Fight Like A Girl escrita por Carly


Capítulo 3
Lalisa, a prostituta.




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Uma brisa gélida beijava os arranha-céus de Seul com aspereza, seus lábios opacos espalhando calafrios e dentes batendo entre os coreanos. O rio Han via a superfície de suas águas volumosas se tornando filetes de gelo isolados e pouco a pouco se unindo em uma espessa crosta. Os flocos de neve descem do céu como uma chuva torrencial e torna o chão um tapete branco, frio e úmido. Tudo estava parado, exceto Hongdae que nunca parava.

Nunca.

As luzes neon brilhavam em meio a boate escura e iluminavam o local por meio de flashes esporádicos, deixando-a com um ar intenso e frenético. A fumaça de gelo seco tornava o ambiente opaco e entrou mais uma vez como uma bufada vinda das paredes laterais e se espalhou por todos os lados. Os jovens na pista de dança continuavam a mexer os corpos no ritmo da batida ditada pelo DJ, logo em suas frentes na mesa de som, e mal notaram a fumaça se espalhando entre eles.

As garçonetes com uniformes propositalmente muito pequenos, serviam as bebidas alcoólicas em copos de plásticos coloridos para os clientes. A temática da noite era a Páscoa na casa das coelhinhas, por isso elas vestiam um maiô vermelho com rabinho e orelhas na cabeça que as faziam parecer atrizes pornôs (ou no caso, coelhinhas da Playboy).

— Galera — O Dj de cabelo descolorido chamou a atenção de todos para si — preparem as suas poses porque ai vem a Vogue.

Em um ímpeto holofotes brancos se acenderam no lado oposto da boate e iluminaram um grupo de garotas com roupas muito similares às das garçonetes no chão, exceto por serem toda preta e de tecido brilhoso.

Lalisa, no centro, levantou a cabeça lentamente de forma sensual.

— O que você está olhando? — Perguntou teatralmente, repetindo a primeira frase da música que apresentaria essa noite.

Passou a mão suavemente pelo rosto, levando-o para trás, mas sempre mantendo o olhar sobre o ombro de forma altiva. Colocou as mãos na cintura e então, pondo um pé lentamente atrás do outro, desfilou pelo palco. Os quadris protegidos apenas por uma meia arrastão em evidência.

Seus braços se abriram suavemente e foram até o alto da cabeça para girarem no próprio eixo em uma flor. Então seus ombros começaram a seguir a batida esporádicas dos tambores. 

Ela girou e lançou um sorriso para a plateia.

— faça uma pose — Ela dublou novamente. Suas mãos agora fazendo um quadrado ao entorno do rosto e as dançarinas acompanharam o movimento. Suas expressão era vigorosa e os seus olhos orientais expressavam bem o poder e a sensualidade que a música cantava nas entrelinhas. 

— Faça uma pose — Ela cantou novamente e todas trocaram de posições come se estivessem em uma sessão de fotos.

O estilo de dança Vogue, no qual Lisa era especialista, se caracteriza por posições típicas de modelos com movimentos corporais definidos por linhas e poses. O que combinava perfeitamente com seu corpo magro e longo, talvez por isso ela teve tanta facilidade em aprender a dançar, apesar de ser a mais nova dentro da boate.

— Olhe ao redor, a tristeza está em todo lugar que vá — Ela continuou a apresentação. Suas mãos fazendo ângulos prefeitos enquanto desfilava sobre o palco. Naquele momento tudo em sua volta sumia; só havia ela, a batida na caixa de música e o palco. 

— você tenta escapar dela de todas as formas, mas a dor faz parte da vida que você conhece — A sua voz ia subindo o tom, mas sem deixar o cartão de lado — Quando tudo der errado e você ansiar ser algo melhor do que é hoje. Conheço um lugar onde você pode extravasar: a pista de dança.

Lisa começou a descer do palco em um Catwalk surpreende e as dançarinas a acompanharam.

— Então, vamos, dance Vogue! — Os movimentos ficaram rápidos conforme o ritmo da música ia agilizando. 

O grupo de dançarina tomaram o palco com energia e sensualidade por quase 10 minutos e quando o Pot-pourri acabou, Lisa girou no próprio eixo, levando as costas ao chão, enquanto uma das pernas se ergue no ar.

