. – Agradece Jasmine depois de Sierra já ter dado as costas.

Enquanto percorria o caminho de volta ao seu quarto, sentiu-se catastrófica por dentro. Seu coração começou a pesar até ela se debruçar novamente nos livros. Uma ânsia subiu até sua garganta, mas voltou a engoli-la. Não conseguiu impedir que seus pensamentos a levassem até Diana, numa noite em que Sierra e ela tentavam fazer sorvete de vodca no lado de fora de um mercadinho de posto de combustível. As duas sentaram num banco de madeira com dois potes de sorvete e uma garrafa de vodca. Parecia uma boa ideia misturar tudo para ver o que poderia sair dali, até que o resultado não agradou as duas.

Diana esticou a mão sobre a de Sierra e fez um discurso. Um longo e interminável discurso sobre a sua amizade que, na verdade, era um apanhado de ultimatos disfarçados de um conselho. Era um ano em que Sierra se afastou dos amigos e passava grande parte de seu tempo em casa estudando, se dedicando a algo que sabia que não viria tão fácil. Pelo menos, não tão fácil quanto para seus amigos. Depois de intensas semanas nos confins de seu quarto, Diana conseguiu leva-la àquele posto de gasolina e, pelo menos um pouco, ter alguma diversão. Foi uma noite em que Sierra não falou muito e apenas notou isso quando sua amiga alfinetou “ficou tanto tempo dentro de casa que não sabe nem mais conversar?”, “coloca pra fora, cadê as suas piadas que me matam de rir?”. Palavras, piadas, comentários ou longas conversas. A garota não estava conseguindo admiti-las.

Coloca pra fora. Coloca pra fora. Estou assim? Até hoje?

Havia algo do qual ela estava fugindo? Pegou-se imaginando Jasmine como uma besta cheia de tentáculos a puxando para perto e querendo sua companhia enquanto ela corria para longe. Ou seria ela a besta? Ou não haveria besta alguma? Se a besta estivesse somente em sua cabeça ou trepada em seu ombro, sussurrando no pé de seu ouvido para correr e se esconder. “Não lide com isso” era seu lema, tantas vezes repetido que ela passou a acreditar.

 

 

— Aqui. – Mac estrega uma pasta preta à Jake.

Ele movimenta um elástico e abre. Alguns recortes de jornais, fotos impressas de páginas da web, papéis com textos em itálico e pedaços amassados de revistas estavam ali acumulados, mostrando que, no mínimo, se tratava de uma pesquisa – uma pesquisa muito bem afiada, aparentemente.

— Quem é esse? – Jake escolhe uma foto aleatoriamente no aglomerado, porém de uma pessoa que, de alguma forma, lhe parecia familiar. O rosto do garoto estava pálido e o olhar perdido. Não saberia dizer se o rapaz estava à procura de algo ou se aquela era a imagem de uma desistência intrínseca.

— Alex Browning. – Mac respondeu não se prolongando no óbvio.

— Foi ele quem teve a visão naquele acidente de avião, não foi? – Jake pergunta retoricamente. Ligando a imagem nas suas memórias. Viu seu rosto em algumas edições especiais de jornais na TV ou em algum documentário enquanto trocava de canais.

— Alex acreditava que a morte estava os perseguindo. Ele e os amigos. Vigiando e esperando, para, então, atacar. Foi assim que ele e as pessoas que saíram do avião morreram: de um a um eles faleceram em acidentes bizarros.

— A morte. – Jake repetiu involuntariamente enquanto analisava uma foto na qual estavam todos os sobreviventes do voo 180. A foto de cada um estampada com seus nomes logo abaixo. A imagem é um print da página de um site qualquer, que informa a causa das mortes dos sobreviventes do voo 180. Jake evitou olhar para o texto em que revelava o motivo que levou aquelas pessoas ao óbito após ler “estrangulado numa banheira”. – E o que aconteceu com ela? – Jake levanta uma reportagem que dizia “última sobrevivente viva do voo 180 se interna num hospital psiquiátrico”.

— Ah, a Clear. Ela morreu depois disso. Numa explosão. – Mac fala naturalmente, como se já tivesse dito a mesma coisa mil vezes para mais de cem pessoas. – Dentro de um hospital. – Reforçou.

Melissa ressurge por trás do sofá em que Mac estava sentado e se joga desengonçadamente ao lado de Jake, evitando fazer uma careta.

— Se a morte está atrás da gente, como nos livramos dela? – Jake pergunta tentando evitar conclusões precipitadas, porém temendo o que poderia surgir naquela resposta. Imaginou-se novamente preso num aquário, submerso por suas incertezas, enquanto tentava traçar um plano para entender tudo aquilo ou escapar. Queria subir, parecia óbvio, mas estava perdido. Tão desorientado que não conseguia mais saber qual era o caminho para cima. E se ele estivesse descendo ou invés de subir? E se ele estivesse se aproximando daquilo que mais queria fugir? Parecia uma estrada ambígua, na qual não existia caminho certo ou respostas exatas, não importando o que Mac falasse em seguida.

Isso lhe aflorou miscelâneas do passado, uma complexa combinação de arrependimentos e satisfações quanto às decisões mais cruciais da sua vida. Sentiu um nó se formando na garganta e forçou uma tosse para tentar afastar essa sensação.

Mac passa a língua no lábio superior e pende a cabeça para o lado, demonstrando-se pensativo. Sabia que não era tão fácil como Jake e Melissa queriam que fosse, assim como sabia que não havia uma resposta coesa e direta o bastante para dá-los. Sendo assim, Mac decidiu fazer uma introdução, apostando em satisfazê-los de uma maneira mais tranquila.

— Bom... – Ele passa a mão na nuca. – Antes de tudo, preciso dizer que não importa o que fizerem, nunca estarão livres da morte. Ninguém é eterno. – Jake e Melissa suspiram, visivelmente preocupados. – Mas posso ajudar para que ela se esqueça de vocês por um tempo.

— Seria ótimo. – A garota loira agradece.

— Ok, primeiro, vocês precisam saber que as pessoas que morreram não foram de forma aleatória. Há um esquema. Alex dizia que seus amigos morreram na ordem que deveriam ter morrido no acidente. Quando eles saíram, foi criada uma lista. Vocês precisam descobrir como está a lista de vocês o quanto antes. – O casal balança a cabeça. – Quando uma pessoa é salva, quero dizer, quando é a vez dela de morrer, e, por acaso, outra pessoa intervir, essa pessoa vai para o fim da lista e a morte segue para o próximo.

Melissa aperta os olhos e faz que “não” com a cabeça.

— Mas isso não ajuda. Quero sair dessa lista, não mudar de lugar.

— Eu sei, eu sei. – Mac tenta acalmar a moça. – É complicado.

— Esse pesadelo não vai terminar até que estejamos todos mortos. – Ela passa a mão na testa.

— Eu não disse isso. – Mac continua. – Vocês podem sair da lista, mas vai precisar de um pouco mais de sangue e suor. – Ele faz uma pausa e observa os dois a sua frente, esperando que Melissa o interrompa, o que não acontece. – Se alguém que estiver dentro da lista gere um descendente, quebra a cadeia de uma só vez.

— Como é que é? – Apesar de ter entendido o que Mac dissera, Jake quis confirmar o que acabara de ouvir. Parecia surreal demais. Não sabia o que esperar de Mac ou de tudo o que sabia, mas isso o tirou complemente da realidade. Repetiu então, entre soluços. – Um filho?

