Os Treze Guardiões escrita por Miss Lidenbrock


Capítulo 7
O professor




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— Uma coisa nessa história toda ainda me deixa confusa – comentou Renata, enquanto folheava um livro da Anne Rice. Renata era obcecada por vampiros – Não os mais recentes, que brilham no sol e protagonizam histórias de amor, mas os clássicos, que se alimentam sem dó do sangue de suas vítimas.

— Muita coisa nessa história me deixa confusa – falei – Mas do que você está falando, especificamente?

— Da Sofia – disse ela – Sabe, o jeito como ela leu aqueles pergaminhos como se conhecesse a língua, causando aquele borogodó todo. Como ela fez isso?

— Talvez aquela pedra tenha algum tipo de poder que cause esse efeito sobre as pessoas – sugeriu Gisele – E a Sofia chegou perto demais.

— Não sei, não – falei – Eu também cheguei bem perto da pedra e não aconteceu nada comigo.

— Vocês acham que ela sabia o que estava fazendo? – Renata arqueou as sobrancelhas – Que causou tudo de propósito?

— Não acho – afirmou Gisele – E não acho que a gente devia falar da Sofia assim. Ela é nossa amiga agora.

Renata deu de ombros, amarrando os cabelos ruivos num coque.

— Acho que tem razão.

— Pena que ela não pôde vir hoje – comentei, enfiando a mão num pote de doritos. – Tá perdendo a reprise de Mamma Mia.

— Por falar nisso, tá quase na hora da minha música favorita, então façam silêncio – pediu Gisele.

Estávamos na casa da Gisele, todas vestindo pijamas, cercadas de comidas calóricas, aparelhos de som, revistas, esmaltes e de frente pra TV de tela plana. Os pais dela, sendo dois médicos cirurgiões, tinham bastante dinheiro, e o quarto da Gisele era do tamanho da minha sala de estar. Fazíamos festa do pijama lá pelo menos uma vez por mês.

— Mas e você, Lorena? – perguntou Renata, jogando um punhado de M & Ms na boca – Não tá nervosa pra amanhã?

— Um pouco – confessei – Ainda não sei direito o que vou falar com o professor. Não quero revelar nada que eu não devo pro caso dele não saber de nada, mas como é que eu vou saber se ele sabe alguma coisa se eu não revelar nada?

— Eu não entendi metade do que você falou – comentou Gisele.

— Não estou falando do professor, besta! – exclamou Renata – Você vai estar lá com o Ricardo! Isso não te deixa nervosa?

— Com o Ricardo e o Eric – acrescentou Gisele – Acho que isso corta um pouco o clima.

— Ah, é. Argh. Esse menino me dá arrepios.

Abri a boca para defender Eric, mas fechei rapidamente, mudando de ideia. Por algum motivo, não queria que elas soubessem que eu o conhecia.

— Vocês estão dando muita importância pra isso – falei – Não é nada demais. Nós vamos pra universidade, conversar com um professor. Não é exatamente um encontro romântico.

— Bom, mas ele te chamou pra sair no sábado, né? – Gisele perguntou – Com certeza vai rolar.

— E nós vamos te preparar toda antes do encontro – falou Renata – Roupas, maquiagem, cabelo. Tudo questão de tática.

— Como se você entendesse disso – riu Gisele, atirando um travesseiro em Renata – Anda por aí parecendo um moleque!

Renata escancarou a boca, fingindo estar ofendida.

— Pelo menos não saio usando tênis de corrida – retrucou, atirando outra almofada em Gisele.

— Parem com isso, vocês duas! – ri, atirando travesseiros em ambas.

Logo se transformou em uma guerra de travesseiros, e, em meio aos gritos e risadas, eu quase esqueci da tarefa que me esperava no dia seguinte.

*                                                *                                      *

Eu mal senti as aulas passarem naquela manhã de segunda feira. O professor Renato, de física, precisou me perguntar três vezes qual era a fórmula da força resultante antes de conseguir uma resposta. Tudo o que eu conseguia pensar era sobre o encontro com o professor Santiago naquela tarde, e se ele realmente poderia nos dar algumas respostas.

Quando o último sinal tocou, foi como se alguém tivesse me jogado um balde de água fria pra me acordar. Levantei num pulo da cadeira, quase caindo no processo.

— Alguém está com pressa – apontou Samir – É hoje o encontro com o professor, né?

