Os Treze Guardiões escrita por Miss Lidenbrock


Capítulo 6
Fera a solta




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— Todo mundo guardando o celular na mochila – instruiu o fiscal de prova, lançando um rápido olhar ao relógio. – Vou começar a distribuir as provas em dois minutos.

Suspirei, a mão apoiada no queixo. Olhei de canto pra Gisele, que desenhou as palavras “vai dar tudo certo” com os lábios. Dei um sorrisinho pra ela, mas sabia que ela estava tão cansada e nervosa quanto eu. Nenhuma de nós duas havia dormido muito na noite anterior.

Olhei em volta. Naquela sala estavam todas as pessoas que estiveram presentes no acontecimento na sala restrita do museu. Observei cada um deles, tentando identificar algum comportamento estranho. Renata e Samir conversavam e riam baixinho, aparentemente discutindo o episódio de uma série. Paulo e Daniel pareciam estar bolando um complexo sistema de colas, o que não era nenhuma surpresa. Pâmela lixava as unhas, totalmente alheia ao que acontecia na sala. Leo estava batucando a mesa com a caneta e assobiando uma música que parecia uma versão desafinada de “forever” do Kiss. Eric estava encostado na parede ouvindo música nos fones de ouvido, ignorando totalmente a ordem de guardar os celulares. Sofia organizava uma quantidade surpreendente de canetas em cima da mesa. Bernardo dava uma última folheada no caderno de geografia, parecendo desesperado. Eduardo estava, como sempre, tentando impressionar o fiscal contando sobre seus inúmeros prêmios acadêmicos. O fiscal escutava com uma expressão que não podia ser mais desinteressada. E Ricardo... Ricardo sorria pra mim, piscando quando meu olhar encontrou o seu. Senti imediatamente meu rosto esquentar.

Todo mundo parecia normal. Ninguém com cara de quem havia se metamorfoseado em animal recentemente.

— Muito bem, pessoal, apenas lápis e caneta em cima da mesa – falou o fiscal, levantando-se para distribuir as provas.

Quando ele jogou o grosso caderno de papel em cima da minha mesa, suspirei. Com tudo o que estava acontecendo, eu mal havia conseguido me concentrar em estudar pra prova. Por sorte, eu costumava prestar atenção nas aulas, de modo que aquilo não seria um desastre completo.

— Podem começar – disse ele, checando o relógio – Vocês tem uma hora e meia.

Fiz as primeiras questões no automático, e depois fui procurando as menos complicadas de resolver. Por mais que eu me esforçasse, meu cérebro simplesmente não estava interessado na NAFTA ou no MERCOSUL naquele momento. Minha mente continuava voltando ao momento em que eu encarara aquele tigre no espelho e me dera conta de que ele era eu.

Por um instante, pensei em desistir e entregar a prova do jeito que estava, mas então minha bolsa e a imagem de cansaço da minha mãe ao chegar do trabalho todos os dias me veio à cabeça, e, às duras penas, consegui terminar de resolver as questões.

Saí da sala sentindo o peso da derrota nas costas. Além de mim, só Eduardo e os gêmeos – que pareciam muito satisfeitos com o êxito do seu sistema de colas – haviam saído.

Mas mal eu sentara no banco, Gisele saiu da sala e veio se juntar a mim. Parecia tão desanimada quanto eu.

— E então? – perguntei.

— Uma merda – respondeu ela – E você?

— Também – suspirei. – Acho que no meu cérebro agora não tem espaço pra geografia.

— Nem me fale – disse Gisele – Quanto antes resolvermos essa história, melhor.

— A pergunta é: Como vamos fazer isso?

— Podíamos começar contando a verdade pra Renata e o Samir – falou ela, soando esperançosa – Me sinto péssima escondendo coisas deles. Além disso, eles podiam nos ajudar.

Mordi o lábio. Eu também odiava ter de guardar segredo dos meus melhores amigos, mas aquilo não era o tipo de coisa que se contava numa conversa casual.

— Precisamos tomar cuidado com o que dissermos pra eles – falei – Não queremos assustá-los, e além disso...

— Shhh – Gisele sibilou, e ergui os olhos pra ver Samir e Renata vindo na nossa direção.