— Sim. Se uma garota engravidar ou se um cara engravidar qualquer outra menina, isso desmonta todo o plano original. Um filho gerado por alguém que deveria estar morto é uma nova vida que a morte não esperava.

Percebendo o impacto que causara em Jake e Melissa, Mac termina.

— Acho que ter um filho não está nos planos de ninguém dessa lista. – Melissa afunda o rosto nas mãos.

Jake passa a mão nas costas da namorada tentando dar algum consolo.

Mac morde o lábio, inseguro. Tem outra saída, queria dizer, tem outra maneira, mas segurou as palavras acreditando não ser a hora certa.

— Tudo bem, isso já ajuda bastante. – Jake agradece. – Já viu alguma coisa parecida com isso alguma vez? Sem ser o caso do voo 180.

— Algumas vezes.

Christie aparece com uma bandeja transparente. Nela, o chá de Melissa boloiçava dentro da xicara até ser disposta à mesa.

— Obrigado. – Jake agradece pegando o copo d’água.

Christie abraçou a bandeja vazia e, com o olhar mais solidário que alguém poderia demonstrar, disse:

— Isso já aconteceu antes. Mac ajudou outras pessoas. Não é o fim da linha.

Mac afirma com a cabeça.

— Há um ano, uma mulher teve uma premonição. Ela estava indo de carro com o namorado e mais alguns amigos à um show que aconteceria em outra cidade. No caminho, ela teve a visão de que o carro sairia da estrada e mataria todos os passageiros. Com medo, essa mulher impediu que o acidente realmente acontecesse.

— E o que aconteceu com ela? – Indaga Melissa.

— Ela está viva. – A resposta de Mac soou como um alívio para o casal. – Ela e mais dois. O namorado e um amigo deles morreram depois em acidentes também.

— Que horrível.

— A premonição de vocês é muito forte, vocês vivenciam a morte. – Mac diz se referindo à Jake e a mulher da história. – Anos atrás, um garoto de doze anos dormiu durante a aula. Pelo menos, é o que ele disse, apesar de nenhum dos outros alunos ter percebido, ou até mesmo o professor. Acordou num surto, gritando e batendo na carteira. Ele disse que estava sentindo um cheiro insuportável de gás e que todos que respirassem aquele ar, morreriam.

— Ele tirou alguém da escola? – Jake perguntou coçando o pescoço, em baixo do queixo.

— Ninguém sentiu o tal cheiro de gás, então o mandaram para casa. No dia seguinte, ele não queria voltar à escola, com medo. A mãe ficou preocupada, mas não quis força-lo. Deixou que faltasse aquele dia. E foi nesse dia que aconteceu. Houve algum problema no refeitório ou na cozinha do colégio, vazou gás do fogão e ninguém reparou, o que é muito estranho. Depois veio uma explosão.

Melissa fechou os olhos com força. Queria abri-los e acordar de um sonho, queria que tudo isso fosse um pesadelo, mas as palavras de Mac a acorrentavam à realidade.

— O fogo não tomou conta do colégio todo, mas algumas salas foram atingidas. A maioria estava vazia, mas uma que estava tendo aula era a sala desse garoto.

— E ele? – Jake arrisca um pensamento positivo, uma esperança morta antes mesmo de Mac continuar a história.

— O garoto morreu dias depois quando caiu da escada de sua casa. Ele quebrou o pescoço. – Mac fala com pesar. Sentia um diferencial enorme com essa história, afinal, se tratava de uma criança. – Essa não é a questão. Ele não teve uma visão, mas teve uma premonição igualmente vivaz, como a sua, a da garota no carro com os amigos... Como a de Alex Browning.

Jake sente uma coceira na garganta quando a água passa por ela. Tosse mais uma vez e passa as unhas pela barba sobre o pomo de adão. Melissa beberica o chá quente ao seu lado, tentando assimilar o que Mac falava.

 

 

Jasmine abriu o filtro e deixou que a água gelada enchesse o copo.

— Ela não estava brincando sobre as pizzas congeladas. – Brandie bate a porta do freezer. – Vou fazer a minha próxima lista de compra para os pais da Sierra.

Elas ouviam a TV que Chris assistia na sala. Ele se esquivava de todos os canais que passavam qualquer tipo de telejornal. Ficar longe de trágicas notícias era primordial para que todos permanecessem sãos. Ele afundou entre as almofadas do sofá enquanto apenas prestava atenção no som.

— A Sierra se incomodaria se eu usasse alguns morangos? – Jasmine pergunta à Brandie.

— De jeito nenhum, vai em frente.

Brandie saiu da cozinha e se juntou a Chris no sofá.

A garota agarrou cinco morangos e os pôs numa vasilha. Fez o mesmo com um tablete de chocolate preto, cortando-o em pequenos retângulos. Pôs a vasilha com o chocolate no micro-ondas e deixou esquentar. O barulho do aparelho funcionando parecia com um soluçar de alguém. Dois minutos, Jasmine viu no visor. Pensou ser o bastante para derreter a barra de chocolate.

Ela começa a lavar as pequenas frutas, pensando na última coisa que Harper lhe dissera. Queria um doce, uma sobremesa. Me surpreenda. Pensou em juntar os morangos, com iogurte e o chocolate. Não sabia se ficaria bom, mas persistiu na ideia.

 

 

Os degraus da escada rangem com o calcar de Josh. A bolsa da academia estava suspensa pela alça sobre um dos seus ombros. Desembaraçava os fios do fone de ouvido de seu antigo iPod quando Susan o interceptou no meio do corredor.

— Vai sair?

— Vou para a academia. – Ele tenta dar a volta por ela, mas sua irmã dá um passo na sua frente novamente. Ela exibia uma expressão de reprovação e seu olhar exigia mais do que ele estava dando a ela.

— Tem certeza? – Susan não queria dar uma de “mamãe mais velha”, mas sabia o quanto Josh estava emocionalmente abalado. Sabia que academia era um lugar ao qual Josh sempre procurou conforto, contudo também não podia ignorar o fato de que o irmão abusava em certos momentos. Com a morte de Diana, o que mais serviria de motivação?

— Por que eu não estaria? – Diz ele com a voz baixa, num tom calmo.

— Você não comeu nada, acabou de voltar do funeral dela...

— Dela? Diana! Não precisa ter medo de falar o nome dela perto de mim.

— Só acho que não precisa mascarar o que está sentindo. – Ela aperta seu ombro.

— Susan, eu não estou mascarando nada. Só quero malhar.  Quero extravasar.

Ela exprime uma cara pensativa, compreensiva. Já o ouviu chorando demais durante as últimas noites para desejar construir uma fortaleza ao redor do irmão, onde nada de ruim o tocaria. Porém, quando o olhava, sabia que não poderia o proteger dos pensamentos e sentimentos que rastejam dentro dele.

— Ok. Tem razão. Pode ser bom pôr para fora.

Susan dá dois passos para o lado, mas seu irmão não se mexe. Ele a encara nos olhos procurando algo o que dizer.

— Eu vou ficar bem. – Ele envolve seus braços em torno dela, que responde de imediato ao abraço. Sentiu seus sentimentos acolhidos e protegidos pela irmã mais velha e uma onda de sensibilidade derreteu o gelo que estava paliando suas emoções. Josh se despe de sua armadura e deixa que a amicícia pela irmã flua assumidamente. – Obrigado.

 

 

— Estava ótimo. – Diz Melissa pondo a xicara sobre a mesinha. Ela passa a língua pelo lábio superior recolhendo os resquícios da bebida. – Acho que nunca tomei um desses.