— Parece que é – respondi, ansiosa demais pra manter uma conversa.

— Boa sorte – disse ele – E não esquece de perguntar as chances de eu ser um dragão de komodo!

Só tive tempo de virar e revirar os olhos pra ele antes de sair pela porta.

Eu tinha combinado com os meninos de encontrá-los no portão. Antes que eu chegasse lá, porém, avistei Eric conversando com os gêmeos e o Bernardo ao lado da lanchonete.

Me escondi atrás de uma coluna para que eles não me vissem, e apurei os ouvidos. Ok, eu sei que não é legal escutar a conversa alheia, mas era difícil conter a curiosidade e não usar a super audição pra fins como esse.

— Mas fala aí, cara – eu podia ouvir a voz do Daniel dizendo – Como foi se transformar em urso?

— Não sei explicar – Bernardo respondeu. Pela voz ele parecia desconfortável. – Eu comecei a me sentir muito, muito quente. Como se meu sangue estivesse fervendo. E então... Foi tudo meio que um borrão. Eu conseguia ver e ouvir as pessoas ao meu redor, mas não entendia que eram, sabe, pessoas. Pra mim, pareciam ameaças.

— Louco – assobiou Paulo – Mas, sabe, você não devia se culpar tanto. Ursos nem são tão ruins. Eu já fui num circo em que um andava sobre um monociclo e usava um chapeuzinho de aniversário.

— E eu vi um filme em que um urso usava drogas – completou Daniel, seguido por risada dos irmãos.

— Vocês dois vão se transformar em dois macacos, com certeza – a voz de Eric me sobressaltou – Bom, tenho que ir encontrar a Lorena pra pegar o ônibus pra universidade. Vejo vocês idiotas depois.

Era a minha deixa pra sair. Esperei alguns segundos, pra não ficar óbvio demais que eu estava ouvindo escondida, e saí para encontrar Eric no portão.

 - Ei – saudou ele, assim que cheguei – Pronta pra ir?

— Pronta – falei – Só falta o...

— Presente – Ricardo chegou, sorrindo, passando o braço por cima dos meus ombros e me dando um beijo na bochecha que fez meu rosto esquentar.

— Oi – murmurei, tentando desesperadamente tirar o sorriso bobo da cara.

— E aí? – Ricardo murmurou pra Eric, que respondeu com um aceno de cabeça. Eu nunca ia entender os cumprimentos masculinos.

— Então – Ricardo falou, após alguns segundos de um silêncio constrangedor – Vamos?

— Certo – falei, retirando o celular do bolso – Eu pesquisei e o ônibus que vai daqui até a universidade é o trezentos e quinze. Nós só vamos precisar andar até a...

— Não vamos precisar pegar o ônibus – interrompeu Ricardo – Já liguei pro meu motorista e ele pode levar a gente.

— Você tem um motorista? – Eric pareceu perplexo, e, lentamente, seu rosto se contorceu numa expressão de escárnio. – Claro que você tem um motorista.

Ricardo pareceu levemente constrangido, e olhou para Eric com irritação.

— O quê? Eu devia me desculpar por isso?

— Claro que não – retrucou Eric – O que eu sei? Sou só um plebeu que se beneficia dos transportes públicos.

— Ei, qual é...

— Ei! – exclamei – Vocês dois querem parar? Qual foi a parte de “sem brigas e sem estresses” vocês ainda não entenderam?

Ricardo abriu a boca pra dizer alguma coisa, mas depois a fechou, contrariado. Eric apenas cruzou os braços, com a expressão de quem havia comido algo amargo.

Um carro preto e reluzente estacionou na porta da escola, buzinando de leve.

— Aquele é seu motorista? – perguntei.

— É – respondeu Ricardo, olhando de canto pra Eric – Vamos.

Pulei pra dentro do assento de couro estofado, sentando entre Ricardo e Eric, com a sensação que estava bem no meio de um fogo cruzado.

— Bom dia, seu Josias – saudou Ricardo com um sorriso – Pra universidade federal, por favor.

— É pra já, patrão – disse o senhor por trás do volante. Ele até usava um chapéu que eu só havia visto motoristas usarem em filmes. Com o canto do olho, vi Eric fazer uma careta.

O percurso até a universidade não durava mais que quinze minutos. Morro Alto era uma cidade relativamente pequena, e quase tudo era perto.

