O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 30
O anjo do sertão




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A hora do almoço havia chegado, mas ninguém se importou em preparar uma refeição. Ao invés de fome, os esperanceiros sentiam um profundo luto. Era meio-dia e, com o Sol em seu ponto máximo, nem mesmo o calor sertanejo era capaz de aliviar o frio que sentiam em suas almas. Debaixo do chão, lá jaziam descansando Valter e João Cego. Duas grandes perdas em apenas dois dias. Abandonados, os vivos só podiam se despedir.

Formando um semicírculo, ali estavam Padre Miguel, José, Beatriz, Lúcio Arcanjo, Breno Farias e até mesmo Levy, o traidor muito bem oculto. Ao centro, duas cruzes feitas de madeira indicavam que ali estavam os dois homens que deram a vida pela Lagoa da Esperança. Entretanto, quem mais externava sofrimento não era José de Lima com seus traumas, muito menos Padre Miguel, que conhecia bem os dois homens. Abaixo de todos e sem mesmo poder movimentar as pernas, ali sofria Valter Júnior, o amado filho do ex-cangaceiro.

Apesar de novo, ele sabia que o trabalho do pai não era algo exatamente livre de riscos. Ainda assim, receber a notícia da morte de seu progenitor – ainda mais vindo da boca de Breno Farias – era algo difícil de digerir. Padre Miguel lhe falou do Paraíso e de tudo que Deus guardava para os homens justos e puros de coração. Mas seu pai realmente fora tudo isso? Haveria o tal aguardado Paraíso? Por mais que fosse uma criança, o pequeno Valter sentiu o gosto amargo dos questionamentos que o amadurecimento traz.

Entretanto, em meio a tanta dor e sofrimento, Breno parecia genuinamente se importar com o bem-estar do menino. Aliás, o pequeno não podia reclamar do tratamento que recebia do político: desde que se hospedara da casa do homem, recebera sempre tudo do bom e do melhor. Inclusive, Clara – esposa do político – tratava-o quase como um filho. Com tudo isso em mente, Valter Júnior recebeu com naturalidade os tapinhas amigáveis de Breno em seu ombro, além de alguns abraços logo em seguida.

Olhando a criança, Lúcio lembrou de seus próprios filhos. A saudade apertou seu peito junto ao luto, mas ele se manteve firme. Em tempos de crise, o líder precisa ter uma postura exemplar. Não poderia quebrar agora, não quando estavam tão próximos de chegar no momento da virada. Tinha um bando para cuidar e os negócios não podiam parar. Vale salientar ainda que ele havia enviado Amanda e Eduardo para que buscassem ainda mais pistas sobre o assassinato de Valter, mesmo que o líder não tivesse esperanças de conseguir nada de novo. “Não posso parar, não posso parar”, repetia mentalmente incontáveis vezes.

Diante dessa gama de sentimentos que flutuavam na atmosfera, levou um bom tempo até que o silêncio fosse quebrado. Enquanto segurava a mão de sua esposa, José de Lima tentava retomar o ímpeto que o permitira enfrentar Marcondes e os pistoleiros de forma impressionante. Entretanto, aquela coragem não parecia ser tão acessível assim. O garoto sentia como se não tivesse o exato controle de sua própria mente e sentimentos, mas sabia que não podia se dobrar ante a natureza misteriosa do cérebro e da alma. Segurando a mão de Beatriz com ainda mais força, ele a sentiu retribuir o aperto. Olhou para os olhos dela e quase leu sua mente: ‘temos que sair daqui”, foi o que ele entendeu.

Olhando para o chão, porém, foi acometido por uma certa culpa. Seria certo abandonar a Lagoa da Esperança? Quer dizer, não seria a primeira vez. Mas também era fato que ele nunca se comprometera a seguir à risca os ideais políticos do padre e seus planos mirabolantes. Ainda assim, José de Lima se sentia em débito. Querendo ou não, Padre Miguel serviu como figura paterna por muitos anos, tendo o ensinado muito do que sabia. Será que Zé não tinha obrigação moral de ajudar o religioso até o fim daquela missão quase divina?

