Premonição: Congelados escrita por VictChell


Capítulo 8
Antes


Notas iniciais do capítulo

☠ - Ai Brasil, mais um capítulo! Tenho umas coisas para comentar sobre ele, mas vou fazer só nas notas finais. E não leia as notas finais sem ler o capítulo antes, ein! u.u



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I’m giving you a nightcall

To tell you how I feel

I’m gonna drive you through the night

Down the hills

 

Aquela noite esfriara de súbito.

Chris se apoia sobre a ilha da cozinha com as mãos espalmadas sobre o granito gelado e os braços esticados. Ele move a cabeça de um lado para o outro enquanto girava os ombros, procurando relaxar os músculos e, talvez, a mente. Um suspiro involuntário escapou de seus lábios quando olhou para cima, focou os olhos sob a luz branca da lâmpada do teto e a observou arder.

Lembrou-se da expressão de Jasmine quando estacionou em frente à sua casa. Medo e tristeza pareciam palavras muito simples para serem atribuídas àquilo que efluía das profundas e sorumbáticas piscinas de seus olhos castanhos. Com um agradecimento singelo e quase silencioso, Jasmine, abraçada ao próprio corpo, se dirigia morosamente para dentro de seu prédio. O fim da tarde chegava e as nuvens toldavam o céu, deixando o clima ainda mais melancólico do que já estava. Queria envolver seus braços ao redor dela e oferecer alguma solução, falho, uma vez que nem mesmo Chris acreditaria nessa baboseira. Conforto, outra opção, porém, já decidido, era tarde demais, Jasmine havia sumido.

Sim, sua compaixão pela garota era real e seu desejo de conceder algum tipo de tranquilidade a ela o faria se sentir bem, talvez trouxesse comodidade para ambos. Ou talvez – apenas uma secreta e inconsciente perspectiva – ele que estivesse procurando algum tipo de acolhimento. Agora, sua inação o seguiu até em casa e lamenta em seus pensamentos.

— Ah, enfim chegou. – Disse a Sra. Swanby entrando na cozinha, pela porta atrás de Chris.

Sua voz carregou o ar de conturbação.

— Oi mãe. – Ele abre um sorriso postiço no rosto. – Como é que tá?

Ela ajeita o laço na frente do seu robe de seda e passa as mãos pelo cabelo bagunçado.

— Estou bem, querido. – Ela se aproxima e dá um beijo na bochecha do filho, com tanta delicadeza que parecia demonstrar um falso receio de quebrá-lo em mil pedaços. – Só um pouco cansada.

— Como sempre, né mãe? – Ele apoia a cintura na bancada e cruza os braços, vendo-a abrir a geladeira, apanhar uma garrafa de vidro e ignorar completamente sua pergunta. – Meu pai já está dormindo?

— Está na cama. Não sei se morto ou dormindo, mas está lá. – “Com certeza isso foi uma piada”, pensou Chris, mas sua mãe nunca fora engraçada. Forçou um sorriso sem vida para que ela se sentisse recompensada pela tentativa, mas a verdade é que ele não se sentia um raio de luz para querer brilhar toda vez que alguém solicitava um agrado seu. – É impressão minha ou essa geladeira está muita vazia?

Ele dá de ombros.

— Vai deixar isso chegar até que ponto?

— Como? – Pergunta confuso.

— Querido, você que come todas essas coisas. Eu e seu pai passamos a maior parte do tempo fora de casa. Não temos tempo para fazer compras. – Ela lança um olhar acusador, como se tivesse pegado o filho no flagra, no meio de uma atividade ilegal. Ou num momento constrangedoramente sexual.

Ele levanta uma sobrancelha.

— Espera aí, tá dizendo que a culpa é minha? – Ela se serve da água, completamente concentrada. – As pessoas precisam comer, mãe, a comida acaba mesmo. É normal.

— Não estou dizendo que não é. Só peço que não deixe isso acontecer. Sabe como seu pai fica quando não encontra nada aqui. – Ela abre um armário sobre a pia e puxa um pote com fecho. – O café está no fim também. – Diz ao checar dentro.

— Isso nunca é problema, você não comem aqui mesmo. Quer dizer, o que fazem nessa casa? Só vem para dormir. Não diria nem que moram aqui. – Ele tenta não soar agressivo, embora entregue palavras honestamente espinhosas.

— Christopher, não começa. Não tem mais oito anos, pode se cuidar sozinho.

Ele sente as palavras descerem rasgando pela garganta. Elas tinham um peso para ele. Não que sua mãe soubesse, mas para Chris, do ângulo onde ele sempre a observara, a postura que a mãe adotava era um caminho fatal. Prefere então não render-se às manobras de sua mãe, admitindo que esse não era um grande problema que precisasse de uma discussão para ser resolvido.

— Não se preocupe. Amanhã de manhã eu posso ir ao mercado.

Ela assente com a cabeça e esfrega uma de suas palmas delicadamente pelo rosto do filho.

— E chega desses seus chiliques. Você já está bem grandinho pra isso.

Ela não se preocupa em conferir o semblante que Chris deu em resposta, apenas mantém os olhos cansados virados para o nada enquanto arrastava os pés para fora da cozinha. Fora, então, transportado para uma memória de quando tinha dez anos, quando sua mãe se desculpou por ter se esquecido de buscá-lo na escola. Era manhã do dia seguinte e ele estava sozinho tomando seu suco de laranja matinal e algumas torradas que ele mesmo preparara. Sua mãe chegou, encheu uma caneca de café e resmungou sobre a agenda cheia que teve no dia anterior. Chris compreendeu naquele momento, não esperando o que vinha em seguida.

As semanas foram ficando mais solitárias e o trabalho dos pais como corretores de imóveis foi ficando cada vez mais exigente – ao que parecia. Quando entrou para o ensino médio, percebeu o grande abisso que se formou entre ele e sua família. Percebeu. Aquele espaço vazio estava ali há muito tempo? Se sim, por que só naquele momento ele resolveu se revelar?

Christopher não entendia. Seu corpo ficava frio como o de um cadáver à medida que via seus pais se distanciarem cada vez mais, até que eles fossem estranhos dentro de sua casa. Ou, como ele imaginou uma vez, até que ele se tornasse um estranho em sua própria vida.

Mais uma vez, sentiu-se sozinho num lar insociável. A cozinha estava quieta e o frio que emanava das carcaças nas quais suas antigas lembranças se retraiam o fazia sentir calafrios. Olhou sua edícula pela porta de vidro da cozinha. De alguma maneira, ela o fazia se sentir menos sozinho. Toda pintada de verde pálido, com uma janela na lateral e um minijardim recheado com bocas-de-leão próximo às entradas. Na parte da frente, uma porta de correr servia de entrada. Inteiramente de vidro, mas com uma cortina de tecido na parte de dentro. Já a entrada da parte de trás, era uma singela porta de madeira, semelhante à entrada da casa principal.

De certo modo, viu sua casa apontando o dedo indicador para a edícula, ordenando que agora aquele era o seu lugar. Sob uma invisível, porém persistente opressão, ele resolveu obedecer. E enquanto caminhava até lá, sentiu um enorme abismo se rasgar dentro do seu peito – seu vazio interior preenchido com ecos dos seus mais antigos gritos e inseguranças, os quais restrugiram em ondas até que ele visse a bela garota de pele morena e olhos castanhos. Deitada de lado, o assistindo acender a última vela da caixa. Uma tempestade retumbava em sons sufocados e sofridos no lado de fora, como se o assobio da noite se transformasse num rugido ululante. Os dois não se importavam e nem temiam, a edícula parecia uma fortaleza para eles. Tomaram doses exageradas de vinho naquele dia, algo que não tinham planejado.

Chris e Mindy se encontravam esporadicamente entre uma aula e outra depois que se conheceram no gramado do campus da faculdade de Charleston. Com o tempo desenvolveram um relacionamento sem compromisso, cuja única promessa era de não falar sobre o futuro. Contudo, na noite da tempestade, Mindy tomou coragem de dizer o que realmente sentia. Deixou fluir um texto que parecia ter sido muitas vezes pensado e repensado, guardado numa gaveta apenas esperando a hora certa para ser lido em voz alta. Ela colocou as mãos no peito dele, pedindo que a deixasse entrar. Tão vulnerável quanto o vinho poderia deixar, tão delicado quanto o sexo que faziam toda semana, ela o deixou aberto como uma flor de cerejeira. Ele sabia o que sentia por ela e tudo o que mais desejava era abraça-la na mesma hora, entretanto o que fez foi o extremo oposto. Viajou de um polo a outro – entre sua mente e seu coração, ele congelou no meio. Essa fora a última noite que a vira antes de se afastarem por completo.

Quando abriu a porta de vidro, Chris se perguntou se era astuto o suficiente para não revelar isso a ninguém. Uma história de amor que caiu como a noite e se esvaiu com o dia.

 

 

Os olhos castanhos e redondos de Jasmine permaneciam fixos no relógio digital de mesa que ornamentava solitariamente uma mesinha ao lado da estante principal na sala. Sentiu um peso desabar dentro do seu peito quando finalmente percebeu a dormência do seu brilho apagado e em como a ausência dele travava uma batalha contra sua sonolência. Ela se envolveu com um antigo cobertor amarelo que costuma dividir com seu irmão nas noites de tempestades. O puxou na altura do pescoço, até que pudesse cobrir os ombros. Debaixo dele, ela procurava algum conforto, imaginando os braços de Jasper ao seu redor num abraço enquanto a chuva não passava.