Ainda assim, a universidade era uma visão impressionante. Olhei para o conjunto de prédios espelhados com um brilho nos olhos, imaginando se estaria estudando ali daqui a poucos anos.

O motorista nos deixou na parte central do campus, todos nos sentindo um tanto perdidos.

— E agora? – perguntou Eric, erguendo as sobrancelhas – Onde encontramos o professor engomadinho?

— A Renata disse que ele tá ensinando no curso de história – falei – O prédio de Ciências Humanas fica pra lá.

Fomos andando até lá, passando por dezenas de grupos de alunos conversando, rindo e carregando cadernos e apostilas. Passamos por um conjunto de lanchonetes onde vários grupos de jovens conversavam sentados em mesas.

— É meio legal estar aqui – disse Ricardo – A gente fica imaginando como vai ser quando estudarmos aqui daqui alguns anos.

— Eu estava pensando exatamente nisso – sorri pra ele.

— Falem por vocês – resmungou Eric – Eu vou cair fora dessa  cidade na primeira chance.

Eu e Ricardo nos entreolhamos por um momento. Eu mordi o lábio, sabendo que Eric realmente tinha motivos para querer ir embora.

— Bom, algumas pessoas gostam daqui – murmurou Ricardo, parecendo incomodado. Felizmente, nenhum dos dois insistiu no assunto.

Chegamos ao edifício onde funcionavam os cursos de ciências humanas, que estava completamente abarrotado de estudantes e professores andando por todos os lados. Abordei a primeira pessoa que passou na minha frente, uma mulher de meia idade que parecia muito concentrada numa pilha de papéis na sua mão.

— Com licença – chamei – Sabe onde podemos encontrar o professor Santiago Rivera?

A mulher mal ergueu os olhos ao responder:

— A sala dele fica no primeiro corredor à direita, número 113.

— Obrigada – eu disse pra mulher que já se afastava. Em silêncio, nós três seguimos a direção que ela indicou, desviando do fluxo interminável de alunos.

Quando chegamos à sala 113, eu de repente me sentia insegura, sem ter tanta certeza de estar fazendo a coisa certa.

— É aqui – falei para os meninos – Última chance de desistir.

Eric balançou a cabeça, a expressão séria.

— Viemos até aqui – disse – Vamos falar com esse cara.

Olhei pra Ricardo, que assentiu, e, se aqueles dois estavam concordando com alguma coisa, era algo a se considerar. Respirei fundo e bati na porta.

— Entre – disse uma voz grave.

Abri a porta, e me deparei com o professor que havia dado a palestra no dia fatídico do museu. De perto, ele parecia ainda mais jovem, os cabelos compridos amarrados num coque apertado, os óculos escorregando na ponta do nariz. Estava sentado atrás de uma mesa, entulhada de pastas, cadernos e outros diversos objetos de pesquisa. Ele olhou para nós e abriu um sorriso, exibindo dentes brancos e brilhantes.

— Olá – saudou – Em que posso ajudá-los? Alguma dúvida em relação à última prova?

— Hum... Não exatamente – murmurei.

— Vocês me parecem um pouco jovens para serem meus alunos – falou, franzindo a testa e ajeitando os óculos com o indicador.

Olhei de canto para os meninos. Ricardo inclinou a cabeça, como se me encorajando a falar. Suspirei.

— É porque não somos – falei – Meu nome é Lorena Manhãs, e esses são Ricardo e o Eric. Somos alunos do colégio Futuro, que fica a alguns quarteirões daqui.

— Entendo... – o professor falou, coçando o queixo. Parecia intrigado com a presença de alunos do ensino médio em sua sala. – Vocês me parecem um pouco familiares. Mas não sei onde...

— Nós estávamos no museu no dia da sua palestra – falou Ricardo de repente – Sabe, quando acharam aquela pedra indígena e aqueles escritos.

Os olhos do professor brilharam em surpresa e reconhecimento.

— Claro! – exclamou – Vocês são os jovens que invadiram a sala restrita, não são?

Senti minhas bochechas corarem um pouco. Eu sabia que isso teria que vir a tona, mas ainda se sentia meio desconfortável com a lembrança.

— É – falei – Sinto muito por isso.

— Ah não, não se desculpe – ele apressou-se em dizer – Eu acho que a curiosidade é o que move o mundo acima de tudo. E vocês, jovens, devem mesmo ser curiosos, pois em breve o mundo será de vocês.