— Ufa! – Renata exclamou, esparramando-se ao meu lado – Essa prova acabou comigo. Preciso de comida – falou, abrindo a bolsa e pegando o pote de lanches que sempre reservava pros dias de prova.

— Talvez se você não ficasse desenhando em todas as aulas, se saísse melhor – assinalou Samir.

— Não me enche – Renata resmungou, enfiando um salgadinho na boca – Eu to naqueles dias. Tenho direito de reclamar de tudo.

— O que é isso? – Gisele franziu o nariz para a comida no pote de Renata.

— Coxinha de frango. Quer? – provocou.

— Ugh. De jeito nenhum.

— Você anda comendo tanto frango que daqui a pouco vai criar penas – zombou Samir.

— Qual parte do “não me enche” você não entendeu?

Olhei em volta, desviando a atenção da discussão dos dois. A essa altura, quase todo mundo já tinha saído da sala. Observei Pâmela num canto, falando animadamente no celular, e Eric, sentado, rabiscando alguma coisa num caderno. Bernardo andava pelo pátio com as mãos nos bolsos e a cabeça baixa, e Leo e Ricardo vinham logo atrás dele. Sofia foi a última a deixar a sala, e eu acenei pra que ela viesse na nossa direção.

— Como foi a prova? – perguntei, assim que ela sentou.

— Ah, foi boa. Eu... – ela se interrompeu, olhando para o lado. Todas as conversas morreram a medida em que percebíamos a confusão no centro do pátio.

— Ei, seu cusão – gritava Leo para Bernardo, que parecia querer estar em qualquer lugar, menos ali. – Tô falando com você. Perguntei por que é que você não me passou cola!

O rosto de Bernardo se fechou. Ricardo tentava conversar com Leo, pedindo pra ele deixar pra lá, mas o outro parecia não ouvir.

— Eu não ia correr o risco de me ferrar só por sua causa – disse Bernardo, a voz grave e baixa reverberando no pátio – Problema é seu se não estudou.

O peito de Leo pareceu inchar com a raiva, e ele se aproximou mais dois passos de Bernardo.

— Ah, mas você vai se ferrar sim. E muito.

Balancei a cabeça, incrédula. Eu não sabia como Leo tinha coragem de puxar briga de alguém tão grande quanto Bernardo, mesmo que ele não fosse uma pessoa violenta.

Eu estava começando a ter um pressentimento muito, muito ruim. Se aquela briga piorasse...

Olhei para Gisele e vi que ela estava tento o mesmo pensamento que o meu.

— Leo! – gritou ela – Para com isso, deixa ele!

— É, cara – falou Ricardo, pondo a mão no ombro do amigo – Deixa isso pra lá.

Leo olhou para Gisele, depois para Ricardo, e por um instante feliz eu achei que ele fosse desistir, mas ele logo voltou os olhos para Bernardo, o rosto ainda furioso.

— Eu só vou ensinar uma ou duas lições pra esse babaca – falou.

— Você não quer fazer isso, cara – disse Bernardo, as mãos espalmadas na frente do corpo num sinal de rendição.

Os gêmeos e Eric começaram a se adiantar na direção de Leo, mas Bernardo fez um sinal para que eles se afastassem.

— Ah, quero sim. – replicou Leo, irritado.

— Eu nem sabia as respostas que você queria! Não tinha como te passar cola!

Com isso, o rosto de Leo se abriu num sorriso cruel.

— Ah, é verdade. Esqueci que você é um retardado que não consegui tirar nenhuma nota acima de quatro. Que vergonha... O que a mamãe vai pensar quando você chegar em casa com outra nota baixa?

O rosto de Bernardo ficou completamente vermelho, e suas mãos se cerraram em punhos. Senti uma onda de pena dele e outra de raiva por Leo. Ninguém merecia ser humilhado assim.

— Por falar nisso, eu vi sua mãe na reunião de pais outro dia – continuou Leo, olhando pra Bernardo com um sorriso horrível – Quem diria que uma aberração como você ia ter uma mãe tão gostosa, hein? Sabe o que eu iria fazer com ela se a visse de novo?

E então ele se inclinou no ouvido de Bernardo para dizer alguma coisa.