— Sério? – Christie apanha a xícara vazia. – Jasmin.

Então uma lembrança soterrada parece ganhar vida na mente de Jake. Pessoas correndo. Gelo rachando. Teto quebrando. O barulho ensurdecedor que o Zamboni fazia quando estava inclinado na pista de gelo. Zum, zum, zum. As pessoas gritavam, procuravam uma saída. Placas intransponíveis despencam da onde deveriam estar presas, confinando os patinadores numa jaula. Zum, zum, zum.  Brandie bate na chapa de vidro a sua frente, tentando quebrar ou move-la de lugar. Sem sucesso. Lágrimas escorrem pelo seu rosto, dor e desesperança se misturavam num caldeirão de desespero dentro de sua cabeça. Zum, zum, zum. Desiste. Ela deixa seu corpo escorregar até o gelo e se agarra nas barras de ferro da cerca que envolve a pista. À sua frente, um rapaz se senta desacomodado e inquieto. Arranca os patins dos pés e os joga para longe, assim como seu capacete e luvas. Zum, zum, zum. Um dos patins desliza pelo gelo até acertar as hélices da máquina. Num movimento que olhos nenhum poderiam acompanhar, o patim viaja pelo campo de gelo passando pela grade e acertando uma garota.

Uma garota.

Jake coça o pomo de Adão mais uma vez. Suas unhas arranham a pele e, mais uma vez, tosse.

— O que disse?

Christie repete.

— Jasmin. – Ela olha para Melissa e volta a atenção para Jake. – Chá de Jasmin.

— Precisamos ir. – Jake se levanta apressado. – Obrigadão por ter nos recebido e ajudado. Agradecemos muito.

Os quatro se despedem de forma abrupta, com Jake completamente afoito. Um pouco confusa, Melissa segue o namorado para fora de casa até o carro, dando um tchau desconjuntado para Mac e Christie – que os acompanhou até a saída. Do lado de fora, começava a borriçar. Os pingos escorriam em linhas descosidas pelas janelas do carro, mas não faziam muito barulho quando batiam na lataria.

— Por que saiu desse jeito? – Melissa pergunta fechando a porta.

Jake ajeita o corpo para que fique de frente para ela.

— Eu... Não sei, tive uma sensação estranha. Lembrei da Brandie na Howclover. Ela estava em choque, não conseguia se mexer.

— O Mac disse que tem uma ordem. Uma ordem em que as pessoas morrem. Primeiro a Diana, depois o Harper... A Brandie é a próxima? – Melissa tentava montar o quebra cabeça. – É o que você sentiu?

— Ele disse que Alex achava que os sobreviventes morriam na ordem que deveriam ter morrido na premonição. – Jake balança a cabeça negando. – Não. A Brandie não morre no gelo, ela morre do lado de fora.

Melissa sentiu um embrulho na barriga ao pensar em tudo que poderia ter acontecido a ela e seus amigos dentro da pista de patinação, já que as palavras de Jake aludem que, pelo menos, eles tentaram escapar. Gostaria de fazer as perguntas, resolver as questões imaginárias que a atormentam desde o dia da explosão. Não, esse não é o momento.

— Então quem é o próximo, Jake?

— Eu não sei. Eu não me lembro, Mel.

— Você precisa lembrar.

— Não é como qualquer lembrança, uma memória. Isso não aconteceu, foi como um sonho. É difícil lembrar de um sonho inteiro. – Ele franze a testa. Não queria decepciona-la, decepcionar seus amigos. Precisava salva-los e para isso, teria que lembrar.

Melissa rebola na cadeira ao lado, desconfortável com alguma coisa dentro de sua calça. Ela levanta a parte de cima da roupa e tira algo que estava escondido.

— O que é isso? – Ela entrega a Jake um caderno de capa mole e gasta. Ele deixa as páginas correrem por suas mãos enquanto a namorada respondia.

— Quando fui ao banheiro, Mac estava num quarto muito estranho. Quando voltei, ele não estava lá e dei uma olhada. Olha isso. – Ela abre numa das últimas páginas, onde anotações são reveladas. – É sobre aquele acidente que ele mencionou. Da garota que ia ver um show.

Na página, parágrafos de textos preenchiam as linhas, mas uma coisa chamou a atenção de Jake. No fim da folha, cinco nomes estavam escritos, porém dois estavam riscados de vermelho, impossibilitando a leitura. Ao lado dos nomes tachados, datas pontuavam o óbvio.

— Quantas pessoas ele disse que morreram depois da garota evitar o acidente?

— Duas. – Melissa engoliu em seco. – Tem mais de cinco meses desde a segunda morte.

Jake encara a namorada, entendendo o que ela queria lhe dizer.

— Acha que eles podem dizer alguma coisa?

— Acho que cinco meses é muito. E se eles conseguiram se esquivar da morte por esse tempo, acho que possam ter algum artificio. – Ela aponta para o nome na lista da única garota com nome não riscado. Marybeth Hodge.

— Vamos achar ela. – Ele meneia a cabeça positivamente, assegurando-a de sua palavra. Gira a chave, o motor ronca e o painel acende. Um leve ruído é ouvido antes de o rádio começar a tocar. O som começa alto, atraindo a atenção dos dois.

 

You know I’m gonna, gonna get you

The world’s a tiny place, there’s nowhere you can hide

I know you’re gonna, gonna love me

My guns are loaded and I got you in my sight

 

— Que isso?! – Melissa encara o rádio com desgosto. Ela faz uma careta como se estivesse prestes a vomitar em cima da música.

Ao contrário dela, Jake se pega enlaçado por uma vibe que, num minuto, se mostrou tão presente dentro do veículo quanto os dois ali. O ar ficou tão pesado que pareceu ganhar vida, como se tivesse mais alguma coisa sentada ali com eles. Seus pelos da nuca arrepiaram e sentiu novamente o nó na garganta apertar, só que dessa vez mais forte. Ele tosse com força, tentando cuspir algo – mas nada sai.

 

Swallow my bullets

Oh, oh, oh, oh, oh

Swallow my bullets

Oh, oh, oh, oh, oh

 

Melissa deu três tapas descontrolados nos botões do rádio até conseguir desliga-lo.

— Jake, seu pescoço está vermelho. – Ela segura a sua mão antes que ele pudesse toca-lo. – Para de coçar, tá ficando pior.

— Parece que a minha garganta está queimando. – Ele ronrona como um gato e tosse mais duas vezes. Havia algo o incomodando, como se um ovo tivesse eclodido em seu pescoço e um pequeno roedor estivesse tentando abrir caminho com suas patinhas.

— O que pode ser? Fui eu quem tomou o chá. – Melissa disse se ajeitando no banco.

Chá de Jasmin.

Uma mulher tropeça num capacete e cai de joelhos no gelo. Um pedaço de concreto despenca sobre seu cotovelo, causando uma fratura exposta. Seus pés debatem no piso escorregadio, ela tentava se arrastar, mas só conseguia parecer um peixe sem nadadeiras tentando fugir de um barco de pesca. Gritos rompem nos ouvidos de Jake... Um deles é de Melissa, que estava de mão dada ao namorado. Tentavam escapar do campo minado. O Zamboni fez um som insuportável quando um patim caiu em suas hélices. O objeto voou pelo gelo, atravessou as grades e acertou o rosto de uma garota. Seus cabelos escuros esvoaçaram e seus olhos afundaram no crânio. Ele, Melissa, Brandie e Josh desceram a curta escada da pista de patinação e tentaram retirar os patins às pressas. Ali estava o corpo de Jasmine jogado no chão com uma lamina de patim fatiando os belos traços de seu rosto.