Eu não sabia o que dizer em relação aquilo, e olhei para os meninos, pedindo ajuda. Ricardo começou, sem jeito:

— Bom, é meio que sobre isso que viemos falar com o senhor – disse – Quando entramos na sala...

— O que sabe sobre aquela pedra? – disparou Eric, interrompendo Ricardo de súbito. Lancei um olhar exasperado para ele antes de voltar a atenção para o professor.

Este não parecia espantado pela pergunta súbita de Eric, ou pelo menos não demonstrou. Suspirou, massageando levemente a área entre as sobrancelhas.

— Bem, os curadores do museu não permitiram que eu a levasse para uma análise mais aprofundada – disse – Mas, pelo que observei, com base nos meus estudos, aquela pedra, como você diz, era um monumento indígena a algum tipo de divindade. Tenho certeza que vocês notaram os desenhos gravados nela, estou certo?

— Sim – falei, e os meninos assentiram.

— Aqueles desenhos representavam as estações do ano, que são bem marcadas nessa região, e a influência dos deuses sobre ela. Suponho que aquele monumento funcionaria para eles como um canal entre o mundo deles e o plano divino. Eles acreditavam, provavelmente, que ele continha propriedades especiais.

— Como mágica? – perguntei, sentindo o coração acelerar.

Os olhos castanhos do professor me examinaram com curiosidade.

— Sim – falou – Suponho que sim.

Troquei olhares com Ricardo e Eric. Agora era hora de checar se ele sabia alguma coisa.

— Então... – começou Ricardo – É que desde aquele dia, no museu, algumas coisas... Estranhas vêm acontecendo com a gente e com nossos amigos.

— Pra dizer o mínimo – murmurou Eric.

— Ah? – o professor ergueu as sobrancelhas. – Que tipo de coisas estranhas, poderia especificar?

Nós três olhamos um para o outro, sem saber bem o que dizer. Se revelássemos demais e ele não soubesse de nada, poderíamos ir parar num manicômio, ou amarrados a uma mesa de laboratório, caso ele acreditasse.

— Nós... – falei, por fim – Não temos nos sentido nós mesmos desde então.

Olhei nos olhos do professor, na esperança de ver algum tipo de reconhecimento, mas o rosto dele estava inexpressivo.

— Bom – disse – O contato com a cultura e história certamente muda uma pessoa. Talvez vocês estejam vivenciando essa experiência.

Não consegui conter um suspiro desanimado. Olhei de canto para Ricardo e Eric, que pareciam tão desapontados quanto eu.

— Acho que sim – falei – Bem, obrigada pelo seu tempo, professor.

— Foi um prazer conhecer jovens tão interessados no meu trabalho – sorriu ele.

Nós três fomos saindo da sala, a decepção estampada no nosso semblante. Mas antes de chegar a porta, sem saber por que, me virei:

— Professor?

Ele ergueu os olhos de uma das pastas que examinava.

— Sim?

— O que você disse sobre os indígenas acreditarem que a pedra é mágica – inspirei fundo – Eu também acredito.

E me virei, sem esperar pela reação dele.

Mal nós três havíamos pisado no corredor, passos apressados e a voz grave do professor nos fez parar:

— Esperem!

Nos viramos, surpresos. O professor Santiago andou até nós, parecendo afobado, e parou diante de mim, tocando levemente meu ombro.

Ele estava com uma expressão hesitante no rosto, como se não tivesse certeza se devia ou não falar. Por fim, suspirou, parecendo decidir.

— Pode haver algumas coisas que eu saiba sobre a pedra que não contei a vocês – disse – Mas aqui não é o local mais apropriado para falar sobre isso.

Ele retirou um pedaço de papel do bolso, e o colocou na palma da minha mão.

— Este é o endereço da minha casa – falou – Estarei ocupado pela maior parte da semana, mas se você e seus amigos tiverem interesse, gostaria que viessem me fazer uma visita na sexta feira à tarde. Então, contarei a vocês tudo o que quiserem.

E, com uma última piscada pra nós, saiu andando corredor afora, deixando nós três congelados e perplexos.

— Ok... – murmurei – Que diabo foi isso?

Eric pegou o endereço da minha mão, examinando-o atentamente.

— Acho que finalmente estamos chegando a algum lugar – falou.

— É – concordou Ricardo – Acho que agora podemos conseguir algumas respostas. – ele assentiu, e eu concordei.

Eu só não sabia se ia gostar daquelas respostas.


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