Os aplausos explodiram pelo local. Todas as noites elas apresentavam a mesma música e todas as noites choviam aplausos.

 

 

— Eu odeio esse maior idiota — Uma delas reclamou já nos bastidores enquanto arrancava as orelhas de coelho da cabeça — Se eles iriam mostrar tanto da nossa pele, porque não colocam a gente para dançar nua de uma vez?

A dançarina bufou parecendo enraivecida e começou a retirar o maior dos ombros.

— Sugira isso ao senhor So, tenho certeza que ele não vai negar. Mas você vai dançar peladona sozinha, porque eu não vou com você! — Lisa brincou abrindo a porta branca do camarim, que no caso delas era apenas um quartinho no fundo da boate com armários e espelhos grandes onde elas podiam fazer a troca de roupa — Aliás, sua expressão fácial melhorou muito, Sa Rah. Você esteve ensaiando no tempo livre?

A menina de nome Sa Rah que trocava de roupa vermelha para uma amarela da próxima apresentação sorriu com os olhos e pareceu um pouco orgulhosa com o comentário da ruiva sobre a sua dança.

— Não sorria desse jeito, você ainda tá parecendo uma lombriga enquanto caminha.

— Hey! — A menina jogou uma camisa nela e quase a acertou por alguns centímetros — Volta para os seus livros, Manoban!

— Volta para os seus livros, Manoban — Lisa repetiu com uma voz infantil que fez todas dentro do camarim sorrir, até Sa Rah.

A ruiva pegou a mochila velha da escola que sempre ficava jogada ao lado do sofá de dentro da sala e a colocou sobre o móvel para a abrir. Ela retirou um bolo de roupas amassadas lá de dentro e começou trocou as da apresentação por elas. Como amanhã era dia de prova, ela havia pedido ao chefe para sair mais cedo e assim ter um tempinho extra para estudar.

— 40 segundos para a próxima apresentação — Um homem falou e todas as dançarinas começaram correr de um lado para outro como formigas após alguém chutar o formigueiro. Em pouco tempo, Lisa se viu completamente sozinha dentro do local.

Calçou as meias de duas cores furadas e os tênis surrados que havia ganhado há 2 anos da mãe, vestiu a calça jeans folgada e a blusa de um grupo de rock que não conhecia, mas que estava na promoção por um preço irresistível quando Lisa a comprou. Trançou os cabelos longos e os prendeu com um elástico. Logo em seguida sentou-se na penteadeira e  aproveitou o tempo que iria ficar retirando a maquiagem do rosto para ler os flashes cards que havia criado no celular quando enquanto estava no banheiro do seu emprego na pizzaria.

 

 

Ela ficou tão imersa no estudo dos fluídos em repouso — também conhecido como hidrostática — que apenas duas batidas na porta retiram sua atenção dos livros. Ela removia um cílio postiço e quase enfiou uma das unhas postiças no olho com o susto que sofreu.

 O dono da boate estava na soleira da porta parecendo retraído e acanhado. Ele era um homem baixo, meio careca e barrigudo, o que o dava uma aparência desgastada e envelhecida. Os seus braços estavam cruzados no peito e a camisa apertava a sua barriga estufada.

— Senhor So? Está tudo bem?

— Sim, sim. Eu trouxe o seu pagamento. — Ele ergueu o envelope amarelo recheado por Wons. — Aqui estar.

— A melhor parte do mês! — Lisa brincou com um sorriso enorme nos lábios, seus olhos quase brilharam em cifrões.  Ela amava dinheiro. Estava tão empolgada com o pagamento, que nem se importou em como deveria estar estranha com apenas um cílio postiço colado no olho quando foi saltitando até o envelope.

A garota ergueu os dedos magros pars o pegar, porém o chefe o levantou rapidamente a impedindo de o tocar. Ele suspirou e olhou para o lado antes de falar.

— Outro cliente veio atrás de... você sabe, serviços particulares....Eu disse que você não fazia esse tipo de trabalho, mas... — Ele fez uma pausa antes de continuar. Seus dados amassavam as pontas do pacote — Ele é dono de uma montadora de carros, deve pagar 5 vezes mais do que eu te pago no mês em apenas uma noite. Você não pode pensar no assunto?