— Jasmine! – Jake alarmou. – Ela é a próxima.

 

 

Jasmine destampou três potes de Iogurte e despejou seu conteúdo pastoso numa tigela de porcelana branca com um ideograma chinês desenhado na lateral. Juntou os potes vazios, um dentro do outro, e descartou no lixo. No visor do micro-ondas, os segundos iam retrocedendo, marcando apenas vinte e cinco segundos remanescentes. O prato girava e a cada volta que ele dava, um estalo quase surdo era feito dentro do aparelho. Imperceptível aos ouvidos da garota latina, que prestava atenção às falas do programa que Chris e Brandie escolheram para assistir na sala.

O micro-ondas estava suspenso e apoiado num suporte de madeira do armário sobre a pia. Na parte de baixo do aparelho, um parafuso de rosca soberba se desatarraxava à medida que prato dava uma volta completa no interior. Sob o suporte, a vasilha com o Iogurte esperava o próximo passo de Jasmine.

 

 

Josh soca pela última vez o saco de areia antes de deixar que seus braços cedam. Elijah Victor, que segurava o saco no lado oposto enquanto o amigo batia, encara sua expressão cansada.

— Sabe, não é costume seu bater sete vezes e parar. – Ergue uma sobrancelha esperando uma resposta. Ou uma ação.

— Hum. Foi mal. Achei que isso iria me ajudar, mas a minha cabeça continua lá. – Se explica olhando para o tatame azul.

— Lá onde, mano?

— No cemitério.

Eli observa ele se afastar de cabeça baixa.

— A Diana era uma ótima pessoa, não queira sentir pena. É o pior sentimento que se pode ter sobre outra pessoa.

— Eu sei, eu sei. Mas... Eli, desde aquele dia no hotel eu não consigo mais dormir. – Josh se joga nos colchões azuis da sala. Ali havia mais quatro sacos de areia, sendo que dois estavam ocupados com os chutes e socos que recebiam de outras pessoas.

— Pesadelos? Insônia? – Elijah arrisca seus palpites.

— Não exatamente. Pesadelos eu tenho quando estou acordado. Durante a noite minha mente fica tensa, essa merda tira meu sono. – Ele bate nos joelhos dobrados. – Não quero atrapalhar seu treinamento, hoje não é meu dia. – Josh olha em volta e vê uma loira de trança única segurando o saco para outra moça. Ambas pareciam familiar, talvez as garotas que estavam na fila da recepção do hotel no dia que ele e Diana fizeram o check-in... Ou seja, apenas coisa da sua cabeça, o levando de volta para aquele dia. Passa as mãos no cabelo suado e se levanta. – Deixa que eu seguro enquanto você bate.

— Não, cara. Vem comigo. – Josh segue Elijah para fora daquela área até chegarem ao vestiário. O amigo abre um escaninho e retira sua bolsa. Ambos sentam-se num banco de madeira, Josh o observa procurar algo dentro.

— O que foi?

— Aqui, achei. – Elijah mostra um frasco transparente. Dentro, várias pílulas no formato de balas tic-tac estão apinhadas. – Isso vai te ajudar a relaxar, seu corpo e sua mente. Aconselho a tomar apenas uma por vez. – E entrega o frasco nas mãos de Josh.

— Mas o que é isso? – Ele analisa o vidro.

— É só algo que vai te fazer esquecer do mundo por um tempo. Vai por mim, não vai querer saber o nome, parece mais assustador do que realmente é. – Josh o encara com os olhos saltados. – Só confia em mim, toma isso quando já estiver na cama.

 

 

Jasmine pega o último morango e recomeça o ritual. Retira as folhas de cima e corta a fruta em quatro pedaços, os juntando com os outros cinco morangos já cortados sobre uma tábua de plástico. Ela abre a bica e lava as mãos.

O prego se solta da parte inferior do micro-ondas e descai sobre o suporte de madeira. Ele dá uma suave girada incerta e corre por toda a estrutura até chegar à beira, onde despenca sobre a tigela cheia de iogurte. O objeto afunda, deixando uma marca arredondada na superfície. Jasmine fecha a torneira e ergue a tábua, a levando para perto da porcelana. Com a faca, ela empurra os pedaços vermelhos das frutas para dentro da pasta.

Ouve o apito da máquina e rapidamente retira o chocolate, despejando parte dele em cima dos morangos com uma colher e guardando o resto na geladeira. Ela mistura tudo e prova.

 

— Não acredito que você parou de assistir. – Brandie implica com Chris.

A sala de Sierra aparenta ser relativamente espaçosa, uma ilusão causada pelos pequenos e poucos objetos que aformoseavam o ambiente. Uma única estante que cobria duas paredes com uma curva encaixada na junção das duas paredes sustentava a TV, porta retratos e algumas decorações pouco harmônicas. Um tapete excessivamente estampado ilustrava o chão de madeira entre os dois sofás, junto com uma mesa de centro menor do que o usual.

Numa das prateleiras, as peças esculpidas pelo Sr. Shawn estavam de olho no que acontecia pelo local.

Jasmine se senta ao lado de Brandie volvendo a colher no conteúdo da tigela.

— Era engraçado quando tínhamos dezessete anos. A idade das idiotices.

— Idade não tem nada a ver com maturidade, Chris. As piadas continuam sendo engraçadas.

— As piadas são ofensivas. Quando não estão ridicularizando algum grupo específico, apelam para comentários sarcásticos passivo-agressivos contra famosos.

— Mas é por isso que são engraçados. – Jasmine diz, atraindo os olhares de Brandie e Chris. – Quer dizer, eu também assisto 2 Kings of Momistar, e as melhores piadas são quando enfiam as Kardashian no meio. – Junto com Brandie, as garotas soltam uma risada.

— Esse tipo de humor emancipa os roteiristas quanto a liberdade criativa na TV, eles podem fazer o que quiserem com esse recurso. Ninguém está levando para o lado pessoal, apenas aceitam as coisas como elas são. – A garota de tranças termina.

Na tela da TV, uma garota morena com lábios vermelhos observa sua amiga beijar um rapaz que acabara de conhecer num bar. O cara, alto, atraente, barba cheia e com cabelos que passam um pouco dos ombros termina de beijar a garota loira, que se esquiva até a amiga boquiaberta.

— Acho que eu tenho uma atração animal por ele.— A loira diz empolgada.

— Olha, eu vou embora. Você fica e se diverte.— A morena incita a amiga a ficar com o desconhecido.

— Mas nós viemos juntas.

— É, eu sei disso, mas agora você vai embora com Jesus.— Responde a morena associando o visual do rapaz.

Jasmine debica sua mistura. O Iogurte escorre pelo canto de sua boca enquanto deixa que os dois pedaços de morango escorreguem garganta abaixo. O chocolate deixou a mistura doce demais, mas isso era algo que não a incomodava.

— Eu não faço isso, acabei de conhecê-lo.

— Hey, amiga, eu não li a bíblia, mas eu sei que quando Jesus voltar você tem que segui-lo... Para o apartamento dele. E liberte-se! Deixe Deus tocar em você.

— Se não vê nada de errado nesse tipo de entretenimento. – Chris aponta para as piadas em cena. – Sabe do que eles estão zombando, né? Isso é pornofonia grave.

— Chame do que quiser. – Brandie responde em meio aos risos.

Jasmine ergue mais uma colherada, visivelmente com vários pedaços de morango e transbordando Iogurte pelas beiradas. Ela saboreia.