De alguma forma, sentiu seu corpo aquecido, como se estivesse enterrando os pés na areia de uma praia, num ponto onde as sombras que as palmeiras faziam não pudessem lhe esconder. O mar a chamava pelas ondas ritmadas, o som das aves provoca um sentimento nostálgico e o sol brilha tão forte que ela não consegue abrir os olhos. Passou as mãos pela beirada do cobertor a fim de tornar seu cenário fictício mais real, porém isso só a traz de volta a realidade quando seus dedos entrelaçam uma parte puída do tecido. Ela solta um suspiro de insatisfação e faz um muxoxo em resposta.

— Ela tá bem? – Pergunta um rapaz negro, alto e careca sentado numa cadeira em frente ao sofá. Ele faz uma careta para Jasmine enquanto sistematizava uma cadeia de pré-julgamentos a seu respeito. Poderia facilmente dizer que ela estava presa numa camisa de força, simplesmente pela forma que ela se movia dentro do cobertor.

— Uhum. – Respondeu Libby saindo de seu quarto enquanto ainda tentava tarraxar um dos seus brincos na orelha. Nessa noite ela ostentava um cabelo alaranjado com as pontas rosadas e um vestido vermelho nada discreto. As unhas estavam brilhando na cor preta e um colar de ouro que Jasmine sabia que era falso. Ela parecia estar pronta para se camuflar no primeiro prédio em chamas que encontrasse. – A Jas tá meio pra baixo, mas ela vai ficar bem. – Disse com total descaso, e então sussurrou algumas palavras sem vontade alguma de demonstrar qualquer sutileza. – Ela perdeu o namorado e hoje foi parar no hospital.

O rapaz balançou a cabeça positivamente afirmando uma falsa compreensão de toda a história a partir das breves palavras de Libby – que não fez a mínima questão de dar continuidade.

Jasmine não dava a mínima de vê-los claramente fazendo desdém de sua dor, esperava que Libby desaparecesse antes que pudesse dar qualquer resposta. Fitou o relógio novamente e percebeu que os minutos passavam de forma mais lenta. Ou talvez, o relógio tivesse parado. Nove e vinte e três. Ela esperou, contando os segundos mentalmente, mas o próximo minuto não chegou. Percebeu o rapaz tentando se segurar para não dar uma risada.

— Jasmine. Eu e o Jalen vamos dar uma saída. Eu já tinha dito isso antes pra você, não sei se você se lembra. Enfim, quando eu voltar a gente precisa conversar e combinar o que vamos falar com o senhorio. Então deixa a sua parte do aluguel na mesa, por favor.

Libby pronunciava as palavras enquanto procurava a sua bolsa nos assentos das cadeiras da mesa de jantar. Balançava o cabelo para cima e para baixo como se estivesse dançando na sua boate preferida, naquela imagem de uma mulher completamente livre e cheia de vigor – a qual Jasmine sempre sentiu certa inveja. Gostaria de se sentir assim às vezes, porém sua descendência peruana parecia chamar mais atenção do que qualquer eu interior que ela desejasse expressar. Sua história, suas raízes e sua cor muitas vezes pareciam um alvo do qual ela nunca conseguia escapar.

Assim como ela, Jasper precisou tomar decisões que mudariam sua vida. Da última vez que o viu, ele a saudou como se ela fosse uma velha amiga, uma companheira de viagem, e não como sua irmã. Ele aceitou o emprego como operário de construção civil no estado de Ohio, após um conhecido lhe recomendar o trabalho através de suas redes sociais, dias depois de escapar de uma briga física com Jasmine. Os irmãos estavam sendo assediados por três estudantes universitários bêbados e armados com garrafas quebradas, pressionando Jasper e Jasmine com ofensas e ameaças durante seu percurso até em casa – que pareceu levar o dobro do tempo, uma vez que ambos estavam andando em círculos a fim de não deixar que seus perseguidores descobrissem onde moravam. Jasper tentou despista-los com a irmã numa corrida por entre parques e bosques até chegar a um beco, quando o mais alto dos três garotos os alcançou. Encurralados por duas paredes de concreto e um portão enferrujado, o rapaz tentou ferir Jasmine com a ponta quebrada da garrafa de vodca que segurava.

Jasper não pensou duas vezes antes de pular em cima do rapaz, que revidou de forma desengonçada. Balançou a garrafa no ar e acertou a parte de baixo do abdômen de Jasper. O sangue escorreu pelo rasgo na sua camisa social. Suas pernas ficaram bambas quando Jasmine gritou o mais alto que pôde enquanto derramava lágrimas e implorava para que o rapaz soltasse a arma. Cuspindo algumas palavras arrastadas sob o efeito do álcool, o garoto apontou sua garrafa ensanguentada para Jasmine enquanto se aproximava dela.

Um flash atingiu os seus olhos sob a aquela noite. Seu irmão se jogou contra o garoto rapidamente até que ambos atingissem a parede oposta. Com as mãos cheias de sangue, Jasper agarrou o punho do menino e o retorceu até que pudesse ouvir o som de um estalo. “Sai daqui. Rápido!”. A ordem de seu irmão ecoou pelo beco, mas antes que Jasmine tomasse qualquer decisão, o rapaz preso sob o corpo de Jasper tentava se libertar. Ele deu um soco na ferida de sua barriga, fazendo mais sangue escorrer. Jasper se retorceu para trás, com as mãos no corte. “Vocês são o lixo do nosso país! Voltem para a sua lixeira, seus abutres!”, disse o garoto. Jasper então acertou o seu punho fechado no rosto do garoto, o que o fez rir. Enfurecido, o irmão de Jasmine continuou lançando socos contra o rosto de menino inúmeras vezes até que ele não pudesse mais revidar.

Nessa noite, Jasmine carregou Jasper para casa. Com um dos braços dele apoiado sobre seus ombros e o outro apertando o corte na barriga. Se esgueirando pelas sombras da noite, eles mantiveram-se quietos durante o caminho. “Sorte que não foi profundo”, disse ela enquanto costurava o irmão no sofá da sala com um kit de primeiros socorros. O emprego apareceu em boa hora. Ele quis fugir o mais depressa possível daquele lugar antes que qualquer um daqueles estudantes pudesse o reconhecer nas ruas de novo, mas Jasmine não queria segui-lo. Odiava abandona-lo, mas decidiu continuar estudando, se prometendo uma vida melhor.

— Ouviu, Jasmine? – Libby grita dessa vez.

— Tem alguma coisa errada com aquele relógio. – Disse ela numa tentativa de ignorar o pedido de Libby, a fim de fazê-la sair mais rápido de casa.

— O que? – A colega pareceu confusa por um instante e percebeu o relógio parado. – Isso não tem importância. Só faz o que eu te pedi. Eu volto amanhã cedo ou à noite, não vou demorar.

Jasmine aperta mais o cobertor em torno dos braços e observa Libby abrir a porta. Jalen parte para o lado de fora com o olhar frio, mas antes de segui-lo, Libby se vê contaminada por um sentimento de culpa – que talvez não a pertencesse. Ela se vira para Jasmine e interpreta seu próximo gesto como um ato de compaixão.

— Por que você não liga para o seu irmão?

— Não quero atormenta-lo com meus problemas.

— Não é essa a questão. Família não serve para isso? Para nos dar apoio quando precisamos, altos e baixos. Não sei o que houve entre vocês dois, mas isso não vale a pena. Liga pra ele e pede por ajuda. Temos que ter noção de quando chegamos ao nosso limite.

Libby retorce os lábios pondo um ponto final na conversa.

— Sua amiga é meio retardada – Fala Jalen no corredor, antes mesmo de Libby fechar a porta.

— Para com isso, ela pode ouvir.

— Tem certeza que ela não tem aquelas doenças mentais? – E solta uma risada áspera atrás da porta, completamente sem vergonha de expor seus pensamentos. – Eu tenho um primo com paralisia cerebral, gata. A tua amiga tem a mesma cara que ele.

 

 

Josh andava com seus chinelos pela casa. Ele desce as escadas, atravessa a cozinha e passa pela sala. As pontas de seus dedos estavam geladas numa descarga terminal consequente do estado emocional que a expectativa lhe promovia. Seus pensamentos giravam sem parar à medida que a hora passava e cada membro de sua família seguia em direção às suas camas. Ele se posta atrás do sofá e observa Tommy assistir o jogo de futebol que passava.

— Não quer assistir comigo? – Seu irmão aponta para a tela. Dois times de homens suados disputavam por uma bola que rolava para lá e para cá. Transmitia um imenso sossego em suas palavras, algo talvez fluído de sua jovialidade despreocupada. – Dessa vez o Zach e a Alane não vão atrapalhar.

Ele dá um sorriso como resposta.

— É o nosso time, né? Eu li que eles iam jogar hoje.

— Uhum. Contra Houston Dynamo.

— Bando de otários.

A indignação de Josh faz Tommy rir, mesmo que por poucos segundos.

— Eu até queria assistir, Tommy Atomic. Mas não vai dar. Preciso dormir um pouco.

— Tudo bem. – Apesar da pouca iluminação, Thomas conseguiu enxergar a expressão cansada do irmão. E considerar a possibilidade de vê-lo sentado ao seu lado no sofá na semana seguinte para o próximo jogo do Minnesota United FC, o deixava animado. – Ah, Josh, você vai no meu jogo?