Lisa revirou os olhos e jogou a cabeça para trás.

— De novo isso? Você já sabe a resposta, Tio — Lisa parecia entediada enquanto falava — É não, e sempre será não. Eu gosto de dinheiro, mas não à esse ponto.

— Jamais diga nunca, Lisa, você nunca sabe o quê o futuro te guarda. — O homem profetizou e abaixou o pacote amarelo para a garota.

Ela pegou o dinheiro da mão dele e deu um beijo no envelope antes de guardar dentro da blusa. Ela não guardava o dinheiro na bolsa por medo de ser roubada, afinal, até mesmo uma cidade segura como Seul tinha ladrões.

— Eu sou uma dançarina, Senhor So, não uma prostituta e quando eu conseguir me formar, serei uma advogada de primeira linha.

— urrum

— Você deveria já começar a me chamar de Doutora Manoban e talvez eu até te proteja no tribunal por tentar aliciar uma menor.

— Olha aqui, Manoban! — Ele colocou as mãos na cintura tentando parecer severo, mas ele nunca conseguia ficar zangado com a menina magricela e sempre sorridente.

— Não se preocupe, eu ainda preciso desse emprego, hum? — Ela deu palmadinhas nos ombros dele — Não vou contar para ninguém sobre as suas intransigência, mas eu não sei quando sair daqui...

— Manoban!

A garota agarrou a mochila e jogou o celular sobre a penteadeira de qualquer jeito lá dentro.

— Já tô indo, tio So...

— Pare de me chamar de tio! — O homem bufou. Odiava quando alguém o chamava de Tio, fazia-o se sentir velho, principalmente quando ele nem era Tio da pessoa. 

Lisa abriu um sorriso iluminado enquanto escapava pela porta e a fechava em suas costas.

Ela suspirou quando sentiu o clima gelado da madrugada em sua pele e se arrependeu por não ter colocado nada mais quente dentro da bolsa. Enfiou as mãos nos bolsos do jeans e começou a cantarolar pelas ruas a canção que ela havia dançado na boate.

O bairro de Hongdae estava sempre animado, não importava que horas do dia fossem. A garota costumava sair da boate por volta das 2 ou 3 horas da manhã — exceto quando pedia licença para estudar para provas, como hoje — e sempre via jovens indo de um lugar para o outro, entrando em uma boate ou comendo ramen em uma conveniência C.U (Sigla para See You). Havia artistas nas ruas fazendo apresentações de dança e canto. As lojas de comida rápidas brilhavam com suas propagandas. 

Quando tinha tempo livre ( o que raramente acontecia), Lisa ia com as outras dançarinas em uma pojangmacha e comiam algum dos snacks vendidos ali, geralmente elas acabavam comendo o bom e velho Tteokbokki bem apimentado.

A ruiva teve de andar quase 10 minutos para chegar no metrô do bairro. O local estava cheio de pessoas voltando do trabalho com seus ternos formais, olhos cansados e seus inseparáveis smartphones nas mãos. Ela se sentou no chão gelado do local, pegou o seu livro de física dentro da bolsa e um lápis. Se espreguiçou, estalou o pescoço e começou a ler novamente sobre Hidrostática.

Ela estava completamente exausta devida a carga horária da escola mais as dos trabalhos, todavia, ela tinha um teste importante amanhã e devido aos seus 3 empregos, deveria aproveitar cada segundo livre para estudar — Mesmo que o seu corpo estivesse implorando por uma soneca.

A universidade de Yonsei oferecia uma bolsa todos os anos de 80% para o concluinte da Rolling Academy que obtivesse o primeiro lugar no ranking estudantil e como Lisa desejava ser a melhor advogada do país,  a lógica era que deveria estudar em uma dasa melhores universidades do país. Logo, Yonsei era a única chance que ela tinha para entrar em uma das S.K.Y. Mas como a ruiva era pobre, deveria conseguir a bolsa para conseguir realizar o seu sonho, pois provavelmente não teria como pagar a mensalidade.

Por isso trabalhava tanto. Ela precisava juntar dinheiro para conseguir financiar os 20% que a bolsa não cobria, a sua morada estudantil e a alimentação, pois sabia que dá sua família não viria nada. Principalmente do babaca do seu padrasto.