— Alguém quer? – Oferece.

Brandie recusa educadamente, ao contrário de Chris, que aceita.

Ela passa a porcelana para o garoto, que mexe a colher para redemoinhar o conteúdo. O rapaz via Brandie e Jasmine sorrirem diante da TV e, por um momento, esqueceu-se de que não fazia isso com vontade desde o acidente na pista de patinação.

Chris enche uma colherada e engole o doce, repassando de volta para Jasmine – elogiando.

— Tipo de doce bom pra comer de madrugada. – Disse lembrando-se da noite que voltou da Howclover. Do vazio no estomago preenchido com álcool e seus reflexos, querendo apenas se libertar do grilhão que não o deixava dormir.

Ela passa a colher apanhando a maior quantidade de frutas que conseguir. Jasmine sente o sabor doce da primavera irradiando pela língua, logo interrompido pelo gosto de ferro rasgando seu devaneio. A tigela tomba sobre o tapete, quebrando em duas metades, enquanto o conteúdo viscoso escoava para todos os lados. A garota leva as duas mãos até o pescoço com os olhos esbugalhados.

— O que foi? – Brandie se levanta depressa, preocupada.

Jasmine começa a mover os braços impetuosamente. Seus olhos não conseguem focar em nada. O prego desce pela goela involuntariamente até se prender em algo. Um grito abafado escapa de sua garganta, respondendo aos chamados de suas lágrimas. Ela cospe alguns pedaços de morango e iogurte com uma quantidade surpreendente de dor exalando dos grunhidos que sua garganta fazia. Um pouco de sangue começa a escorrer pelo canto da boca.

— Calma. Calma. – Chris repetia. – Ela tá engasgada!

— Faz alguma coisa! – Brandie sentia-se com as mãos atadas. O que eu posso fazer? O que eu posso fazer? Viu Jasmine se sacudir pelas almofadas do sofá até cair de quatro ao lado da mesinha. Ela engatinha em direção à estante e tenta se erguer pela prateleira mais baixa, estremecendo o móvel. O galo, uma das peças de madeira da coleção do pai de Sierra, se desequilibra e tomba para o lado. Jasmine soltava sons sufocados como se um animal estivesse sendo estrangulado, no desespero.

Chris tenta chegar perto dela, mas é empurrado com uma força descomunal. Ele dá um passo em falso e pisa sobre um dos cacos quebrados da tigela de porcelana.

— Porra! – Ele grita caindo no tapete, agora pegajoso.

— Meu Deus! Sierra! – Brandie esperneia exasperada. – Sierra!

Jasmine dá um passo para trás e tropeça na quina da mesinha, caindo abruptamente para trás com suas costas indo de encontro à estante. Ela verga seu corpo para o lado a fim de cuspir saliva e sangue, e se deixa cair sobre os pulsos.

Jake e Melissa abrem a porta da frente se deparando com a cena.  Chris caído no chão, Brandie nitidamente desorientada e Jasmine se debatendo com aflição.

— Ainda bem! – A garota de tranças solta num alívio. – Ela tava comendo. Acho que se engasgou. – Fala a tempo de se virar e ver Jasmine deitada de costas no tapete, com as mãos agarradas ao pescoço, olhos exprimidos de dor e um objeto tremendo na beirada da prateleira de cima. – Ai, meu Deus!

Jake corre até a garota e a puxa de maneira frenética. A peça do galo caíra bem onde estava a cabeça da garota, com a crista avantajada e pontuda para baixo. O objeto deixou uma marca no chão de madeira, justamente o pedaço que o tapete não cobria.

O rapaz a faz se sentar, abraçando-a por trás. Jasmine barafustava, dando cotoveladas na barriga do garoto. Ela fazia sons hediondos, uma mistura de uivo com engasgo. Ele força seu corpo para frente, fazendo com que ela ajoelhe e num influxo automático, enfia dois dedos no fundo da garganta de Jasmine, até conseguir tocar a sua úvula.

— O que é isso?! – Sierra chega à sala, se assustando com a cena.

O efeito foi imediato, depois de duas tosses o vômito se espalhou pelo chão, uma mistura ainda mais pegajosa de iogurte, morangos e chocolate. E, no meio do complexo branco amarelado, um pequeno prego se iluminava como se quisesse ser notado.

— O que vocês estão fazendo? Esse tapete era da minha avó! – Sierra reage ao que estava havendo em sua sala, até examinar melhor o cenário.

Melissa passa por Jake e se ajoelha em frente a Jasmine.

— Você está bem?

Ela balança a cabeça desorientada, cheia de lágrimas escorrendo pelos olhos. Queria gritar, mas sentia que sua garganta iria sangrar se fizesse.

Brandie leva Jasmine para a cozinha se limpar e beber um pouco de água.

— Ela engoliu aquilo? – Chis aponta para o prego.

— Que perigo! – Diz Melissa.

— Perigo? Essa merda quase matou ela e detonou meu tapete. – Sierra resmungava.

Os amigos a olham com reprovação.

— Acho melhor leva-la ao hospital. – Chris sugere. Ele olha para o pé e um pequeno corte foi feito na lateral do calcanhar, mas com a pressão que ele fez, o sangue já parou de escorrer. – Nunca se sabe, olhe para o que estamos lidando.

— Acho uma boa ideia. – Jake apoia.

— Você pode fazer isso? – Melissa pergunta para Chris. – Eu e Jake ficamos pra ajudar a limpar isso. – Continua antes que Sierra rosne novamente para os amigos.

— Claro, eu faço.

 

— Não quero dar trabalho. – Jasmine sussurra no banco ao lado do motorista no carro de Chris. – Estou bem. – Sua voz sai rateada, porém bem nítida.

— Todo cuidado é pouco. – Chris responde fechando a porta do carona para a garota. – E não é incomodo, é importante que você esteja bem.

Ele dá a volta no carro e vê Brandie se aproximando.

— Eu vou com vocês.

 

 

Josh se joga no piso de pedra no seu quintal. Descalça os tênis e retira as meias. Na casa vizinha um cachorro não parava de latir, ele poderia estar cantando o hino do time de futebol de Josh ao ritmo de Bitter Sweet Symphony se não fosse pelo Sr. Burnell aparando a grama com um aparelho barulhento. Um pouco à frente dos pés de Josh, o chão bege dá lugar ao verde das folhas, se estendendo por mais cinco metros de um belo jardim.

O cortador de grama elétrico debanda um som mordaz, estrídulo, acabando com qualquer sossego que poderia ter ao seu derredor. O Sr. Burnell andejava pelo pátio segurando a alça preta da máquina enquanto assobiava uma música que só fazia sentido em sua cabeça. As quatro rodas deixavam um rastro logo apagado, e os latidos não cessavam.

Josh volta para dentro de casa, corre escada acima. Joga a bolsa dentro de um armário e retira a camisa.

Susan avizinha até o batente da porta.

— Hey.

Ele lança uma risada sardônica para a irmã, deixando clara a sua queixa: de novo não. Ela responde com o mesmo tom do sorriso.

— Não vou ficar no seu pé, tá bem? Só quero saber se está melhor.

Ele balança a cabeça.

— Estou. Err... É. Tô sim. – Ele se aproxima. – E sabe o que me deixaria ainda melhor? – Ela faz uma careta quando nota a presença de um sorriso malicioso no canto de seus lábios. – Um abraço.

Ele passa os braços ao redor dela, esfregando o peito na irmã.

— Ah, não! Josh, você tá todo suado. – Ela ri de si mesma.