Ele para no pé da escada. Esqueci do jogo do Tommy, droga!

— Vou, claro. – O olha de volta tentando emitir a mesma jovialidade que Tommy costumava glorificar-se, mas logo sentiu-se culpado por cair de joelhos aos pés do primeiro subterfúgio que lhe viera à mente. O mesmo subterfúgio que o acompanhara desde os vestiários quando terminava uma partida de futebol na época de escola até um eterno loop de memórias revisitadas que o atormentam atualmente. Um subterfúgio que chamava de seu, que tanto podia encobrir pequenos quanto grandes crimes. Desiste então de se apropriar da jovialidade do irmão e deixa que um sorriso lânguido se forme em seus lábios – Não perderia por nada, Tommy Atomic.

 

Chegando ao seu quarto, Josh se estira sobre os lençóis. Ele esfrega as pálpebras com as palmas das mãos enquanto o vento frio arrepia os pelos de sua nuca. Encara a janela aberta e trava uma guerra de argumentos mentais entre se enterrar no meio das cobertas ou levantar-se e fecha-la. Optou por permanecer quieto e manter o corpo relaxado. Ele fecha os olhos por um minuto e permite que sua mente afaste qualquer pensamento que deseje emergir. Mantem-se encarando um horizonte sem fim, sem cor e sem respostas, pretendendo alcançar um reino de paz onde pudesse finalmente descansar. Nada. Se apruma entre a coberta e o colchão, evitando ao máximo que a imagem de Diana brote em borbotões de cascatas em seus sonhos. Nada. Nenhuma calmaria lhe ocorre. Os músculos continuam tensos, sua mente continua agitada e cada vez mais parece estar perto de algo ameaçador. Um peso que gostaria de arrancar do peito.

Ficou por um longo tempo parado. Abrindo e fechando os olhos como se em algum momento, entre essas duas ações, a noite fosse subitamente clarear. O vento quente traria uma sensação de alívio e o brilho do sol aqueceria seu coração, algo que ele pensou em algum instante em meio aos ruídos dos morcegos, que estavam iniciando a sua caçada noturna por insetos.

— Eli, é bom que isso dê certo. – Fala sozinho, então se levanta da cama e caminha até onde tinha jogado a sua bolsa da academia. Revirando o interior, acha o frasco que seu amigo lhe passara. Pinça um comprimido com os dedos e o arremessa garganta adentro. Um gosto amargo lhe invade a boca a principio, coisa que passa logo em seguida.

Sobre a escrivaninha, seu celular começa a vibrar e então emite uma luz que inunda a escuridão do quarto. Ele solta um suspiro ao ver a foto de Jake no visor.

— Agora não, Jake. – E descarta a ligação.

Ele dá a volta no quarto e fecha a janela. Por um segundo, ou até menos, Josh sentiu que seus ouvidos entraram num estado adormecido. Bateu as palmas uma vez para confirmar, mas conseguiu ouvir claramente o som.

Sentado na cama, seus ombros pesaram e sentiu que seu queixo estava prestes a descolar do rosto.  Ai, que merda é essa? Num sobressalto, Josh ouviu uma coruja bater asas em frente à janela. Ela o observava com um olhar místico. Ele agarra uma revista que estava jogada no chão e atira contra o vidro, espantando o animal.

Josh pressiona os dedos contra a cabeça e faz uma leve massagem no couro cabeludo. Ok, isso vai dar certo. Ele se joga de costas na cama. Braços abertos e olhos fechados, como se estivesse prestes a fazer um anjo de neve sobre os lençóis. Seu peito subia e descia ao ritmo da respiração. Inopinadamente, silêncio. O silêncio cresceu de forma rápida e sutil, se alastrou pelas paredes até cobrir todo o cômodo. Sua cabeça latejou um pouco e ele abriu os olhos. Encarou o teto. Respirou fundo. Os olhos começaram a embaçar. Queria eliminar todos os pensamentos pervertidos que o assombravam nos últimos dias, desejava estar à mercê da vida. Sem morte, sem perda, sem dor. Queria tocar a borda da integridade, e então desenhar um novo quadro em sua cabeça. Esvaziar a mente nunca pareceu tão fácil. Deixou que suas memórias alassem até onde queriam chegar, até onde podiam chegar. Respirou fundo mais uma vez e piscou, piscou de novo e uma terceira vez. Uma lágrima involuntária escorreu pelo canto de um dos seus olhos. Fechou as pálpebras e respirou de novo.

As paredes começaram a sumir. A escuridão começou a se degradar. Josh estava com o corpo deitado na cama, mas não era seu quarto ou seu travesseiro. Vestia apenas um jeans largo e sua jaqueta verde escura aberta. Em suas mãos, um unicórnio de pelúcia azul sorri de maneira atrevida enquanto Diana experimentava um vestido amarelo em frente a um espelho. O sol atravessava as cortinas brancas da janela como um farol em chamas.

 

You got back this morning, sometime around ten

Said you won't, then you go and do it again

And now I don't trust ya, can't hear what you say

Cause I know what you'll do to get your way

 

— O que acha? –Pergunta ela.

— É maneiro. – Responde dando uma olhada rápida.

— Maneiro? – Ela bota as mãos na cintura e o encara com uma desconcertante careta. Ao lado da cama, a música era jogada no ar pelo computador, fazendo com que Diana, vez ou outra, balançasse a cintura e mexesse os pés. – Só isso?

— É um vestido legal, Diana.

Ela dá uma risada.

— Por que ainda te pergunto alguma coisa? – Ela começa a tirar o vestido.

— Também não sei. – Ele deixa o bichinho de pelúcia de lado e a observa. – Mas eu sei que você fica bem com qualquer coisa... Ou sem nada também, acho até que o natural é melhor.

— Engraçadinho. – Ela solta uma risada doce e posiciona o vestido em frente ao corpo. – Quer falar mais alguma coisa ou posso tentar outro? – A franja dourada cai sobre os olhos, florindo seu belo rosto. Como uma bela moldura, Diana sempre conservou sua franja cor de ouro desde que saiu do ensino médio, algo que ela considerava um de seus melhores atributos.

— Esse combina com a primavera.

— É outono! – Ela balança a cabeça rindo. – Você não presta pra isso. Só se veste com jeans e essa jaqueta velha.

— Minha jaqueta favorita, Di. – Ele abraça novamente o unicórnio da namorada.

— Aposto que você ama mais essa jaqueta do que a sua própria mãe.

— Não, mas é claro que não. – Ele faz uma careta engraçada. – Na minha lista, primeiro vem o MNUFC, depois ela, depois você e aí sim a minha jaqueta.

Ela o olha com uma cara de surpresa.

— Ah, claro. Pelo menos no seu conceito, eu estou acima de um pedaço de pano. – Ela puxa um cabide do armário. – E esse, o que acha?

— É lindo!

Ela sorri, mas não como resposta. Ele sabia que ela não estava totalmente convencida. Continuou desfilando um exército de escarpins, soltos altos, rasteiras, vestidos e blusas. Naquele momento, ela tinha o ar da autoridade, e ele sabia disso. Ele gostava disso. Estava implícito que não eram as roupas que importavam àquela altura.

Apesar de Josh não estar muito preocupado, quando se tratava de uma data especial, Diana sempre tentava dar tudo de si. Escolher uma roupa nunca fora para ela uma tarefa complicada, porém era aniversário de Jake e todos se reuniriam para comemorar num restaurante japonês – o que parecia se tornar uma tradição entre os amigos.

A playlist da Diana segue num ritmo totalmente diferente.

 

Oh, sometimes the one

That you think that you love

Turns out to be a fake

 

Diana puxa a mão de Josh, o fazendo levantar da cama.

— Vem dançar comigo.

Ele a toca suavemente na cintura enquanto ela passa os braços ao redor dos ombros do namorado. O ritmo lento e intenso da música os guia de um lado para o outro. Ela, com calcinha e sutiã, não se sentia nada constrangida na frente do Josh. E ele, sentindo o doce perfume de sua namorada, reverencia ao intento de Diana.

Os dois se beijavam de modo desajeitado, devido à desajeitada condução de Josh naqueles movimentos. Apesar de ostentar um belo controle de seus passos em campo quando está numa de suas partidas de futebol com os amigos, demonstrava o extremo oposto quando se tratava de dança. Diana não parecia se importar com aquilo, já que ela apoiava os seus pés sobre os pés do namorado enquanto ele balançava para os lados. Estava feliz pelas quatro paredes erguidas ao seu redor e assim trancar os olhares julgadores do lado de fora, coisa que ele não tinha controle em campo. Ali se sentia livre, completamente livre do escrutínio olhar humano.

 

I hope you're happy for all of the misery you've made

And I hope it follows you down to your grave

You're gonna carry that weight

For all the misery you've made

 

 

Jake bloqueia seu celular o joga sobre a mesa com uma expressão cismática. O encara esperando uma resposta que não chega. Seu quarto parecia mais vazio do que nunca, apesar de estar cônscio de que nada faltava. Rapidamente associou esse sentimento ao frio na barriga que anda sentindo e ao sentimento de ansiedade pelas peças ausentes do seu quebra-cabeça hermético, porém logo tentou se acalmar.

— Ele desligou o celular. – Diz sentando-se na cama.