Além disso, Lisa estudava como uma louca para ser a n° 1 — apesar de sempre ficar atrás de Jisoo não importava o que ela fizesse ou quanto estudasse. Houve vezes que a ruiva realmente invejou Jisoo e a sua vida perfeita; Todo aquele dinheiro, boas notas, boa aparência, nunca parecia cansada, tocava três instrumentos (piano, violino e harpa) e ainda sempre ganhava os torneios esportivos. As suas férias eram em Miami, suas roupas eram as mesmas que aparenciam na Vogue Coréia, as pessoas a tratavam como uma verdadeira deusa e  era o seu rosto que estampava os Outdoors da cidade, era errado querer isso?

O trem parou na estação, a multidão começou a se mover em sua direção e Lisa correu para dentro do vagão assim que as portas metálicas se abriram. Ela conseguiu um acento perto da porta, e aproveitando que estava sentada, continuou a estudar por todo o trajeto. De Hongdae até o bairro que morava, era uma viajem de cerca de 30 minutos — o que deu tempo dela conseguir revisar quase 40 folhas da matéria. Ótimo, agora faltavam só mais umas 300!

Lisa saiu do metrô ainda com a cabeça enfiada no meio dos livros, pegou um ônibus e parou na esquina da casa que ela morava. Ela desejou boa noite ao motorista como sempre fazia e desceu pulando os degraus de dois em dois. A  rua da sua residência tinha os postes de luz quebrados, tornando-a severamente escura naquele horário. Além disso, tudo estava vazio e o asfalto estava totalmente esburacado Exceto por uma convivência que funcionava por toda a madrugada, o lugar estava quieto.

O ar gelado voltou a bater em sua pele fazendo um tremelique subir por seu corpo e a garota afundar mais ainda as mãos no jeans. Ela começou a acelerar o movimento das suas pernas finas afim de apertar o passo, apesar de a última coisa que queria fazer era chegar em casa. Lisa odiava admitir, mas a sua casa era o lugar onde ela menos se sentia bem vinda.

— Lisa? — A vozinha fina da sua irmã chamou e a garota se assustou. Sunan estava sentada ao lado de fora da casa, vestia apenas uma roupa de dormir finíssima e agarrava com muita vontade um ursinho velho. Ela estava trêmula, fungava e seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar.

—Sunan? O quê você está está fazendo aqui? Você pode pegar um resfriado. Onde está a mamãe? Porque você está chorando? — A irmã mais velha encheu a mais nova, de apenas 6 anos, com perguntas.

— Ela estar lá dentro. — A menina olhou com seus olhos brilhantes para a irmã em uma súplica — Eu...eu..eu não aguentei ver. Eu corri para fora

Lisa não precisou perguntar sobre o que ela falava. O som de algo quebrando reverberou de dentro da sua casa e ela soube: estava acontecendo de novo.

A última vez que o seu padrasto bateu em sua mãe fora há quase dois meses, o que era um tempo recorde entre uma agressão e outra. Por isso, Lisa sabia que a qualquer momento ele iria querer subjugar a sua mãe novamente para se reafirmar como macho alfa. Não importava que isso viesse acontecendo por mais de 3 anos, a garota nunca estava preparada quando acontecia.

Lisa se levantou furiosa do chão. O sorriso nato em seus lábios havia sumido de uma forma que parecia que nunca estivera ali.

— Vá para a casa de Dayong —  Ordenou para a irmã. Seus punhos estavam cerrados — Eu vou resolver isso. vá, AGORA!

— Não, Lisa, não! — Sunan se levantou em um salto e se agarrou as pernas finas da irmã. Suas lágrimas molhavam a calça que ela vestia — De novo não. Não faz isso. Fica comigo. Por favor, eu não quero que você se machuque novamente.

Lisa olha para os seus arredores em busca do que fazer. Nas casas vizinhas, todos se amontoam atrás das janelas para ouvir o que acontecia, mas não faziam absolutamente nada para as ajudar. Nem um telefonema para a polícia. 