— Isso aqui tá pior. – Ele sacode a camisa suja em frente ao nariz dela.

— Ai, que nojo! – Ela tira das mãos dele. – Me dá isso aqui, vou botar fogo antes que os ratos apareçam.

Ele dá um sorriso enquanto a irmã caminha para fora do quarto.

 

 

Chris e Brandie encaravam uma parede branca enquanto Jasmine não saia do consultório. O longo corredor fazia eco dos passos dados pelos enfermeiros e alguns pacientes. Vozes baixas percorriam o ar sem rumo tentando encontrar algum acalento.

— Ela podia ter morrido se o Jake não tivesse chegado. – Brandie resolve cortar o silêncio, voltando no incidente ocorrido.

— Que bom que ele chegou, né? – Ele dá um sorriso tentando demonstrar conforto, reconhecendo que estava tão apavorado quanto ela no momento em que Jasmine estava se engasgando.

Ela o olha com admiração. Chris sempre tivera o exemplo de compleição que qualquer um gostaria de personificar. Sua natureza inabalável de estar constantemente inclinado ao altruísmo faz as pessoas enxergarem o melhor nele. Com Brandie não foi diferente, sua estima pelo amigo só aumenta a cada dia.

— Você tentou ajuda-la. Eu só fiquei parada lá.

— B, isso não é relevante. Eu estava lá, eu vi. Numa hora estávamos discutindo sobre o 2 Kings of Momistar e depois ela começa a se engasgar. – Ele segura a mão dela. – Ficamos todos assustados, é compreensível você não ter uma reação racional imediata. É loucura esperar isso.

Ela deita a cabeça no ombro do amigo.

— É muito ruim essa sensação. Sensação de impotência. Me senti uma inútil.

— Você não é. – Ele beija o topo da cabeça dela. – E a Jas está bem agora, isso que importa.

Gostaria de sentir o positivismo de Chris, só por um minuto o mundo de Brandie daria um loop. Viver apavorada parece ser mais prudente, parece garantir mais segurança, pensou a garota, do que adianta estar segura e se sentir fraca ao mesmo tempo?

A casa de Sierra estava uma bagunça, e com certeza não era mais um ambiente plácido para passar a noite. As imagens do acidente da Jasmine assombrariam os sonhos de Brandie, assim como uma Sierra fleumática com as convicções da morte estar se aproximando. Em casa, sua mãe a esperaria com dois braços e cinquenta asas para conforta-la... Ou sufoca-la, como Brandie se sentia perto de sua mãe nos últimos tempos.

— Se estiver muito cansada, pode ir. – Chris a desperta dos pensamentos. – Eu levo a Jas pra casa depois.

Hesita por um momento. Não estava cansada, mas sabia que Chris não descansaria ou sairia do lado de Jasmine até ter certeza que ela estaria segura em sua casa.

— Obrigada. – Ela dá um beijo no rosto do amigo e segue pelo corredor.

Chris a observa indo embora, desejando que ela ficasse um pouco mais. Nunca teria coragem de dizer o que realmente queria, se isso o colocasse na frente dos outros. Não poderia. Gostaria de se abjugar das amarras solenes que queimavam sua alma, mas ele sabia que era um prisioneiro dos próprios princípios e decisões. Sonha com o dia que poderá romper com os grilhões que o prendem aos seus pais, paciência é um ingrediente primordial. Vivendo numa jaula dourada desde pequeno, Chris só sabia, minha vida é minha culpa.

Pesca o celular no bolso e procura o número de Josh na agenda. Ele precisa saber o que está acontecendo, ele precisa acreditar. Depois de três toques, Chris exprime um muxoxo quando a ligação cai na caixa de mensagem. Então afofa o bolso e sente o cantil.

 

 

— Não pode me dizer onde ela está?

Brandie ouve uma voz familiar na recepção do hospital. Frente ao balcão, falando com a recepcionista, um rapaz tentava persuadi-la.

— Journey? – A pergunta reverberou assim que entreviu seus olhos verdes azulados, interpelando a sua pressa.

Ele a vê e anda a passos largos até ela, desviando das pessoas que andejavam impacientes.

— Ei, liguei para a Sierra te procurando. Ela disse que você estava aqui no hospital. – Ele percorre o olhar por ela, como se estivesse procurando alguma coisa, e logo demonstra um semblante de alívio. – Você está bem?

— Aham. Estou bem. Foi uma amiga que se engasgou. – Falando isso, ela percebeu que soava estúpido demais para ser verdade. – Com um prego. – Completou.

Ele passa as mãos no cabelo expressando um desassossego.

— E ela está bem? Como isso aconteceu?

Ela olha para os lados, ainda não entendendo o que ele fazia ali. Esperava que a qualquer momento câmeras saíssem de trás das paredes e os figurantes se revelassem. A peça, então, chegaria ao fim.

— Ela tá bem, ainda não sei o que realmente aconteceu e sinceramente, não quero saber. – Ao lado de Brandie duas enfermeiras passam correndo, gritando jargões que não lhe eram familiares. – Você disse que ligou para Sierra me procurando?

— É, bem, eu estava querendo falar com você, mas não tinha seu número...

— Eu não tenho nada a dizer para você ou pra sua amiga. – Ela o interrompe.

— Não, não. – Tenta mudar suas impressões. – Não tem nada a ver com o acidente ou com a Sondra. Pode parecer estranho... Assim... De repente... Mas quero te levar pra jantar. Comigo.

Jantar? Essa seria a última coisa que esperaria ouvir dele, afinal, mal se conheciam. A resposta imediata que lhe veio à mente era óbvia para ela e para ele, porém a lembrança da mãe chorando na noite da morte de Marcie lhe atingiu o peito. Não, não queria voltar para casa, e como já havia dito para sua mãe que dormiria na casa de Sierra, a ideia de sair com Journey sem hora de retorno pareceu repentinamente atraente. Talvez estivesse sendo laçada pelas segundas intenções de seu charme, todavia se viu inclinada a arriscar.

Brandie balança a cabeça.

— Okay. – Com tudo isso que tem acontecido, pode ser uma boa, pensa.

 

 

Não consigo falar com o Josh.— Jake leu em voz alta a mensagem que Chris o mandou para que Melissa escutasse.

— Ele deixou claro que não quer ser perturbado com isso. – A loira respondeu arrastando um tapete molhado pelo chão junto com Sierra.

As duas garotas e Jake estavam no quintal lavando os resquícios que a morte deixou para trás.

— Ele também não acredita nessa baboseira? – Sierra age passiva-agressivamente contra a história de Jake e Melissa, que a lançam um olhar de descaso. – Desculpa, mas não podem fazer as pessoas acreditarem nisso.

— Não vou discutir isso com você de novo, Sierra. – Melissa tenta levantar o tapete para joga-lo sobre o muro a fim de seca-lo.

Jake termina de ler o resto da mensagem de Chris, mas dessa vez, mentalmente. Pôde sentir nos ouvidos o tinido ecoado por sua espinha quando uma onda de aflição cutucou seu espírito. As palavras escritas por Chris destaparam um buraco que Jake ainda não havia percebido, preciso cair na real.

Procurou o número de Josh na agenda e rapidamente tentou contato. Um toque. Dois toques. Caixa de mensagens. Ele não quer atender.

— Droga! – Se queixa num tom baixo.

— O que houve agora? – Sierra ajuda a puxar o tapete para cima junto com Melissa.

— Josh também não me atende.

— Amor, ele não está querendo falar com a gente agora. Dê um tempo para ele.