Melissa, que estava ao seu lado, folheava as páginas do caderno que roubara da casa de Mac. Muitas das informações contidas ali pareciam informações soltas, como um bloco de anotações – onde Mac anotava coisas importantes para reescrevê-las de forma mais contextualizada depois num arquivo mais completo. Contudo, apesar das estranhas direções as quais o caderno lhe levava, Melissa se pegava cada vez mais enlaçada em cada uma das teorias que apresentadas.

— Ele quer um tempo pra ele, Jake. Não podemos força-lo a nada. – Ela ajeita uma mexa de cabelo para trás da orelha. Alguns fios continuavam soltos apesar de Melissa ter ajeitado seu rabo de cavalo três vezes.

— Não temos tempo, Mel. Essa é a última coisa na qual devemos nos acomodar.

Melissa farejou a apoquentação do namorado no ar quando seu rosto começou a ferver.

— Ok, Jake. Você nervoso também é última coisa que precisamos agora.

Ele a observa com ternura e assente com os olhos.

— O que achou aí? – Apontou para o caderno.

— Muitas coisas sobre o voo 180 e mais coisas sobre outros acidentes bizarros.

— Deixa eu ver. – Ela fecha as páginas antes que ele pudesse tocar.

— Vamos dormir. Se começarmos a pensar nisso de novo, vamos passar a noite inteira acordados.

— Podemos descobrir alguma coisa. – Ele tenta agarrar o caderno, mas ela o arremessa até uma poltrona ao lado da janela, num ponto onde a luz da lua não iluminava.

— Quantas vezes você teve uma resposta depois de uma noite acordado? – Melissa não deixa espaço para uma resposta e logo prossegue com insistência. – Nunca. Noites em claro não ajudam e nem trazem respostas, só atrasam.

Jake então percebeu seus próprios olhos cansados, mas não conseguia deixar de pensar em todo o plano macabro que a morte estaria pondo em ação enquanto estiverem dormindo. Dormindo. Ele podia morrer enquanto estivesse dormindo. Qualquer um dos seus amigos poderia morrer durante o sono, se esse fosse o plano. No momento mais vulnerável que qualquer pessoa poderia estar. Seria uma covardia, seria uma vitória sem uma batalha, a perda de uma segunda chance. E Jake queria lutar. Não se pode ter paz sem guerra, e assim como a sua vida valia o seu sangue, ele não conseguiu apagar o medo que o fez temer o próprio sono.

Tudo isso está mexendo com a minha cabeça. Fechou os olhos e sentiu Melissa acariciar seus cabelos e abraça-lo forte. Ela era seu porto seguro, sem dúvidas. A brisa correu pelo quarto como beijo da boa noite.

 

 

A sombra negra se estendia sob a luminosidade dos postes de luz do estacionamento aberto atrás da Rice Street, perto da loja da Sears. Os bancos de concreto em frente ao edifício estavam úmidos com o sereno, apesar de estarem sob uma cobertura de tijolos justamente postos. A mulher fechou a porta de seu carro e olhou em volta. O lugar estaria deserto se não fosse pela presença de um Audi preto estacionado no fundo, camuflado pela escuridão que foi concebida por altos arbustos e pedras enodoadas de musgo de um lago não natural.

Ela apertou seu suéter de tricô alongado cor de laranja e caminhou a passos mais que cuidadosos em meio àquelas sombras feitas por ciprestes que ornamentavam as laterais do estacionamento e divisórias de concreto – estrategicamente postas sobre algumas linhas amarelas desenhadas no chão para determinar vagas para deficientes e idosos. Estava agarrada com uma pasta de plástico vermelha de forma que estaria pronta para acertá-la na primeira criatura que aparecesse para surpreendê-la.

Ao chegar perto o bastante do veículo num ponto onde conseguiria tocá-lo, um calafrio percorreu sua espinha. A mulher puxa a maçaneta da porta do passageiro e entra tentando manter em seu rosto a expressão mais assertiva que poderia ter naquele momento. O homem sentado em frente ao volante a encarou de volta com a mesma expressão, porém duplamente mais firme, e começou a falar assim que a mulher fechou a porta.

— Resolveu invadir a minha festinha da madrugada?

— Você quem me ligou. Eu disse que precisava de mais tempo.

— Não acha que já teve tempo o bastante? – Respondeu ele, mais rápido do que ela imaginou. Talvez ele já previsse a resposta dela ou talvez já previsse toda aquela conversa, e estivesse preparando todas as réplicas no tempo em que a esperava ali sozinho.

Ela pensou duas vezes antes de responder, procurando não alterar o rumo da conversa. Os grandes olhos do homem parecia não ter fundo e a voz carregada num tom maciço fazia eco no carro, o que provocava um sentimento de intimidação na moça. Ele não desviava o seu olhar dela, embora uma de suas mãos parecesse inquieta enquanto ele a apoiava na parte de cima do volante – movendo-a pela curvatura como se estivesse acariciando um filhote de Chihuahua ou insatisfeito de estar na presença de um ataúde e dando-lhe um adeus ligeiro.

— O que você tem pra mim, Sondra?

Ela entrega a pasta nas mãos dele assim que ouviu o seu nome.

— A Melissa tem perfil em três redes sociais diferentes, mas ela não usa duas há um bom tempo. A maior parte das informações que eu conectei está no segundo arquivo, um compilado das relações que eu enxerguei entre ela, o Jake e o resto dos amigos deles. A maioria ainda está na forma original, não achei que quisesse relatórios ou algo do tipo. Não consegui achar informações suficientes sobre a amiga deles que você mandou o nome e não há nenhuma conexão com a morte do fotógrafo. Ainda está...

— Vago! Ainda está muito vago. – Ele a interrompe enquanto passava o olho pela primeira relação de folhas unidas por um grampo de papel vinho. Ele passa as folhas procurando algo em específico. – E o Jake? O que tem dele?

— O Jake não tem rede social nenhuma. Eu procurei em todos os lugares.

Ele a atira um olhar de terrível provocação. Obviamente, ele queria mais resultados do que o que ela estava entregando. Talvez algo diferente ou suficiente, ela não conseguiu distinguir ao certo. A pouca luz dos postes que entravam no carro, batia em suas costas e clareava parte do colo do homem ao seu lado. Ela o viu folheando enquanto ele se inclinava para frente e semicerrava os olhos conforme a luz ia clareando o seu rosto – enredando o próximo golpe.

— Mas... Que rede social? Essa é a sua única fonte? Eu coloquei ele na sua mão, Sondra, e você não consegue nem articular a porra de uma conversa. Olha essas merdas que você me trouxe. – Ele ergue um print de uma página do instagram de Melissa, um que continha fotos de Jake, Diana, Josh e Brandie juntos. – Eu te disse quando ele estaria na delegacia, você não conseguiu falar com ele?

— Eu tentei convencer ele a falar, mais de uma vez. Mas ele tá sempre com a Melissa. Ela não quer que eu me meta. Mas eu sei que ele quer falar.

— A porra da sua função é se meter. Não é isso que jornalistas fazem? Tomam conta da vida dos outros que nem urubus atrás de carniça. Ou sei lá que merda você é agora. Isso aqui não presta pra nada. – Ele junta todo o material e o arremessa contra o rosto de Sondra. Ela tenta se defender num impulso de recuo, mas ele investe seu corpo contra o dela logo em seguida, envolvendo suas mãos ao redor do pescoço dela.

Ele avança seu rosto de encontro ao dela e sussurra ofensas degeneradas a fim de descarregar sua raiva. O homem bufa com tamanho descontentamento, exprimindo desaprovação tanto por parte de Sondra e sua clara ineficácia, quanto de si mesmo por ter alguma vez cogitado delegar qualquer serviço à Sondra. Pensou em seguir em frente e estrangula-la até a morte, pensou em chuta-la para fora e passar com o carro sobre seu corpo inútil, pensou em fingir que aquele encontro nunca tinha acontecido. Qualquer uma das alternativas parecia justa. Justa o bastante que para não sentisse remorso depois, uma vez que os dois nunca entraram em acordo sobre as regras da sua cooperação mútua ou sobre as falhas de uma das partes.

Sondra solta um gemido silencioso quando ele aperta ainda mais seus dedos contra sua garganta. O rosto dele agora parecia estar possuído por uma versão mais imprudente do homem que a recebera no carro minutos antes, com uma expressão dominada por um ódio incubado. Ele a pressiona contra o vidro da janela e ela tenta puxar os punhos dele com as unhas. A comoção violenta se dardejava de dentro dele sem qualquer aviso prévio ou algo que ela poderia intuir anteriormente, era algo que ela nunca vira de forma tão concentrada.

— Ele... Ele quer falar... O Jake... Ele vai falar... – Sondra tentava dizer com as forças que conseguiu reunir no meio do desespero. Ela se debatia contra a porta, ao ponto das suas pernas esbarrarem no assento do motorista. – Barry! Barry! Ele vai falar! – Ela sentia dificuldade de respirar até que sentiu os dedos dele afrouxando. Barry Wong a soltou e voltou ao seu assento, ajeitando o colarinho bagunçado. Sondra tossiu desesperadamente e puxou o ar com força.

— Você sabe o que eu quero. Me dê os nomes.

— Por que você fez essa merda? – Ela disse em meio as tosses. – Sabe que eu estou tão interessada nisso quanto você! – Ela tentava gritar, mas sua garganta começou a doer. – Era pra ser uma parceria, seu babaca! Eu preciso dele também, eu preciso dessa história. E eu só preciso de mais tempo. Eu vou te dar esses malditos nomes.