Em meio a tais questionamentos, sentiu o aperto da esposa mais uma vez. Entretanto, não olhou para seus olhos, mas para a barriga. Grande como nunca, a morada de sua criança fez com que os olhos do rapaz brilhassem. Rapidamente, descobriu a quem devia qualquer coisa que fosse. Voltou a encarar os grandes olhos de Maria Beatriz e transmitiu toda confiança do mundo. Quando voltou a encarar as pessoas ali presentes, viu que elas já se dispersavam. De um lado, Breno Farias conduzia Valter Junior até uma carruagem. Do outro, Lúcio Arcanjo conversava com Levy sobre os próximos passos a serem tomados. Quanto a Diabo? O homem não estava em missão, mas José também não conseguia vê-lo. Onde estaria?

Ah, era evidente. Apesar de seu nome infernal, Diabo não sabia lidar bem com o luto. Zé se lembrava de Lúcio ter falado isso em algumas de suas conversas informais nos últimos meses. Longe de todos, trancado em um quarto, o ex-cangaceiro simplesmente encarava a parede vazia. Não havia lágrima alguma em seu rosto, mas sua alma se contorcia em dor e pesar. Ele sabia que tinha perdidos mais do que amigos, mas aliados verdadeiros. Valter, apesar dos anos de separação, o ajudara imensamente. Quanto ao Cego? Ah, Diabo tinha uma boa impressão dele, apesar de que o oposto não fosse necessariamente verdadeiro. Tudo que desejava era uma boa cavalgada pela tarde sertaneja. Entretanto, isso teria que esperar.

Do lado de fora, só restaram José, Bia e o padre entre os vivos. O religioso encarava o horizonte, como se esperasse uma mensagem divina. Quanto ao casal, eles aguardavam o momento certo para falar da decisão tomada. Não precisaram dizer uma palavra para o outro: os olhares e toques foram o bastante. Ao perceberem que, limpando o suor, Miguel já parecia cansado demais do calor, aproximaram-se e falaram em uníssono:

— Padre.

O religioso se surpreendeu com o sincronismo da dupla.

— Zé, Bia — seus olhos cansados examinaram os dois. — Tempos difíceis, hein?

— Muito — Bia começou a falar. — Ainda mais pra quem ainda não chegou.

A garota passou carinhosamente a mão na barriga. Imediatamente, Miguel não teve dúvidas: iriam avisar da saída.

Nós tá... — José iria explicar.

— Já entendi — Miguel interrompeu. — Vocês estão deixando a Lagoa da Esperança. De novo.

Zé e Bia se entreolharam, como se estivessem surpresos pela obviedade dita pelo religioso.

— Não se preocupem — relaxado, Miguel caminhou em direção da sombra de umas das casas. — Isso é de se esperar. Meu Deus, olhem ao redor: a gente constrói, constrói, mas parece que sempre acontece algo que nos derruba. Eu não posso julgar vocês. Ninguém pode.

— Só Deus — Bia disse com certo temor.

— Só Deus — o padre repetiu.

— Sim, mas acho que é certo explicar — um certo ideal de honra havia tomado posse da língua de José. — A Bia tá grávida, né? Bem grávida mesmo. E eu sei que a gente ajuda muito, mas eu não quero que meu fi corra risco. Marcondes já sabe onde a gente vive. Vai que o homi aparece com os pistoleiro de novo?

— Não se preocupe, eu não vou argumentar contra isso — aos poucos, Miguel ia tranquilizando o casal. — É fato que estamos perto de acabar com Marcondes de vez. As páginas que você trouxe farão toda a diferença, José. Mas também é evidente que existem riscos. Viver é um risco, não é mesmo? E quando se tem um filho, uma criança... Bem, eu nunca tive um, mas já ouvi muitas confissões, muitas histórias de vida. Não é mais sobre vocês, é?

— Não — Bia e Zé responderam juntos.

— Eu que não vou discutir com um pai e uma mãe zelosos — o religioso riu.

Aos poucos, com a tensão que se dissipava, José de Lima permitiu-se rir um pouco. Ainda séria, levou mais tempo para que Maria Beatriz também encontrasse graça naquilo tudo. O sequestro e as mortes que presenciara ainda eram eventos muito vívidos para que sua alma se desprendesse de certos sentimentos.

— Padre — o rapaz parou de rir por um momento. — Eu só peço que dê um jeito nisso tudo. Acabe com Marcondes! Acabe com ele! O caba num vale o que o gato enterra.

— Eu vou. Já prometi isso e reafirmo minha promessa — ele deu uma pausa para respirar. — Quanto a vocês, já sei como ajudá-los.