A garota suspirou. O seu padrasto tinha quase 1,90 de altura e por carregar levantando caixas, tinha os braços com o dobro da largura da ruiva e da última vez que Lisa tentou intervir fisicamente, acabou com tanto hematomas quanto se possa imaginar. A ruiva teve de faltar quase 1 mês de aula enquanto as manchas sumiam. Nas outras vezes, Lisa havia ligado para a polícia e, de fato, era isso que deveria fazer agora. Se ela já não tivesse feito antes e a mãe não tivesse dito que ela era uma mentirosa na frente dos policiais.

Outro som de objetos quebrando ecoa e a irmã tampa os ouvidos com as mãos para abafar o barulho. Ela se agarra mais ainda entre as suas pernas e roça a sua cabeça no jeans.

Lisa sente a sua respiração ficar pesada. Odiava tanto a mãe por ser tão fraca, por submeter não só ela a isso como também a Sunan. Lisa havia pedido tantas vezes para ela terminar aquele relacionamento doente, mas a dependência psicológica era horrível.

Ele vai mudar dessa vez, ele prometeu. Veja, ele até trouxe flores”

Lisa pegou a irmã no colo.

— Vai ficar tudo bem — Ela fala para a criança e encosta a sua cabeça nos seus ombros.

A menina fungou em seu pescoço tentando conter as lágrimas silenciosas, mas não adiantava.

— Ei, confie em mim. Vai ficar tudo bem. Eu ainda sou a Super Lisa, certo?

A menina enroscou os braços finos em volta do pescoço da irmã.

— você sempre será a Super Lisa.
 

Era para evitar coisas como àquelas que Lisa precisava ser uma advogada renomada. Queria ser independente para não ter de sujeitar aquele tipo de situação que a mãe passava para sustentar a família e além disso, gostaria de botar homens como o babaca do seu padrasto atrás das grades e se possível, na cadeira elétrica. Quando tivesse a oportunidade, tiraria Sunan daquela casa e a levaria para morar em um lugar bom e pacífico.

Ela entrou na loja de conveniência que ficava aberto pela madrugada. Acenou para o garoto do caixa que já a conhecia, pois era sempre ali que ela se refugiava quando sua casa estava insuportável demais para conseguir ficar dentro. Lisa comprou um sorvete baratinho para a irmã e uma garrafa de água para ela. Ela tinha fome, mas a comida já havia perdido o gosto há muito tempo.

As duas sentaram nas mesas. Ela abriu a apostila de física e a irmã tomou o sorvete cabisbaixa. Até ela com sua mente infantil sabia que aquilo era errado, então porque a mãe não?

— Quando você crescer, você prenderá homens maus, não é, Lisa? — A irmã falou se deitando no sofá parecendo sonolenta.

— Eu já sou grande — Lisa brincou. Ela isso que ela fazia, procurava a escapatória de sua dor em piadas — Já estou quase no ombro de Jin!

O garoto no caixa, Jin, olhou assustado para as duas.

— Você não precisa fazer piada de tudo, Lisa. Está tudo bem chorar às vezes.— Sunan estava quase dormindo.

Lisa ficou atônita por um momento. Não conseguiu pensar em nada, nem sequer mais uma piadinha, antes que a irmã dormisse nos bancos da mesa.

— Chorar é sinal de fraqueza — Murmurou para si mesmo. Seus olhos agora estavam baixos e o lápis em sua mão fazia rabiscos sem sentidos no livro. Não conseguia se concentrar mais nas letras.

Olhou novamente para a irmã sobre o banco, lágrimas ainda molhando seu rosto infantil. Fechou a mão com raiva e então escutou um trac quando o lápis partiu.

— Droga! — Ela jogou a cabeça para trás e encarou o teto da mercearia.

— Toma — o garoto do caixa colocou o lápis em sua frente, fazendo ela voltar a posição normal.

— Obrigada.

— Tome esse lençol também. Usava para dormir quando senhor Yong não estava vendo. Mas agora que ele instalou câmeras de seguranças, isso tá fora de cogitação.

— Senhor Yong realmente é um osso duro. — Lisa falou sorridente. Sempre sorridente.

— Ah, é sim e a idade parece que apenas piora a rabugisse dele — O garoto bufou — E o que você está fazendo?

— Tentando revisar Hidrostática. Mas minha cabeça tá confusa agora.

Jin não perguntou o porquê. Ele já sabia o que havia acontecido, todo mundo no bairro sabia.

— Vou deixar você estudar. Qualquer coisa estou bem ali no caixa.