— E eu preciso dos nomes corretos. Sem erros. – Ele encarava o estacionamento. – Está ouvindo? Não pode haver erros.

— Pra que isso? – Ela continua esfregando as mãos geladas no pescoço. Aquela noite trouxe uma corrente de frio que permeava por toda a cidade, fazendo com que a aparição de leves garoas não fosse algo imprevisto pelos moradores. Mas ainda assim, Barry Wong não se importou em ligar o aquecedor dentro do carro.

— Não é da sua conta.

Desde que Barry e Sondra planejaram uma estratégia de abordar Jake para entender a noite do acidente, Sondra recebia uma mensagem por dia como lembrete do policial de que ele exigia urgência. Acordaram numa troca de favores que teoricamente iria favorecer ambos os lados. De início, Sondra acreditou ser uma boa oportunidade que a vida lhe dera, mas começou a perceber que as intenções de Barry Wong se mostram mais suspeitas do que ela sequer intuiu.

— Se não confia em mim, por que me chamou pra isso?

— Eu sabia que ele não ia dizer tudo na delegacia. Como poderia? Ele não tem noção do que tá acontecendo. Eu preciso saber tudo sobre aquela noite e os envolvidos. O garoto não vai se abrir pra mim, não vai falar com a polícia, e esse era o seu papel nisso. Seu namorado me disse que você sabe ser suasória. Então use a porra da sua mágica. Eu preciso pegar ele antes que ele escape disso. Antes que todos escapem disso.

Barry dizia sem olhar para Sondra, proferindo palavras que não lhe faziam sentido.

— “Isso” o que? Do que você tá falando?

Ele balança a cabeça negando.

— Não tem a ver com você. Nada disso tem a ver com você. Quanto menos souber, é melhor. Faça apenas o que eu te pedi e você terá a sua história. Nos mínimos detalhes. Vai ter a minha influência e tem a minha palavra que ficarei do seu lado após isso. Mas eu preciso dos nomes deles, de todos eles. E da visão do Jake.

Sondra se assustou com o sentido que aquele encontro havia tomado, porém decidiu não fazer mais perguntas. Ateou-se somente a concordar com seja lá o que ele estivesse sugerindo e continuar sua pesquisa de forma oculta. 

 

— • —

 

Ela esperou uns dez minutos após a saída de Barry para dar partida. Assim que fechou a porta, encarou o carro dele do outro lado. Não podia vê-lo através das janelas escuras, mas sentia os seus olhos cravados nela de algum lugar escondido naquelas sombras. Decidiu não sair na frente, então ligou imediatamente o rádio e deixou que a vibração do antigo jazz de Sarah Vaughan substituísse o temor momentâneo que estava sentindo. I was a stranger in the city. Lentamente o carro dele vagueou ao redor de Sondra. Os vidros estavam fechados, os faróis apagados e de dentro do outro veículo, nenhum ponto de luz era visto. Sentiu-se acuada como um gato preso numa gaiola e sem perceber estava prendendo a respiração, com receio de que com qualquer descuido, cada parte do seu corpo poderia se despedaçar em micropartículas. Barry era uma onda possante de ameaça e irreverência, e ele a atingiu com força. Estava submersa em sua autoridade. Contudo, sabia que ele era também uma nascente de sugestão e total influência. Sua cerimônia (ou falta dela) poderia, afinal, ser interpretada por qualquer cor que Sondra decidisse atribuir. I had that feeling of self-pity.

Achou que se sentiria mais segura quando Barry deixasse o estacionamento, mas seu tiro saiu pela culatra. A sensação de agonia cresceu vastamente quando não soube mais onde ele estava. Ou onde poderia estar. Barry poderia estar esperando mais à frente, escondido entre os ciprestes, pronto para quando ela tropeçasse nos capuchos de musgo e se estirasse vulneravelmente na escuridão. Estava sozinha? Ela e Sarah Vaughan. A foggy day in London town. Had me low, had me down. Deixou que Sarah cantasse por dez minutos. Dez minutos depois de ver o carro de Barry partir.

Começou a andar com o carro e percebeu a notação que estava fazendo, com os olhos não acompanhando os movimentos da cabeça. Uma turbulência, como se ela estivesse passando com os pneus por um juncal, começou dentro do carro, e ela era jogada para cima e para baixo ao mesmo ritmo dos solavancos de uma montanha russa – não por causa do carro, mas sim pela impaciência de deixar logo aquele estacionamento. Olhava todas as janelas, cada canto do lugar, tentando enxergar por entre as sombras. Pedacinho por pedacinho. Assim que saiu do quarteirão da antiga loja de departamento da Sears, desceu a Rice Street.

Passou por centros comerciais e conjuntos habitacionais no caminho de volta à sua casa. Deu algumas voltas a mais pelas quadras mais distantes da delegacia até chegar ao Rice Park, onde começou a seguir um ciclista por alguns minutos – que estava dando suas pedaladas noturnas. Ele circulou o parque, passando pelas trilhas à beira-rio. Durante o inverno as árvores eram enfeitadas e o logradouro ostentava a paisagem do País das Maravilhas, com os bosques e parques recheados de pisca-piscas, mangueiras luminosas led, velas elétricas e enfeites temáticos. Grande parte desses eventos é constituído para encantar os turistas, porém as residências da cidade de Saint Paul seguem no formato o qual os moradores mais gostavam: espaços visualmente agradáveis, sempre confortáveis e acolhedores, e funcionais.

Apesar de Minnesota ser conhecido como o Estado do Hóquei, Saint Paul ostenta o Allianz Field, um famoso estádio em que ocorrem os jogos de Minnesota United FC. O chamado “lar da Major League Soccer ” – que atrai muitos turistas a fim de assistir aos seus jogos, uma vez que os moradores, financiadores e publicitários iniciaram uma disputa com o resto do estado alegando uma história mítica sobre as Mobelha-Grandes e o caloroso verão de Minnesota. Uma fábula que atraiu a atenção dos tabloides e virou títulos de muitos programas com conteúdo informativo. De certa forma, ajudou no turismo da cidade, porém o que ainda mais atraia a atenção eram as festividades do inverno.

Não soube ao certo quanto tempo passara flutuando pela cidade depois que o ciclista subiu o viaduto para entrar na rua do bosque Crosby Farm. Concentrou-se no seu caminho e desviou de volta à estrada principal, passando por terrenos abertos e lojas fechadas. Não demorou muito para que aquela preocupação voltasse a tomar presença ao seu lado, com Barry Wong expelindo seu hálito contra o seu rosto. Uma amargura deu um nó em sua língua e a fez pensar no que realmente significou aquela conversa. Não era sobre ela ou ele. Não era sobre o acidente na pista Howclover, tampouco sobre seus planos secretos. Jake? Melissa? Barry não pareceu se importar muito com eles. Era como se o rapaz fosse uma distração. Um pretexto. Sua pesquisa, seu esforço, não valia de nada. Essa não era a verdadeira intenção. Com certeza não era. Será que havia planos secretos por baixo dos planos secretos?

Sondra desviou o carro num susto assim que viu um guaxinim saindo de trás de uma lata de lixo. Isso a fez despertar por uns segundos. No carro, Sarah Vaughan ainda cantava, ainda tentava acalmar a sua plateia até que chegasse à casa. How long I wondered? Could this thing last? Checou novamente os retrovisores para confirmar que não estava mais sendo seguida. Mas ela estava sendo seguida?

 

Abriu a porta de frente e a fechou com todo o cuidado. Retirou os sapatos e os escondeu sob um módulo móvel de madeira ao lado da entrada. Depositou suas chaves num cinzeiro de porcelana branco e caminhou na ponta dos pés até a cozinha. Abriu a porta que dava para a área de serviço e deixou que o cachorro entrasse. Ele passou correndo pelo meio das suas pernas abanando o rabo, rolou três vezes sobre um tapete felpudo tentando se aquecer.

— Ei, La Taza. Cariño, ¿tienes frío? – Disse Sondra, apalpando a testa do cachorro com uma mão e com a outra o acariciando na barriga. – Se me olvidó el traje. Fue mi error, perdón por eso. – La Taza pareceu não se importar muito. Levantou-se e passou a língua pelo pescoço da dona num gesto de agradecimento.

Ela conteve um riso, fazendo o mínimo de barulho possível. Tinha prendido o seu Bull Terrier antes de sair naquela noite. Com pressa, o enleou pela coleira ao pé de um armário onde descartava materiais de limpeza e sacos de lixo. Torceu para que La Taza não fizesse muito barulho na sua ausência, temendo que seu namorado acordasse no meio da madrugada.

— En silencio, La Taza.

Por breves segundos, sentiu uma adrenalina passar pelo seu corpo como se estivesse numa missão secreta – o que, de fato, poderia considerar, uma vez que o sentido de “missão secreta” poderia ser facilmente adaptado e atribuído àquela situação sem nenhuma cordialidade. As coisas são como são. Isso é o que é. Sem espaço para especulação ou subterfúgios dissimulados. Então deu prosseguimento. Os pés, ainda dentro das meias, se arrastaram até o quarto. La Taza continuava acompanhando, ansioso para se infiltrar entre as cobertas.

Na cama, o corpo do seu namorado estava estirado de bruços – metade sob o lençol, metade apoiado num terceiro travesseiro, com um dos seus braços pendendo na beirada do colchão. Ela sentou-se ao lado dele e trouxe delicadamente La Taza no colo. Deixou que ele procurasse um lugar que achasse mais confortável, então pôs os pés para baixo da coberta.