— Como? — Os olhos de Beatriz haviam readquirido alguma luz.

— Sei que vocês não gostam dele, mas Gustavo Água-Santa tem sido um aliado valioso — o religioso ignorou o olhar indiscreto de reprovação advindo de Bia. — Ele tem um terreno longe o bastante e perto o suficiente. Lá tem uma boa casa onde vocês podem morar, ao menos por um tempo. E o melhor: Marcondes Maia nem faz ideia da existência da propriedade.

O casal se entreolhou mais uma vez. Na troca de olhares, era possível perceber a aflição que essa possível aliança com Gustavo trazia. Entretanto, também existia a tão presente necessidade. O fato de haver um filho a bordo também fortalecia esse tipo específico de olhar.

— Nós ficamos muito felizes com a ideia, padre — Zé falou com uma formalidade que ele mesmo desconhecia. — Como fazemos pra chegar lá? E essa questão de chave, essas coisa?

Com muito carinho, Padre Miguel tratou de explicar como tudo funcionava: como chegar, qual a melhor rota, quais as precauções a serem observadas, entre outras coisas. Deu-lhes ainda uma cópia da chave da propriedade, além de ceder-lhes um pouco de água. Com seu lado caridoso mais aflorado, ajudou José a preparar Carlinhos para a viagem e estava lá para se despedir do casal.

— Tomem cuidado e que Deus os abençoe — o religioso fez o sinal da cruz.

Viu os jovens esperanceiros desaparecerem no horizonte. Porém, Miguel não estava mais pensando neles. Apesar de seu corpo estar exposto ao Sol e sua postura indicar um grande interesse no destino do casal, o padre estava mesmo preocupado com outra questão: o diário de Augusto Nunes, ou melhor, o pequeno trecho dele. Após José ter recuperado a parte que importava – politicamente falando –, o religioso autorizara que Breno Farias fizesse uso do conteúdo. Então, Miguel pensava: quando ele irá acabar de vez com Marcondes Maia?

Tal pensamento era compartilhado pelo político. Já em Água Funda, ele também pensava sobre os próximos passos a serem tomados. Estava no conforto do escritório da sua casa, enquanto Valter Júnior se distraía com alguns livros no quarto ao lado. Com os pés sobre a mesa, Breno olhava para o teto e construía diferentes imagens em sua cabeça. Numa delas, ele ia até a praça central, logo na frente da igreja, e gritava todas as verdades escritas no diário. A população, a princípio, ficaria confusa. Por fim, ele mostraria a todos as páginas que provavam suas afirmações. Então, a verdade viria à tona e toda a população de Água Funda se revoltaria contra o atual prefeito. Não haveria reeleição: no melhor dos casos, apenas linchamento, ainda que político.

Ele realmente gostava de se imaginar neste tipo de posição: como a voz da razão da cidade. Estava até mesmo se acostumando com toda a fantasia dos últimos dias. Agora, olhava para a mão direita e via as páginas do diário ali. Era inacreditável e, ao reler o fragmento, ficava ainda mais impressionado em como a história ficou obscurecida por tanto tempo. Entretanto, havia um certo medo que incomodava Breno: ele e o grupo do padre já haviam sofrido demais na mão de Marcondes. Era evidente que o homem não podia ser subestimado. Sendo assim, não havia tempo a perder: ele deveria ir até a praça e contar toda a verdade agora mesmo. Pelo amor de Deus, a eleição estava próxima e não haveria tempo para qualquer forma de esquecimento.

Levantou-se agilmente, colocou as páginas no bolso da calça e foi até a saída. Abriu a porta e deparou-se com o entardecer em Água Funda: uma curta paz havia tomado conta da cidade, tendo ela reganhado um certo movimento de trabalhadores e passantes. Bem arrumado como sempre, o político saiu caminhando enquanto cumprimentava eleitores e vítimas, ainda que ambos fossem a mesma coisa. Olhou para a praça a alguns metros e sentiu um calor tomar conta de seu corpo: o grande incentivo do universo. Imaginou as primeiras palavras que diria e conseguiu até mesmo antecipar os aplausos que se misturariam com os gritos de revolta.