Só espero que não seja muito tarde. Não gostava nada de não conseguir falar com Josh, incomunicável. Ele estava se tornando uma ilha e isso preocupava Jake e Chris.

Tentou desfocar desse assunto por um estante. Viu Melissa e Sierra tentando escalar o tapete no muro. Posicionou-se entre as duas e as ajudou a levantar o objeto. Um tapete molhado realmente é realmente muito mais pesado do que parecia.

 

 

Da mesa onde estava, conseguia ver o cavalete montado exibindo o prato especial da noite. Um casal aquecia suas mãos nos dedos entrelaçados um do outro na mesa ao lado, os olhos do rapaz admiravam os lábios da garota se moverem. Ela não o estava olhando nos olhos, mas sentia o olhar ardente dele sobre ela.

— Posso perguntar por que veio atrás de mim? – Sem querer, a pergunta sai indelicada. Brandie reformula. – Por que quis sair comigo? Nem nos conhecemos direito.

Journey empurra para o lado o seu cardápio.

— Estou interessado em você. – Ela não consegue conter uma risada lhana à resposta. Ele tenta não se sentir intimidado. – Desculpa, não consigo pensar numa outra resposta que não te faça sair correndo agora.

— Ah, tudo bem, sinceridade é tudo.

— Sinceridade. – Ele repete. – Fico feliz que esteja bem. Quando a Sierra me disse que você estava no hospital, admito que me assustei um pouco.

— Por falar em Sierra, como conseguiu o número dela? – Brandie não tinha pensado nisso. Como poderia ter acesso a qualquer meio para se comunicar com ela ou um de seus amigos?

— Quando eu e Sondra demos carona pra ela. – Ele afirma com a cabeça. – Eu consigo ser bem comunicativo quando eu quero. – E dá um sorriso insinuante.

— Ah, entendi. Comunicativo ou persuasivo?

— Um pouco dos dois.

O garçom chega, anota os pedidos e recolhe os cardápios. O casal da mesa ao lado parece estar se levantando para ir embora. O rapaz passa a mão pela cintura da garota e em meio a sorrisos e piscadelas, eles partem. Algo neles faz Brandie e Journey sentirem se sentirem encorajados a continuar com essa noite – seja lá onde ela dê no fim das contas.

— Não acha estranho muitas tragédias estarem acontecendo perto de você? – Ela devolve um olhar torto para sua pergunta. – O acidente na pista de patinação, sua amiga que morreu e hoje outra amiga foi parar no hospital.

Brandie puxa sua taça e bebe um gole de vinho como se quisesse tempo para pensar em algo para responder. Ele a convida para jantar, se diz interessado nela, notabiliza a palavra sinceridade, mas sabe que ele não está sendo transparente. É claro o que ele está tentando fazer. Sério Journey? Acha mesmo que eu vou acreditar nessa merda?

— Não esquece do fotógrafo. Ele era namorado da minha “amiga”... – Ela faz sinal de aspas com os dedos ao pronunciar a palavra amiga. – que quase morreu hoje também. – Brandie se viu fazendo o jogo dele.

— Como é? – Ele não entende o que ela quer dizer.

A garota dá uma risada despretensiosa e fala:

— Você não tem ideia do que está acontecendo. A morte está perseguindo meus amigos. Queimou a Diana naquela sauna, jogou o fotografo da janela e por pouco não entupiu a garganta da Jasmine. Estamos condenados a morrer logo, Journey, e posso estar fazendo a minha última refeição agora e nem sei disso.

Ele a olha com uma expressão curiosa, tentando absorver. Tentando entende-la.

— Sabe aquele voo 180? Tá acontecendo de novo. Quer dizer, não pode ser só coincidência. Umas pessoas saem de um desastre onde suas vidas deviam ter acabado e então dois desses sobreviventes morrem e uma delas sofre um acidente, que, por pouco, não termina morta também. – Ela o vê a encarando com perplexidade. Sim, pode ter se perdido nas palavras e transformado sua resistência num desabafo. Não sabia mais se queria ataca-lo por estar mentindo para ela ou se defender parecia ser mais comedido. – Eu não sou louca.

Ele dá uma risada tosca e responde:

— Não, eu não acho que seja. É que... Bom, não é o tipo de coisa que se diz num primeiro encontro.

— Isso é um encontro?

— Tem tudo para ser um, não acha?

Ela confirma com a cabeça.

— Pode ser o último também, levando em conta que meus dias estão contados.

— Não brinca com essas coisas.

— Não estou brincando. Acha que estou mais segura aqui com esse talheres pontiagudos, uma cozinha fervendo a dez metros e essas pessoas pra lá e pra cá do que em casa?

— Ninguém está seguro, nunca. É o tipo de perigo que todos correm. É o risco de viver.

— Então não acredita em mim? – Ela cruza os braços.

— Acredito que para toda ação há uma consequência, mesmo que algumas decisões levem a um fim... – Ele olha em volta institivamente. – Um fim menos feliz.

Brandie passa a mão pela beirada da tábua de vidro que cobre a mesa, checando algo que nem ela mesma sabe o que é.

— No cemitério você disse que eu não entendia o que você estava passando. – Ele tenta manter seu olhar cruzado com o dela, porém está visivelmente receoso. – Eu sei como é o sentimento de perda. – Ela se apoia sobre a mesa como sinal de interesse, dando um start para ele se sentir ouvido e, quem sabe, ela se sentir preenchida com outra forma de enxergar a situação. – Quando eu era mais novo, eu tinha uma cadelinha, a Setembro.

— Setembro? – Brandie deu uma risada singela.

— É, eu sei. Nunca tive criatividade para nomes. – Sentiu-se mais à vontade ao ver o interesse de Brandie. Nunca havia contado essa história para ninguém, pelo fato de trazer a tona sentimos muito negativos. No entanto, compartilhar com alguém não o machucava como parecia. – Toda tarde, às cinco horas, eu a levava para passear pelo meu quarteirão. Era engraçado, parecia que ela sabia o horário exato.

Setembro balançava o rabo enquanto movia as patinhas pela rua. Não muito atrás, Journey a seguia com a guia em mãos. Era costume fazer o mesmo caminho, Setembro não gostava de quebrar a rotina. Após uma longa volta na quadra, ambos corriam para um terreno abandonado, onde uma vez fora o parquinho mais frequentado pelas crianças na infância de Journey. Alguns bancos de concreto ainda estavam intactos, já os brinquedos não tiveram a mesma sorte. Porém, pelo menos, ainda permaneciam de pé as gangorras para enfeitar com sua tinta descascada.

O garoto de dezessete anos se senta num dos bancos e desengancha uma parte da guia, deixando Setembro correr solta pelo local. Sempre esteve seguro de que poderia se dar a esse luxo. Andava com sua cadelinha presa pelo quarteirão apenas por exigência dos moradores das adjacências, mas Setembro sempre fora conquistadora de confiança; nunca fugia, nunca se afastava, Journey até pensava “você que é a minha dona, não eu”. Ela pulava na beira do chafariz – desativado – e corria em derredor da fonte destruída no centro, mas sempre o vigiando, com medo de que seu dono desaparecesse.

O que não era habitual, e de longe ninguém poderia prever, um carro e uma moto se encontraram na curva da esquina, próxima ao terreno, quase colidindo. O motoqueiro, por sua vez, desviou bruscamente do carro, invadindo o terreno e alcançando Setembro. Os pelos brancos de cadela lambuzados de sangue deixaram Journey tonto. Tanto o motoqueiro, quanto o motorista desenfreado tentaram ajudar, porém Setembro faleceu no caminho para um veterinário.