— Sem tirar soneca.

— É... infelizmente.

Ele sorri e volta para o seu lugar. Ele era alto e possuía ombros largos. Ele também era um dos ambiciosos. Queria sair daquela vida a qualquer custo, mas não se esforçou o suficiente. Lisa não acreditava em sorte. Se você fracassou, não é culpa do destino, é sua!

Quando a concentração da garota voltou, ela conseguiu voltar a ler as páginas do livro e entender o que elas falavam. Foi interrompida duas vezes por Jin oferecendo café por conta da casa e voltando para o caixa logo em seguida.

Por volta das 4 horas da manhã, quando estava satisfeita com o que havia aprendido, ela guardou os livros, se levantou colocou a menina novamente nos ombros e voltou para casa.

— Hey, espere um pouco! — Gritou Jin quando ela já estava cruzando a rua. Ele atravessou alguns metros rapidamente com suas pernas longas. — Como é que você consegue andar tão rápido com essas pernas pequenininhas, em?

— É que eu estava fugindo de você.

— Ah, tá bom… me der a Sunan. Você tá quase envergando a coluna com o peso dela.

— Eu consigo chegar em casa — Lisa falou e continuou andando.

Ela sentiu o capuz do seu casaco ser puxado.

— Deixa de ser cabeça dura. Me dá logo ela. Aceitar ajuda não vai arrancar um pedaço seu.

— Eu consigo.

Ele voltou a segurar o capuz impedindo que ela andasse.

Ela semicerrou os olhos.

— Ok. Ela é toda sua.

Lisa passou a menina para o braço de Jin.

Todo o caminho foi silencioso, Jin falou sobre os testes da faculdade que ele falhou e Lisa fingiu ouvir enquanto repassava as fórmulas da prova na cabeça.

— Aqui está — Jin falou em frente a casa. — Eu deixaria ela lá dentro, mas…

— Está tudo bem. Ela nem é tão pesada assim. — Ela segurou a menina e deu dois passos para trás — ou será que é?

Os dois sorriram.

— Eu já to indo. Vou rezar para que o senhor Yong não esteja vigiando as câmeras as 4 horas da manhã!

Eles se despediram e Lisa adentrou na casa. O local estava totalmente arrumado, a sua mãe provavelmente havia organizado tudo para fingir que nada tinha acontecido. Ela havia passado a fazer isso depois da briga feia que Lisa e o padrasto tiveram dá última vez e a garota acabou com alguns hematomas também.

Lisa fechou a porta da sala com o pé, pois a sua irmã estava nos seus braços. Andou até o quarto o mais silenciosamente possível. Deixou a irmã sobre a cama dela e voltou para a cozinha afim de beber água.

A sua mãe surgiu alguns minutos depois com um sorriso no rosto e com uma roupa de manga longa e gola alta, apesar de ainda não ser inverno. Lisa sabia o que aquilo significava, mas decidiu não comentar nada. Sabia que aquilo também fazia mal a mãe.

— Lisa… — Ela falou ao ver a menina. Estava cabisbaixa e meio envergonhada.

— Com o que você está alimentando a Sunan? Ela deve tá pesando mais do que eu. Se bem que não deve ser difícil alguém pesar mais do que eu. — Ela fala antes que a mãe concluir. A mãe sorrir. Lisa gostava de ver a mãe sorrindo. — Eu só vim pegar um pouco d'água para voltar a revisar. Tenho um teste importante amanhã.

— Você está estudando demais. São 4 horas da manhã, Lisa. Vá dormir. Seu cabelo está caindo e há tantas olheiras sob os seus olhos. Como você vai arrumar um namorado assim?

A menina gelou. Seus dedos apertaram o copo em suas mãos. A última coisa que ela queria era um namorado. Ela já havia visto o suficiente da relação da mãe para ficar desacreditada em uma relação romântica.

Lisa afrouxou os dedos e sorriu.

— Você sabe que já estou casada com a Yonsei, Dona Gina. — Disse Lisa aproveitando para mudar de assunto e tirar outra gargalhada da mãe.

— Me chame de mãe, sua pivete — Ela foi dar um cascudo na cabeça dela, mas ao se mover, pareceu sentir dor e seu corpo se curvou sobre ele mesmo.