Entretanto, algo fez com que freasse os passos. Não era uma dor, nem mesmo uma pessoa. Na verdade, foi mais um lapso, uma visão. No canto do olho, Breno via algo. Virando-se, pôde entender o que lhe chamara tanto a atenção: era a residência de Augusto Nunes. Casa simples, mas bela. O delegado não era um ricaço da estirpe de Marcondes Maia, mas tinha garantido o seu conforto. Encarando aquela casa, o político sentia um certo formigamento, uma vontade de desviar sua rota.

Lembrava-se bem: Augusto havia ido até ele suplicando para que não fossem reveladas todas as informações do diário. O homem da lei jurou que sua família correria sério risco. O político, obviamente, negou tudo na época, mas tal súplica ficou martelando em sua mente pelos dias que se seguiram. Agora, martelou mais forte do que nunca.

Olhando mais uma vez para os papéis, Breno sentiu algo estranho. Talvez um resquício de compaixão ou empatia? Não saberia dizer. Entretanto, tinha certeza de que entendia a angústia do delegado: ele mesmo também tinha família e não gostaria que ela fosse colocada em risco pelos pecados de outros. Com isso em mente, foi até a delegacia. O agente da lei deveria estar trabalhando, a julgar pelo horário. Graças a pequenez da cidade, não tardou para que o político chegasse ao local. Sentado, Augusto Nunes tentava ocupar sua mente preenchendo documentos que ninguém leria.

— Augusto, Augusto — Breno Farias causou um pequeno susto no delegado. — Calma, meu amigo. Venho na mais completa paz.

Com o olhar sério, Nunes sabia que nada de bom poderia vir de um político.

— Desembucha logo — ordenou.

— Olha, você tá mais homem do que nunca — Breno provocou. Estava em seu dia de sorte: não havia mais ninguém na delegacia. Com a ronda de policiais dobrada, sobrara apenas um homem para o trabalho de escritório. — Mas eu serei breve com você: estou te ajudando.

Silêncio. Augusto não sabia que tipo de “ajuda” poderia vir de um homem como aquele. Sem responder, apenas respirou fundo para suportar tudo que viria.

— Sem enrolação: eu vou revelar tudo sobre o diário. Eu o tenho em mãos e Água Funda inteira vai saber do que Marcondes Maia aprontou e como você acabou o ajudando — o político se divertia ao ver a expressão de medo em Augusto crescer. — Sim, sim, eu sei que isso é doloroso de ouvir. Mas estou sendo amigável: aviso isso para que você possa fugir. Então pegue suas coisas, junte as malas e arraste sua esposa e filhos pra longe. Não sei, você parece um homem inteligente: talvez consiga trabalhar na capital. Enfim, não é realmente problema meu. Acho que já fiz minha parte e agora cabe a você tomar as decisões.

Estático, Augusto sentiu um frio mortal percorrer sua espinha. Em um impulso de raiva, aproximou-se de Breno e fez menção de segurar a gola da camisa do político. Entretanto, conteve-se. Ao invés de agir violentamente, optou por investir numa voz emotiva.

— Por favor, Breno — o sofrimento em cada palavra era quase palpável. — Eu não tenho nada certo. Se eu for pra capital, e aí? Aqui eu tenho casa, tenho trabalho, tenho certezas! Não terei nada disso em qualquer outro lugar.

— A vida é um mar, Augusto — o político falou com confiança. — As ondas nunca param de quebrar. Então por que você não começa a pensar na instabilidade que é existir? Porque tudo que te segura está prestes a desabar. Siga meu conselho: pegue suas malas e fuja com sua família. Melhor se desesperar agora do que se arrepender depois.

Em silêncio, o delegado engoliu em seco. Afastando-se, sentou-se na cadeira mais próxima enquanto encarava o chão. Parecia pensativo e não disse mais nenhuma palavra. Não precisaria: Breno já havia lido seus pensamentos. O político tinha certeza de que, da próxima vez que fosse visitar Augusto Nunes, o homem cheio de culpa estaria muito, muito distante de Água Funda.

Falando em distância, José e Bia estavam cada vez mais longe da cidade. O caminho para a propriedade de Gustavo Água-Santa não era lá muito tortuoso, mas Carlinhos não era exatamente um exemplo de velocidade. Entretanto, nem precisava ser: com seu lento progresso, deu espaço para que o casal pudesse conversar enquanto atravessavam o repetitivo cenário sertanejo.