— Hum... Você saiu, querida?

Ouviu o namorado murmurar sem se mexer. Sua voz estava baixa e com muita sonolência. Parecia que ele estava num sono vasto, mas não tão firme quanto achou que estaria. Ela olhou em volta como se estivesse procurando alguma coisa. Suas roupas dos dias anteriores estavam penduradas num cabideiro de madeira, alguns jornais e revistas estavam espalhados em cima da escrivaninha e seu armário permanecia com uma das portas entreaberta, como ela deixa desde que um dos parafusos se soltou e a madeira pende sempre que Sondra tenta fechar por completo. Do outro lado do quarto, onde ela habitualmente deixa que o namorado coloque as suas coisas, estava organizado. A mochila dele estava perfeitamente alinhada com uma cômoda, entre uma parede e uma estante, fora do caminho. O uniforme dele estava dobrado, tão milimetricamente quanto uma pessoa TOC faria. Pendendo, sobre sua mochila, estava o coldre vazio do homem. E provavelmente, dentro de uma das gavetas, estava o revolver dele. Guardado.

Poderia ignorar a pergunta, mas sabia que ele estava escutando e esperando por uma resposta. No dia seguinte ele retomaria o assunto, sabia disso, então deixou tudo preparado mais cedo. Tinha uma desculpa qualquer delineada em mente e La Taza era seu cúmplice. Olhou para o seu cachorro e o viu se aninhando aos pés do namorado.

— Ah, te acordei? – Resolveu responder. Mesmo que ele não estivesse escutando, preferiu garantir que houvesse um diálogo, ou algo similar a isso, para fortalecer um provável inquérito. Ela se apoiou nas costas dele, com uma das mãos passando pela sua cintura. – La Taza estava arranhando a porta. Levei ele para dar uma volta no prédio. Meu bebê estava apertado.

Ele levantou a cabeça e ela pôde ver seus olhos cansados, se apertando para conseguir enxergar. Sondra deu um beijo na bochecha dele e o namorado procurou La Taza pela cama, o achando com a barriga para cima entre os seus pés. Os dois conseguiam ouvir a respiração do cachorro, com as narinas secas e o peito inflando.

— E ele tá melhor agora?

— Está sim. Bem mais aliviado.

Nesse momento, ele balança a cabeça confirmando que entendeu. Talvez tenha acreditado ou talvez apenas não estivesse disposto a desconfiar. Ele volta a deitar a cabeça no travesseiro e entrelaça seus dedos com os dela sob o lençol.

— Boa noite, Sondra.

Ela assente, mesmo sabendo que ele não a vê.

— Boa noite, Jack.

 

 

A grama estava alta. As extremidades superiores batiam na altura dos joelhos de Jake enquanto ele se movia. Caminhava lentamente por uma antiga trilha que costumava fazer anos atrás. Ele chegou à beirada e ficou parado de pé na encosta, completamente coberta pelo verde ardente da relva. Mais à frente, depois de um largo terreno, uma casinhola se erguia. Toda de madeira com uma entrada ampla de areia e cascalho. Ele se ajoelhou e desceu cuidadosamente o declive, tateando a terra e se segurando em algumas raízes que escapavam do solo. Na parte inferior, Jake saltou sobre um arroio estagnado para tentar alcançar o outro lado. Aterrissou com uma cambalhota entre os juncos à frente e levantou-se com o cotovelo ralado e o pescoço sujo de terra. Ele esfregou as palmas uma na outra e continuou andando.

Libélulas se aproximavam conforme ele passava pelo centro do terreno. Elas se apossavam do local esvoaçando ao redor. Jake chegou naquela casa e percebeu que aquilo era, na verdade, uma loja. Uma floricultura. Rosas enfeitavam a entrada em vasos de cerâmica personalizados, e plantas se estendiam para fora das janelas como se estivessem convidando-o para entrar.

Um sino tilintou anunciando a chegada de um cliente quando Jake empurrou a porta. Por dentro parecia bem maior do que ele tinha observado de fora. As paredes possuíam estantes de cima a baixo, recheadas com vasos de porcelana – alguns com flores e outros não. Duas longas mesas de, mais ou menos, quatro metros se estendiam até o fundo, onde um balcão simples separava o resto da loja do local de pagamento. Nas mesas, vários arranjos eram visíveis. Begônias e calêndulas davam cor na mesa do lado esquerdo. No direito, amarílis e moreias. Vasos enfeitados e utensílios de jardinagem estavam dispostos nas mesas com etiquetas de preço.

O que chamou a atenção de Jake foi a solidão que aquele lugar parecia ter. Não havia ninguém atrás do balcão ou que ele pudesse ver pelo corredor que se formava entre as altas flores sobre as mesas. Ele dá passos lentos em direção ao balcão até ver a sombra de uma corporatura entre um arranjo de amarílis. Ele para em frente à silhueta. A figura estava em silêncio, e ele pôde vê-la passar a palma de uma das mãos pelos caules e pétalas, afastando-os. Seu rosto ficou visível. O cabelo escuro, os olhos comunicativos, a boca fechada num sorriso e a barba por fazer. Ele era uma memória antiga, uma lembrança que se alojou naquele lugar como um souvenir guardado numa caixa de sapatos. Está vivo. Está morto. Está tão perto. Está tão longe. Seu irmão estava sorrindo, com os olhos brilhando e uma felicidade que irradiava do rosto.

— Jake! – Disse ele, alargando ainda mais o sorriso. Sua voz estava rouca, porém se mantinha estridente, assim como lembrava. – Maninho, você demorou pra chegar.

O fantasma estava bem ali, nas restantes recordações que ainda se confundiam com a imaginação, movendo-se através das flores. Jake não foi contaminado por sua animação, porém não foi pego de surpresa. De alguma forma, sabia que ele estava ali. Estava esperando por ele. Esperando por um encontro. Um viajante do tempo que não envelheceu nenhum dia, com as mesmas manifestações sedutoras de uma juventude promissora. Mas, ainda assim, um fantasma.

— Eu nunca sei como chegar. Eu simplesmente... Apareço aqui. – Jake faz uma pausa e espera o irmão dar a volta na loja para estar frente a frente com ele. Pensou que ele poderia tentar explicar aquela dúvida, mas não parecia uma questão a qual deveria dar muita atenção. – E você, Levi? Como chegou até aqui?

Seu equilíbrio estava perdido e, talvez, seu irmão fosse um campo magnético que o puxasse toda vez que ele precisasse se reestabelecer. Se alguém tivesse de fato o observando, o que veria? Um homem desorientado, completamente sem perspectivas, que estava, mais uma vez, se rastejando em direção ao único abrigo para o qual tinha esperanças de encontrar o conforto que queria. No meio do nada, sentindo-se vulnerável e solitário. Mas não tão sozinho. Levi sempre estava ali quando ele o procurava.

— Eu vim com o meu carro, oras. – Ele se aproxima o bastante para puxar Jake para um abraço.

— Não tem carro algum lá fora.

Levi o encara com o tal sorriso congelado no rosto.

— Do que tá falando?

Agora Levi mudou sua expressão, exibindo curiosidade com certo nível de confusão. Ele era um ponto cristalizado em algum momento do infinito. Aquela imensidão profunda que assombra Jake desde o acidente na pista Howclover, onde mora um megalodonte ceifador. O megalodonte. O qual bateu as barbatanas e passou rondando pela mente de Jake. Levi estaria dentro dele? Assim como Marcie? Diana e Harper? Ele está acordado e esperando. Ou Levi não teria nada a ver com isso, e era apenas aquele ponto cristalizado. Ou era uma figura que corria de ponta a ponta nesse infinito, tão rápido que Jake não conseguia o ver se movendo.

— Nada. – Desistiu.

Levi deu um giro e acompanhou Jake por entre os arranjos, tagarelando sobre como o verão tinha sido importante para que eles chegassem até ali. No ano em que Levi conheceu a pessoa que dizia ser “o amor da minha vida”. Ele ia até aquela floricultura toda semana e preparava um ramalhete, decorando com diferentes tipos de flores – mas sempre realçando as flores de campo, como astromélias e lírios. Jake sabia que Levi estava verdadeiramente apaixonado, ele poderia encher um jardim com todas as flores que deu a Justin.

O céu estava da cor de ouro quando Jake e Levi corriam de bicicletas pela trilha alta atrás das cachoeiras escondidas na reserva natural em Battle Creek. As rodas faziam marcas na terra, deixando um rastro de poeira para trás. As copas das árvores prolongavam sombras alinhadas à vereda na medida em que os irmãos subiam até topo do alcantil. Eles deixaram as bicicletas de lado e se sentaram perto da beirada. Foi depois de dar o último gole na garrafa de água que Levi mencionou Justin pela primeira vez. Jake se espantou com o relato de Levi a princípio – não sobre o namoro dos dois, mas sim sobre o longo período de tempo que ele passara com Justin sem ter dito nada ao irmão. Jake se perguntou na hora quantas maneiras diferentes Levi teria pensado naquela conversa ou se existia alguma incredulidade por parte dele em relação à confiança no seu relacionamento com o irmão. Qualquer que seja o motivo de tanta demora, Levi se abriu com Jake naquele dia. Por segurança. Por esperança. Por estupidez. Disse tudo o que estava preso no peito.