— Oh, nossa! – Brandie sussurrou nas mãos fechadas.

— Isso me deixou devastado, fiquei com um humor terrível por semanas. – Ele continuava.

Journey parou de fazer as refeições com a família e passou a ficar mais tempo em seu quarto focando nos estudos. Preciso focar, pensava, sabendo que isso era a forma de descarga das emoções... Ou apenas um jeito de abafa-las. Toc, toc, sua mãe bateu à porta, “filho, o almoço está pronto”, disse delicadamente. Com a esperança de tê-lo à mesa naquela tarde. Ele respondeu “vou almoçar depois, mãe”. Ela não insistiu. Seu pai saíra cedo para o trabalho, nem ouviu o som alto do vídeo game de seu irmão no quarto vizinho. Olhou para a janela e viu o dia dando lugar a noite. Horas dedicadas aos livros, que se esquecera do mundo ao redor. Piscou cinco vezes e saiu do quarto na ponta dos dedos.

A porta do quarto dos pais estava fechada, sua mãe, possivelmente, estava vendo TV – e consequentemente pego num sono. O barulho vindo do quarto de seu irmão denunciava o que ele passou horas na frente dos seus jogos. Na cozinha catou um copo e se serviu de água. O relógio soava barulhento num ambiente tão silencioso.

Cinco horas.

Não conseguiu afastar a imagem de Setembro abanando o rabo e batendo a patinha na porta, pedindo pelo ar fresco da tarde. Uma lágrima escorreu pela bochecha e involuntariamente chutou o fogão com raiva, jogara o copo com força dentro da pia e desejava que o mundo desaparecesse. Pescou o casaco no cabide perto da porta e saiu, seguindo um rumo certo. Preciso ver ela, preciso ver ela, preciso ver ela. Ouviu um latido. O cachorro do vizinho da frente se lambuzava entre os dentes. Olhou de um lado para o outro. A rua estava deserta, estaria quieta se não fosse o cachorro. A noite parecia chorar sobre ele quando sentiu dois pingos na testa. Um bafo quente foi disparado por Journey, passando por sua nuca e arrepiando os pelos de seu braço. Boom! Caiu de joelhos no chão com medo de olhar para trás, sabia o que tinha acontecido. Sua casa estava em chamas, queimando de dentro para fora.

— O que? Como assim? – Brandie estava com os olhos arregalados, enquanto o fitava aflita.

— Não saberia dizer. Tive um ataque na cozinha, não quero detalhar, mas... – Achou difícil dizer. – Acho que fiz alguma coisa com aquele fogão quando o chutei. – Ele exibe uma triste expressão, uma que evoca remorso e profundo sofrimento. – Minha mãe e meu irmão morreram naquele dia. Os bombeiros disseram que foi vazamento de gás, mas... Eu não sei explicar como isso aconteceu. Foi tão rápido.

— Journey, isso é horrível.

— Minha terapeuta disse a mesma coisa. – Ele concordou com a cabeça. – Meus pais tinham uma cabana, fica numa área bucólica mais para o interior. Eu e meu pai ficamos por lá até acharmos outro lugar para morar. Não que a casa tenha sido toda destruída, mas não queríamos voltar pra lá de qualquer jeito. – Ele passa a mão pela barba e suspira. – Ele me culpou no início. Depois parou de falar comigo completamente. Era como se eu não existisse. A verdade é que nunca me defendi, afinal ele estava certo. Matei minha mãe e meu irmão.

Brandie negou com a cabeça.

— Não, você não fez isso. Foi um acidente.

— Acidente ou não, fui eu quem causou.

— Você não tem certeza. – Ela começa a sentir uma vontade de levantar e abraça-lo forte, porém, apesar de Journey demonstrar sua dor nas palavras, parecia já ter superado de alguma forma. Seu acolhimento já não era mais necessário.

— Isso não tem mais importância agora, Brandie. – Ele deu de ombros. – Um ano tinha passado e ele não abriu a boca, foi quando percebi que o tinha perdido também. E só foi ficando pior. Ele parou de trabalhar dois anos mais tarde, e se exilou em casa. Parou de falar com todo mundo. Numa madrugada, o encontrei na sala encarando a janela. Estava muito escura e fria essa noite.  Foi quando ele disse as primeiras palavras em muito tempo.

Ele parou e olhou para o chão.

— O que ele disse?

Journey deu uma risada murcha.

— Vou te poupar do que eu ouvi, realmente não foi algo legal de se escutar, mas basicamente ele disse que não aguentava mais olhar na minha cara e preferia ser internado num asilo para não ter que ficar mais perto de mim. Err... Bom, ele disse que eu o incomodava.

— Journey, eu sinto muito. Sinto mesmo, por tudo o que você passou. – Brandie toca sua mão sobre a mesa de forma involuntária.

— Não sinta, eu meio que provoquei isso tudo, não?

Ela não respondeu.

— Bem, eu fiz a sua vontade. Ele está onde quer estar. Só espero que esteja bem.

— Por que está me contando isso?

— No cemitério você disse que eu não poderia entender o que você está passando e a sua dor. Você não é a única que já foi golpeada pela vida. Tem horas que parece que o universo está trabalhando especialmente contra você, mas quanto antes perceber que tudo isso não passa de uma fase e só se sai dela superando-a, nunca estará pronto para o que vem em seguida. Você quer encontrar padrões, significados, lendas, até mitos que possam justificar o que está sentindo, o que possa ter acontecido. Isso é por que você os ama, os quer de volta e não quer aceitar que eles partiram. Por trás de toda a dor e sofrimento, o amor pelos entes queridos fica mais vivo do que nunca. Você procura algo para se segurar, e até em momentos mais críticos de angústia e saudade tentamos barganhar com algo divino para que ele nos devolva o que tirou. Coisa que, sabemos, nunca vai acontecer. A vida é um jogo de adivinhação. Nós não sabemos aonde nossas decisões vão nos levar. Podem nos levar para um terreno abandonado no dia de um acidente de carro, podem nos levar à uma pista de patinação no dia que ela explode ou podem nos levar à um restaurante, onde nada de ruim vai acontecer.

As palavras de Journey ataram Brandie pelo pescoço e a ancoraram numa floresta de dúvidas. A história da morte pode ser uma grande pegadinha da minha mente. Mas se for isso, Jake e Melissa estão enlouquecendo junto comigo? E Chris? Ele sempre foi o mais sensato de todos nós. Suspeitas, cismas e questionamentos, Brandie afundava em cada uma como areia movediça. Por um segundo aceitou essa possibilidade, travando uma luta sectária entre sua fé e seu instinto.

— Eu sei que posso estar delirando, mas é que isso faz tanto sentido pra mim.

Ele desatende ao mérito da moça e discorda da forma mais sensível que consegue.

— Isso não faz sentido nenhum. Essa história da morte estar atrás de você e de seus amigos é folclórica. Não pode acreditar que isso esteja acontecendo de verdade. – Ele franze a testa e a olha com preocupação. A mão da garota está apertando seus dedos, coisa que ela parece não notar, uma vez que seu olhar transparece uma mente absorta em pensamentos.

— Na verdade, espero que não mesmo. Mas é nisso que eu acredito até que se prove o contrário.

 

Let it all get blown away

Leave the future up to fate and

Let it all get blown away, get blown away

Leave the future up to fate


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Notas finais do capítulo

☠ - O capítulo ficou maior do que o esperado. Bem maior, na verdade. Tive que fazer uns cortes para ele não ficar ainda mais extenso D:



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