— Eu com um bom pressentimento — Zé falou com estranha alegria nos olhos.

— É sério? — Maria Beatriz parecia incrédula, ainda mais diante dos tristes eventos vividos.

— Sim — o esposo reafirmou. — Sei que nós anda passando por muito perrengue, mas alguma coisa me diz que agora vai ser diferente. Eu ando pensando, sabe? Eu acho que diferente.

— Diferente? — Bia mantinha seu ceticismo em relação àquilo tudo.

— Diferente pra méior, Bia. Mais corajoso, mais forte, mais homi. Homi de verdade, não esses doido como os de Marcondes ou os cangaceiros. Eu acho que dá mesmo pra criar uma família, sabe? — Confiante, Zé podia jurar que ouviu Carlinhos concordando com ele. — Acho que essa nova casa vai ser a melhor coisa que já aconteceu na nossa vida.

Em silêncio, Bia alisou a grande barriga.

— O bebê não para de chutar — ela disse, ignorando tudo que o marido falou.

— A segunda melhor coisa — José de Lima corrigiu. — A primeira é o neném. Mas o negócio é: acho que aprendi a não entrar mais em confusão. E sei sair também! Viu o que fiz lá na igreja?

Sentindo-se um herói, aquela memória trazia uma estranha empolgação para o homem. Beatriz, por outro lado, tinha grande repulsa pela experiência. Se pudesse, optaria que ela fosse esquecida para todo sempre. Com o silêncio que surgiu, o rapaz entendeu que aquela talvez não fosse a melhor das abordagens.

— O que eu querendo dizer: eu dou conta do recado. E ocê também, meu amor! E eu realmente acho que o Gustavo vai nos ajudar.

— Você é muito inocen... — antes que pudesse zombar de seu cônjuge, Maria Beatriz sentiu uma pontada. — Ai!

Fazendo Carlinhos parar, José olhou para sua esposa. Preocupado, viu ela reclamar de dores cada vez maiores.

— Bia?! — Aos poucos, o rapaz ia sendo engolido pelo nervosismo. — Tudo bem?!

Com um misto de raiva e dor, a própria Beatriz tentava entender o que estava acontecendo. Que falta fazia uma Socorro de Deus! Entretanto, não tardou para que algumas respostas fossem encontradas, ou melhor, sentidas. Algo dentro dela estava se transformando. Estava... saindo dela. Quando olhou para baixo, viu que um estranho líquido havia tomado conta de sua roupa na altura da pélvis. Olhando para o mesmo local, Zé se desesperou.

— Meu Deus! O que é isso?! — Ele não conseguia raciocinar.

— É o bebê, seu jumento! — Bia respondeu. Carlinhos não entendeu o porquê de ter sido chamado. — Tá nascendo!

O rapaz emudeceu. Queria gritar, mas parecia sem força mesmo para isso. Sentindo falta de ar, olhou para os lados como se aguardasse a chegada de um anjo. Nada. Voltando a encarar a esposa, fingiu ter uma calma que não tinha.

— Se deite! — Eles estavam numa decadente carroça. Teria de servir. — Agora vai abrir as pernas e vai empurrar com toda a força!

José de Lima não fazia ideia do que estava falando. Ele realmente não pensava nisso, apenas estava reproduzindo um texto que decorara em um desses livros que tentara ler. Ah, ele deve ter ouvido algo parecido durante o tempo em que Socorro vivia na antiga Lagoa da Esperança.

Beatriz, por outro lado, sabia mais ou menos do que estava acontecendo. Admitiu que o texto decorado pelo marido era razoável e seguiu as ordens. Entretanto, o que faria depois? Essa criança teria chance de viver num lugar como aquele? José de Lima realmente aguentaria acompanhar o processo todo?

A resposta era apenas uma: não. Bastaram que as primeiras ondas de dor mais intensa tomassem conta de Bia – e, como consequência, os gritos de desespero – para que o marido desmaiasse de forma ridícula. Com os olhos fechados, José capotou para fora da carroça, assustando até mesmo Carlinhos, que não tinha muito conhecimento em relação a trabalhos de parto.

Tentando manter a calma, Maria Beatriz respirou fundo enquanto era acometida por sentimentos conflitantes: antes de tudo, havia o medo diante do desconhecido e da dor. Entretanto, havia também um humor negro e autodepreciativo da situação toda. Como alguém conseguia estar tão lascada quanto ela? A menina estava simplesmente parindo no meio do nada e seu marido havia desmaiado. Quão mais ridícula e desesperadora a situação ainda podia ficar?