Jake semicerrou os olhos sob a luz do sol enquanto escutava. Levi não fora dramático, sua voz negava qualquer tom estrambótico que poderia – acidentalmente – aparecer. Não foi uma revelação surpreendente, além da maneira como Levi resolveu seguir com o seu relacionamento com Justin. Então, sem ao menos perguntar por que o irmão não havia mencionado o namorado antes, Levi já o respondeu com sinceridade. Jake não era um inimigo do que era correto e verdadeiro, mas foi atraído por um vislumbre de hesitação oculto entre as palavras dele. O que eram eles um para o outro naquele momento? Por um segundo, sentiu-se deslizando por uma situação de confissão, como se algo estivesse errado com Levi e ele precisasse de amparo – um sentimento cuja natureza Jake não poderia entender, então decidiu ignora-la, dando a Levi um sinal de atenção, receptividade e respeito.

— Por que está me contando agora?

— Você foi a primeira pessoa pra quem eu me assumi anos atrás. Foi libertador pra mim. Mas depois não fica mais fácil. Eu ainda carrego algumas inseguranças. Elas vão me matar se eu não aprender a lidar com essa merda toda. – Disse ele olhando para o panorama de árvores, aves e algumas pessoas que faziam trilhas lá em baixo, todos tão distantes que pareciam uma mini maquete. – Só os jogadores conseguem sobreviver. E eu quero viver.

Um esquadrão de gafanhotos vermelhos apareceu marchando em direção à falésia, expulsando Jake e Levi dali. Os dois aceleraram em suas bicicletas de volta à trilha principal, apostando corrida. Uma semana depois, acompanhou Levi até uma antiga floricultura. Ainda estava de pé depois de anos aberta. Jake e Levi caminharam entre as mesas, passeando entre cada uma das estantes. Levi andava na frente, com olhos atentos, deixando que as cores mais vivas chamassem a sua atenção. Jake estava atrás passando os olhos pelas páginas de um livro que encontrou perto da porta da frente. Ali dizia que flores eles poderiam encontrar na loja, fotos, sua classificação, nomes científicos e significados – uma espécie de catálogo mapeado. Levi já foi até lá mais vezes do que poderia contar, aquele livro não lhe era mais necessário, apesar de deixar que Jake recitasse nomes e curiosidades que nenhum dos dois sabiam.

Mais tarde, naquele dia, Jake acompanhou o irmão até um sobrado branco com as paredes descascadas no leste da cidade. Justin os recebeu na porta. Estava sozinho, mas acompanhado de uma mesa de jantar preparada e três taças de vinho antecipadamente servidas. Justin não era muito diferente do que Jake imaginou, uma vez que seu irmão sempre teve uma queda por homens hispânicos. Ele colocou as flores de Levi perto de um altar religioso que construíra nos fundos da casa, onde também estava – cogitou Jake – outro buquê dado antes pelo seu irmão. Justin mostrou sua estante carregada com uma incrível coleção de livros exotéricos, uma coleção de CDs antigos de Enrique Bunbury e Conchita Bautista, e falou um pouco do seu trabalho voluntário num abrigo da cidade.

Algumas semanas depois, Jake e Levi voltaram à floricultura com a mesma missão da última vez, mas agora com os papeis trocados. Uma atendente, filha da dona, os guiou até uma floreira cheia de peônias e os deixou sozinhos. Eles se entreolharam, decifrando-se.

— Acha que ela vai gostar dessas?

— A Melissa adora peônias, maninho. – Disse Levi com animação em seu tom de voz. – Ela disse quando a gente passou em frente à agência da Blair Arcade. – Lembrava-se das peônias enfeitando a entrada antes do portão principal, sob um toldo tão verde quanto musgo.

— Me lembro de ela ter dito “begônia”. – Replicou Jake, um pouco confuso.

— Não. Peônias, com certeza. – Levi ergueu algumas mudas e entregou nas mãos de Jake.

Era a forma que se lembrava da imagem de Levi. A última vez que estiveram ali, naquele lugar. Com a animação vibrante, o sorriso largo e rodeado de flores. Não que fossem muito especiais, mas elas ocuparam um espaço grande na vida do irmão depois de conhecer Justin.

— Essa aqui é perfeita! – Disse o fantasma. Levi agarrou uma prímula e entregou a Jake.

— Pra que?

— Como assim? Esqueceu do seu aniversário de vocês?

Jake pegou a flor – mesmo sabendo que o seu aniversário de namoro não estava nem perto de chegar – assentindo com a cabeça para que suas palavras não quebrassem aquele roteiro. Um script previamente concebido na vida concreta, no mundo real. Sentia-se bem quando Levi estava por perto, mas detestava viver aquela reprise. Era como assistir ao mesmo episódio do seu programa favorito tantas vezes até que perdesse a graça. Perdesse o sentido. Mas tinha algo de diferente.

— Por que uma prímula? A Melissa gosta de... – Resolveu fazer um teste improvisado. – Begônias.

— Ela gosta de peônias. – O fantasma decifrou a charada rapidamente, como se houvesse um mistério maior do qual precisasse de mais atenção. Ele não desconfiava de Jake, mas estava sendo visivelmente cauteloso. E, assim como o irmão, ele também estava fazendo algum tipo de teste. – Na verdade, a prímula é pra você. Elas representam a juventude.

— Que irônico. Você dizer que ela é perfeita.

— Por que acha isso, maninho? – Ele cruzou os braços, com um sorriso provocativo nos lábios. Estava esperando um retorno de Jake, como se houvesse uma resposta certa (ou algo próximo disso) que Levi desejasse ouvir.

— Você sabe. O que aconteceu com a gente. Com você.

Levi ouviu cada palavra com atenção, porém se arpoou firmemente ao conceito antes concebido de forma comedida, como se aquilo fosse algo que ele tivesse visto naquela flor. Deu, então, uns passos para trás e andou pelo caminho oposto.

— Isso agora não importa, Jake.

Ele caminhou ao lado das moreias, deslizando os dedos pela mesa. Jake o seguiu, tentando acompanhar os seus passos. Levi se recusava a falar sobre ele, como se isso negasse qualquer evento que o passado marcava, mas, para Jake, a sensação de afogamento era recorrente sempre que seu irmão aparecia na sua frente. Às vezes pensava se era realmente Levi quem não queria retornar a cutucar as antigas feridas. De qualquer forma, seja qual dos dois estivesse recuando, a dor permanecia presente no campo de visão de Jake, como um grão de poeira que flutuava em frente aos seus olhos, magnífico, incômodo, demoníaco.

Os dois passaram pelo balcão aberto e entraram numa porta que dava num corredor escuro. Tinham mesas entulhadas nos cantos, com teias de aranhas enredando os objetos. Plantas mortas se desdobravam pelas paredes e cantos. Pétalas murchas estavam espalhadas pelo chão. A passagem se estendia até um ponto que Jake não conseguiu medir devido a escuridão, apenas tomava cuidado para não tropeçar em nada enquanto seguia Levi – que parecia estar seguindo uma corrente de ar fresco que soprava do fundo.

— Aqui. – Levi ergueu um pedaço de tecido que caia de uma viga de madeira acima de uma parede, revelando uma saída. Uma claridade inundou a escuridão e os dois atravessaram.

O sol estava quente contra seu rosto. Tanto que fez Jake ter uma visão vertiginosa até conseguir ver Levi claramente de novo. Estavam sobre um caminho de seixos entre sebes que cercavam a trilha até se abrirem num jardim colorido. Cambaxirras se entrecruzavam no ar enquanto chilreavam ruídos específicos. Uma garça-azul bicava um lago no centro do jardim, atrás de peixes pequenos.

Ao redor das sebes, bosques limitavam a visão de Jake quanto a extensão do lugar, mas o horizonte em chamas se erguia tão forte que nada poderia bloquear a sua imensidão. Diferentes tipos de ruídos rebentavam de alguns grupos de árvores, como se os guardiões da mãe natureza estivessem escondidos nas copas mais densas.

Levi parou na curva da sebe e um coelho branco quicou até seus pés. Ele o ergueu com delicadeza enquanto afagava as orelhas compridas.

— Isso é surreal. – Jake não escondeu seu espanto. Perdeu as contas de quantas vezes se permitiu fazer essa viagem para visitar o irmão no lado mais temido da sua memória, e nunca soube da existência daquele lugar. Um jardim secreto escondido na porta dos fundos. Não poderia imaginar apenas pelo vislumbre que tinha do alto da colina antes da entrada da floricultura.

— Muito bacana, né? – Ele sorri e da um beijo na cabeça do coelho.

— O que é isso tudo?

Levi pondera antes de responder, talvez por tempo demais, mas se certifica de que Jake o estaria olhando nos olhos quando fizesse.

— É onde você imagina que eu esteja agora.

O sol pareceu ficar mais quente e Jake atribuiu ao calor o mal estar que as palavras de Levi o trouxe. Seria isso? O fim? Para onde vamos, afinal, quando tudo estiver acabado? Cada detalhe, dos mais banais aos menos prosaicos, compondo um retrato de um Éden imaginário. Esse Éden vai arder em chamas se o sol continuar esquentando.

— Você gosta daqui?

— Não vou mentir, maninho. É um pouco solitário. Mas eu fico feliz que tenha se preocupado comigo o bastante para me trazer para um lugar tão espirituoso quanto esse.