— Mãe! — A menina correu até a mulher — Onde dói?

— Em lugar nenhum, foi apenas uma pontada. — Ela voltou a se erguer — Está tudo bem.

A mulher disse com confiança, mas as duas sabiam que era a mais pura mentira.

— Mãe…

As duas se entreolharam. Estavam tendo uma conversa silenciosa e dolorosa.

— Gina, dá para você e a idiota da sua filha calar a boca? — O babaca gritou do quarto e Lisa inspirou fundo.

— É melhor você ir para o seu quarto. — A mãe segura o braço dela antes que ela invadisse o quarto e terminasse com hematomas, como na outra vez.

Lisa ficou parada um tempo, medindo o que deveria fazer. Por fim, Ela fez um sinal de soldado, arrancando outro sorriso da mãe. Ah, como ela adorava aquele som.

— Gina! — O idiota voltou a gritar.

A garota foi em direção ao quarto, cobriu a irmã e trancou a porta com a chave. Senta-se em cima da cama, pega a mochila velha e volta a abrir os cadernos. Cada grito que ela ouvia o padrasto dando, era um motivo a mais para a garota estudar mais e mais.

O barulho fica mais alto dentro de casa, a mãe parece preparar um lanchinho noturno para o idiota comer.

— A prostitutazinha tava com a pirralha? — Lisa escuta o homem falar alto, claramente para ela ouvir.

— Não a chame assim, ela vai ficar ofendida — A mãe tenta defender Lisa.

— Eu chamo ela do que eu quiser. Eu pago as contas e coloco comida na boca daquela vadia, ela não tem o direito de ficar ofendida.

O padrasto sabia sobre o trabalho de dançarina de Lisa e ficava tentando a humilhar com isso. Mas o que o irritava de verdade não era o emprego e sim ela ter o seu próprio dinheiro e uma expectativa de futuro muito superior a dele.

— Droga! — Lisa xinga. Havia percebido que havia amassado a folha do livro com raiva.

Ela suspirou. Precisava se concentrar, como faria uma prova boa com tanta coisa acontecendo ao seu redor? Ela decidiu pegar os fones de ouvidos, seus fiéis companheiros junto aos livros. Um silenciava o mundo e o outra a submergir em um mundo completamente novo. Eram a fuga perfeita.

Depois de um tempo, o sol começa a bater em sua face pela janela e ela sabe que era a hora para começar a se arrumar para ir a escola. Ela verifica a hora pelo celular 5:30.

Lisa desliga a música, abre a porta lentamente para verificar que o padrasto estava dormindo e começou a zanzar pela casa fazendo o que deveria ser feito; preparou o seu café da manhã e o da irmã, lavou a louça e tomou banho (tudo isso enquanto murmurava fórmulas e conceitos)

— Acorda, sua manhosa! — Ela chama Sunan que se agarrava ao travesseiro como um gatinho a um rolo de lã.

A menina abriu os olhos lentamente e Lisa notou que eles estavam inchados por causa do choro da noite anterior. 

— Você tem 20 minutos para se arrumar! — Lisa informou e a criança começou a andar pela casa tentando não fazer barulho. Ninguém queria acordar o padrasto.

Lisa penteou o cabelo da irmã enquanto a pequena tomava café. Quando ambas estavam prontas, saíram apressadas casa.

 

— A energia cibernética…

— Cinética — Corrigiu Lisa. Sunan estava com o caderno e fazendo perguntas enquanto corriam pelas ruas para pegar o metrô e ir a escola, ambas eram inteligentes e tinham conseguido ir para escolas de prestígio.

 

10 minutos depois, chegaram na escola fundamental da mais nova. 

— Estude bastante, pois esse é o único meio de se livrar dessa loucura, ouviu? — Lisa falou séria para a irmã.

— porque você tá tão séria? Nem parece com você. Que coisa estranha.

— Estou ensaiando para a peça da escola. Fui convincente? — Lisa voltou a abrir um sorriso luminoso.

— Agora faz sentido. — Sunan falou se despedindo.

Mas Lisa nunca havia chegado perto da aula de teatro e àquelas palavras provavelmente eram as mais sinceras que ela dizia em anos. Ela iria estudar até sair daquela insanidade que ela chamava de vida


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