— Zé! Acorda, Zé! — Gritou incontáveis vezes. Só parava de chamar o nome dele quando estava gritando de dor. — Acorda, disgraça!

Não acordou. Bia teve que aguentar longos e dolorosos minutos antes que qualquer coisa mudasse. Lá estava ela, em cima de uma carroça, sendo cozinhada pelo calor da tarde enquanto torcia para que sua criança nascesse saudável. Pelo amor de Deus, ela ficaria feliz se o bebê ao menos nascesse.

Por sorte, uma sombra chamou a atenção da moça. Não uma sombra aterrorizante, muito menos demoníaca. Era apenas a sombra de um homem que olhava com curiosidade e espanto o que acontecia na carroça. Quando os olhos de Maria Beatriz se adaptaram, viu quem era o homem.

— Diabo! — A garota gritou.

Cheio de preocupação, o homem deu a volta na carroça e se aproximou. Ele já havia entendido a situação. “Mulher grávida, homem fraco”, refletiu de forma certeira. Subiu na carroça, achou rapidamente uma garrafa com água e tratou de despejar um pouco do conteúdo sobre a testa da moça.

— Eu quero que se acalme — Diabo falava com brutalidade, mas havia um certo carinho na voz. — Eu num só médico, mas já mexi com negócio de gravidez uma vez. Confie em mim, tá bom?

— Tá! — Bia não tinha muita opção.

O ex-cangaceiro segurou a mão dela como um pai segura a mão de uma filha. Ela, naquele estado de tamanha fragilidade, confiou plenamente nele. Não entendia o porquê: simplesmente aceitava.

— Vai doer, minina, mas você vai ter que fazer força, entendeu? — Mais uma vez, a voz dele não era nada gentil, mas era possível perceber uma parcela de genuína preocupação na forma que ele falava. — Força!

Os gritos de Beatriz eram capazes de cortar o sertão no meio, mas nunca que acordariam Zé. Apertando a mão de Diabo com força, a garota quase quebrou os ossos do ex-cangaceiro. Entretanto, ele não recuava: estava ali para ajudar e não abandonaria a mãe em hipótese nenhuma.

— A cabeça está saindo! — Agora, havia até mesmo um pouco de alegria na voz do homem. — Mais força, vai! O pior já passou!

Mais força, mais dor e, ao mesmo tempo, mais tranquilidade. Quão paradoxal poderia ser a situação? Se antes ela já parecia lascada, qualquer pessoa diria que ela estava ainda mais. Entretanto, Diabo agia como um pai, um bom homem e, principalmente, um anjo. O anjo do sertão.

Não tardou para que a criança saísse por inteira. O melhor de tudo: viva e saudável. Com um grande sorriso no rosto, Diabo sentia-se verdadeiramente emocionado. Em meio a uma jornada de sangue e morte, o homem sabia muito bem como apreciar o milagre da vida.

— É uma menina! — Anunciou.

Com um alívio extasiante tomando conta do corpo, Maria Beatriz já havia esquecido de qualquer dor. Fazendo certo esforço, moveu a cabeça e olhou para a criança nos braços de Diabo. Ele, habilmente, entregou a neném para a mãe.

— Minha Alice! — A mãe estava radiante com sua pequena Alice nos braços. — Mainha te ama tanto!

Desacordado, Zé começou a retomar a consciência. Com a visão obscurecida, teve sua audição ativada. O choro da criança e a felicidade da mãe fizeram com que o rapaz sorrisse. Ele então abriu os olhos e se levantou, tendo um grande susto ao ver Diabo.

— Jesus, Maria, José! — Ele não sabia se olhava para a criança, pra esposa ou pro ex-cangaceiro.

Com Alice nos braços, Bia deu um acalentador olhar na direção do marido.

— Ele ajudou, Zé — explicou enquanto Diabo dava um sorriso esquisito. — Nossa criança é uma menina. É nossa pequena Alice!

E, sentindo uma alegria que parecia explodir em seu peito, José desmaiou novamente.


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Notas finais do capítulo

O título veio de última hora, espero que funcione hehehe

O que achou do capítulo? Muito obrigado pela leitura!



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