Jake não usaria a palavra espirituoso, mas algo em Levi e naquele lugar realmente remetiam à essa impressão. Fosse a energia onírica, fosse o cenário idílico, fosse o som etéreo da sinfonia que os pardais e cambaxirras faziam. Tinha a sensação de estar flutuando, sem nada ao que pudesse agarrar, como uma lembrança prestes a se descolar de uma história antiga. Como nadar e nadar numa imensidão profunda e indecifrável.

— Por que eu estou aqui, Levi? – E antes que ele pudesse tentar dar continuidade à sua charada, Jake contornou seu jeito reticente. – Quero dizer, aqui. Nesse lugar. Eu nunca vim até aqui, eu nem sabia que isso tudo existia.

— Você sabia sim, Jake. Só nunca teve coragem de vir.

— E por que agora?

O vento soprou novamente, porém mais quente. O sol ardia em chamas acima, mas Jake parecia ser o único que notava. Ou se incomodava. Levi caminhou lado a lado com a sebe, o coelho se aninhando em seus braços, com Jake inquieto logo atrás. Desceram uns degraus feitos de tábuas de madeira socadas entre seixos, cascalhos, folhas secas e agulhas de pinheiro. Jake levou um susto quando Levi parou bruscamente e viu uma Melissa petrificada atrás do irmão.

— Só os jogadores conseguem sobreviver, Jake. Eu te disse.

Não sentiu medo, mas enquanto Levi dizia aquelas palavras ele pensou que deveria sentir. A imagem de Melissa estava coberta de kudzu. Apesar da planta cobri-la da cabeça aos pés, ele conseguiu identificar os traços característicos da namorada. O cabelo comprido cortado em camadas, o nariz fino, os lábios curvos. Os olhos cerúleos brilhavam, mesmo que a planta verde escorresse para fora deles.

Ao lado dela, outra figura familiar se fazia presente. Cabelo volumoso, ombros largos, maxilar quadrado e olhos tristes. Não demorou em reconhecer Josh. A textura da leguminosa fazia o contorno nos desenhos que diferenciavam a camiseta da jaqueta. Jake continuou acompanhando com os olhos. Avistou Brandie entre Josh e Diana. As tranças nagô foram sensivelmente moldadas ao redor dos ombros de Brandie, o que a torna inconfundível. Viu Jasmine e Sierra mais no centro. Um homem que, a principio, não soube dizer quem era, mas o reconheceu como Harper depois de lembrar-se da briga que ele teve com Adam quando saíram da pista Howclover. Por fim, ele se viu. Ele estava ali imerso em kudzu, congelado com uma expressão aterrorizante no rosto.

O renque de ícones estava enfileirado numa curvatura, como uma meia lua, ao redor de um lago escuro. Aos pés de cada uma das figuras floresciam cardos cinzas com o queixume onipresente da morte. Alguns melros estavam pousados sobre seus amigos, fazendo os galhos mais frágeis ficarem curvos. Jake não soube o que aquilo significava, mas a imagem do megalodonte o voltou à mente. Nadando entre cada um deles, batendo as barbatanas e escolhendo a próxima vítima.

— Nós vamos morrer? É isso? Estamos condenados?

— Você não está me ouvindo, maninho.

— Eu tô te ouvindo muito bem, Levi! É você que não está dizendo porra nenhuma. – Jake começa a se exaltar. – “Só os jogadores conseguem sobreviver”? Mesmo quando você tava vivo, essa frase nunca fez sentido.

— Não precisa fazer sentido para ser verdade. – Jake não conseguiu ligar a preocupação exprimida nas palavras de Levi com o seu tom de voz. Seu irmão parecia mais calmo do que quando eles se encontraram na floricultura.

— E o que é verdade? Qual é a verdade nisso tudo?

— Isso. – Levi apontou para os ícones congelados encarando Jake. – Isso pode estar mais próximo da verdade do que você imagina. De algum tipo de verdade, pelo menos.

Jake foi tomado pelo pensamento de que talvez ele não estivesse olhando para o lado certo. Ele foi até Levi e não o contrário. E agora Levi estava ali, à sua frente, apontando para algo que ele não compreendia. O coelho soltou um grunhido e saltou dos braços de Levi em direção ao gramado. Ele ziguezagueou os dois irmãos e se aproximou da beirada do lado, nos pés do ícone congelado de Jake.

Ele olha para seu reflexo na água, como se estivesse encarando um doppelgänger no fim de um abismo. Jake conseguiu sentir um suspiro vindo do coelho antes que ele mergulhasse e desaparecesse naquele redemoinho que as ondulações na água fizeram. Não saberia dizer para onde o coelho teria ido, mas pensou que talvez ele estivesse explorando as fronteiras que aquele mundo lhe compunha. Afinal, fronteiras demarcam o fim de algo, mas também é o encontro de dois territórios. Dois universos.

— A verdade será sempre a verdade. Não importa o idiota que a diga.

Ele passou a mão pela testa, tirando um pouco de suor. O sol cintilava em tons flavescentes.

— Eu sou o idiota nesse caso?

— Você é a pessoa que não quer ouvir. – Levi da um sorriso – Que não quer ver, maninho. Você pode impedir. Você pode ajuda-los. Não deixe que ela vença. De novo não. A gente já passou por isso. Eu e você. Não deixe que ninguém mais morra, não agora.

Jake levou a mão automaticamente ao estômago. Forçou os dedos sobre a camisa até conseguir sentir os regos no corpo. As cicatrizes que ele carregava na pele, os sulcos abertos como os cânions rachados graças aos seus instintos recuperáveis. Ele voltou o seu olhar para onde o coelho estava há instantes atrás e observou o seu ícone congelado. Aquela expressão de pavor.

— Onde está Chris?

Levi recua alguns passos, para perto dos degraus de madeira. O som que seus sapatos fizeram quando esmagaram algumas cascas de pinheiro que se soltaram das árvores atrás da sebe fizeram os melros alçarem voo. Todos trinaram ao mesmo tempo, fazendo um barulho dissonante quando atravessaram a cantiga das cambaxirras.

— Agora você vê, maninho? – Disse ele a Jake, sinalizando com a cabeça para onde o coelho tinha desaparecido, como se incapaz de ao mesmo tempo falar e mover-se. – Só os jogadores conseguem sobreviver.

A camisa estava completamente grudada no corpo em decorrência do suor, que brotava dos poros e escorria pela pele sob o sol cada vez mais quente daquele paraíso. Jake estava ofegante e com a respiração um pouco mais acelerada. Ele entendeu o que Levi quis dizer e correu até a borda do lago. Olhou para o que antes o coelho via. Não tinha reflexo, na verdade, mal conseguia ver a água. Era tão escuro. Teve a impressão do céu negro durante a madrugada. Tão forte, tão magnífico, tão infinito, tão brilhante. Ele tocou aquele vórtice imaginário e só então sentiu os dedos molhados.

Mergulhou a mão pela água e balançou no fundo. Não sabia o que pensar ou o que esperar. Era como tirar um coelho da cartola? Não. Não um coelho. As pontas de seus dedos tocaram algo duro, mas áspero. Uma sensação que ele já sentiu antes. Tirou a mão num ímpeto de defesa e todo o seu corpo tremeu. Apesar de estar ajoelhado na beirada, suas pernas amoleceram devagar e ele começou a ficar zonzo.

— Não! Não!

Ele olhou para a água de novo, tentando ver através daquela escuridão. Através da noite. O sol queimava a sua nuca. Os pingos de suor escorriam pela sua testa até o seu nariz. Os olhos fixos na água. Ela brilhava como um fogo-fátuo. Hipnotizava. Mas tinha alguma coisa no fundo. Se debatendo. Tentando gritar. Não é ele, é o medo. O medo deixa a gente hipnotizado, vulnerável, congelado. Ele sacudiu a cabeça e se aproximou da água. Conseguia ver... Quase.

A água fazia ondulações. Algo por baixo dela estava desesperado. Tentando sair. Ele resolveu tocar novamente. Esticou a mão. Prestes a encostar naquela negritude, uma bocarra se projetou para fora. Fileiras de dentes avançaram em direção a Jake e agarrou-lhe pelo pescoço. O sangue verteu de sua boca. Tentou gritar, mas já estava dentro da água. A água negra. Não via nada, apenas a escuridão, invadindo seus olhos. O gosto de sangue na boca. A dor crescendo no seu torso.

 

I’m gonna tell you something

You don’t want to hear

I’m gonna show you where it’s dumped

But have no fear


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Notas finais do capítulo

☠ - Queria falar uma coisa em relação a esse capítulo. O capítulo que eu inicialmente escrevi – que vou chamar de “capítulo original” – ficou bem maior do que esse. Teve quase o dobro de palavras. Por isso eu resolvi dividi-lo. Então, esse final que vocês leram seria o meio do capítulo original. Acontece que na minha cabeça daria para fazer um só capítulo com um número razoável de palavras com tudo o que eu planejei, mas na prática é diferente KKKK Eu sei que essa parte ficou mais lenta e tal, mas é porque eu sou do tipo que gosta de explorar os personagens, dando a eles um background e percorrendo pelo psicológico deles atualmente. Bom, no meu planejamento, tudo o que vinha antes do encontro do Jake com o Levi, era para ser mais pontual e objetivo, mas acabou que ficou maior do que eu esperava. Era pra ter acontecido uma coisa bem especial agora, porém acabou ficando para o próximo. Mas fiquem comigo, pessoal, vem coisa boa por aí KKKKKK
☠ - E o que estão achando? Me digam suas impressões nos comentários :)



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