Até hoje, não faço a menor idéia do que ele disse, mas deve ter sido algo realmente horrível, porque os olhos de Bernardo se arregalaram e a expressão mais furiosa surgiu no rosto dele. Suas mãos e braços começaram a tremer de raiva.

— Ah, não... – murmurou Gisele – Lorena...

Mas já era tarde demais para fazer qualquer coisa. A forma de Bernardo tremeluziu, e então pareceu se expandir, como um vídeo muito acelerado de crescimento. Uma grossa camada de pelos começou a cobrir toda a pele, o rosto se alongou até formar um focinho, e de repente estávamos diante de um...

— Urso – resmunguei – Será que ninguém pode se transformar num coelhinho fofinho, ou num esquilo inofensivo?

Todos no pátio estavam completamente estáticos. Leo, cara a cara com o urso, estava incrivelmente pálido, tremendo, o rosto congelado em uma máscara de terror.

— Ah... Meu...

O urso, rugiu, um som tão alto e feroz que sacudiu até o último dos meus ossos.

— Corram! – gritei – Todo mundo, corre!

Foi como se eu houvesse pressionado um botão de ligar em todo mundo, pois todos desataram a correr em todas as direções. Leo saiu de seu estado catatônico e disparou em direção ao ginásio.

Eu, Sofia e Gisele nos escondemos por trás de um banco, usando-o como escudo. O urso pareceu confuso com todo mundo correndo para todos os lados, sem saber a quem perseguir, o que deu à maioria tempo de se esconder.

 - Ah, meu deus -exclamou Gisele, respirando como uma locomotiva - O que vamos fazer?

— Eu não sei! - respondi, me agarrando ao banco como se fosse um bote salva vidas - Eu realmente não estava esperando por isso!

 - Ah, não! - exclamou Sofia de repente, desviando nossa atenção - Olhem!

Olhamos por cima do banco. Eduardo estava caído no chão, e um dos bancos havia caído bem em cima de sua perna, impedindo-o de sair. Ele tentava desesperadamente se soltar, enquanto o urso - Bernardo - se aproximava dele com uma expressão faminta nos olhos.

 - Puta que pariu! - Gisele, que quase nunca falava palavrão, soltou - Lorena, nós temos que fazer alguma coisa!

Sim, mas o quê? Eu pensava, o pânico toldando minha mente.

Por um louco instante, pensei em me transformar e lutar com ele. Será que um tigre ganharia de um urso? Mas eu nem sabia como fazer isso. Só havia me transformado uma vez, e totalmente por acidente. Além do mais, urso ou não, Bernardo ainda era uma pessoa, e eu não queria machucá-lo.

Estava tão imersa em meus pensamentos desesperados que demorei a notar Sofia lentamente saindo detrás do banco.

— Sofia, o que está fazendo? - sibilei - Ficou maluca?

— Calma - pediu ela, embora a expressão em seu rosto não fosse nada calma - Acho que tive uma ideia.

— Não... - começou Gisele, mas Sofia já tinha se afastado e se aproximava lentamente do Bernardo/urso.

O urso então desviou a atenção de Eduardo pra Sofia, bufando ameaçadoramente enquanto ela murmurava pra ele em voz baixa.

Com meus novos ouvidos super sensíveis, consegui ouvir o que ela dizia, mesmo com meu coração em pânico retumbando nos ouvidos.

— Calma - sussurrava ela - Eu sei que você está aí dentro. Tente me ouvir.

O urso avançou dois passos na direção de Sofia, e eu senti o pânico aflorar rapidamente no peito.

— Não quero nem ver – murmurou Gisele, colocando as mãos sobre o rosto – Ele pode rasgá-la em pedaços em dois segundos!

Prendi a respiração, observando a cena atentamente, meu cérebro trabalhando desesperadamente em busca de algo que eu pudesse fazer. Sofia, alheia ao nosso pânico, continuava murmurando tranquilizadoramente para Bernardo.

— Se concentre no som da minha voz – dizia ela – Está tudo bem. Ninguém aqui vai machucar você.

— Como assim? – a voz de Paulo exclamou, em algum lugar à minha esquerda – Ele é que pode machucar a gente.

O urso continuava a encarar Sofia, mas agora sua expressão parecia mais curiosa do que irritada. Arregalei os olhos, surpresa, enquanto Sofia se aproximava dele lentamente.

— Se concentre em mim – ela sussurrou – E tente se acalmar. Eu sei que você consegue.

E, diante de nossos olhares perplexos, encostou a mão na cabeça do urso, acariciando-o lentamente.

O urso fechou os olhos, parecendo respirar pesadamente, e, para o meu espanto, sua forma tremeluziu, e, em poucos instantes, Bernardo estava de volta ao normal, com Sofia passando a mão em seus cabelos, a expressão assustada, mas aliviada.

Num salto, levantei e saí correndo detrás do banco em direção a eles.

— Sofia, você conseguiu! – exclamei – Como fez isso?

Sofia balançou a cabeça, mordendo o lábio, parecendo tão confusa quanto eu.

— Eu não sei – falou – Só... Pareceu certo.

Olhei para Bernardo, que estava muito pálido, parecendo extremamente assustado e confuso.

— O que... – gaguejou ele, respirando fundo pra tentar se recompor – O que acabou de acontecer?

— Cara, você virou um urso— disse Paulo, os olhos muito arregalados e brilhantes, como uma criança com um brinquedo novo. – Você sempre pôde fazer isso? Porque nós totalmente podíamos ter usado isso em vários trotes...

Renata pisou com força no pé dele, antes que terminasse de falar.

— Ai! Qual é? – reclamou ele.

— Você realmente tem a sensibilidade de um elefante, não é? – retrucou ela.

Bernardo parecia mal ouvir a discussão, a expressão cada vez mais confusa e apavorada.

— Isso nunca aconteceu antes – murmurou ele – Eu não entendo...

Gentilmente, pousei a mão no ombro dele, que mal ergueu a cabeça pra olhar pra mim.

— Nós podemos explicar – falei – Bem, mais ou menos.

— Apenas tente ficar calmo – instruiu Gisele – Se você se estressar, corre o risco de se transformar de novo.

— Peraí – falou Ricardo, erguendo as sobrancelhas – Como você sabe disso?

— E porque vocês duas não estão surtando como o resto de nós? – perguntou Renata, olhando pra nós com a testa franzida.

Suspirei. Se havia um momento certo pra contar, era agora. Todos que precisavam saber estavam ali.

— Isso que aconteceu com o Bernardo – comecei – Já aconteceu antes, comigo e com a Gisele.

— Vocês também viraram ursos? – perguntou Daniel, os olhos arregalados.

— Bom, não exatamente – falei – Eu virei um tigre. E a Gisele se transformou num guepardo.

— Guê o quê? – Daniel franziu o rosto.

— É um animal que...

— Quem se importa? – exclamou Pâmela, de repente – As pessoas estão virando animais! Isso é ridículo! Eu não vou me transformar em nenhum bicho!

— Bom talvez não – falou Renata com uma careta – Considerando que você já é um.

— Ora, sua...

— Ei, ei! Sem brigas! – exclamei – Será que ninguém lembra o que acabou de acontecer na última vez que teve uma briga?

— Mas ela tem razão – falou Eduardo, parecendo incrivelmente desconfortável – Eu não quero virar nenhum animal. Isso nem devia ser possível!

— Você acabou de ver acontecer, babaca – resmungou Leo.

— Mas afinal – Samir interveio, os olhos fixos em Gisele – Porque isso está acontecendo?

Eu e Gisele nos entreolhamos. Por fim, dei de ombros, suspirando.

— Bem, temos uma teoria – falei – Achamos que o que causou isso foi o que aconteceu naquele dia, na excursão pro museu.

— Você quer dizer, quando invadimos a sala restrita – Eric perguntou, olhando diretamente nos meus olhos. Me mexi, desconfortável.

— O que aconteceu lá dentro foi, no mínimo, estranho – eu disse – E sei que todos vocês tiveram uma sensação esquisita quando estavam lá. Só pode ter sido isso. Foi a coisa mais bizarra que aconteceu com a gente nos últimos tempos.

Por um instante, todos ficaram em silêncio, provavelmente digerindo a informação. Até que Leo quebrou o silêncio, exclamando com raiva:

— Quer dizer então que tudo isso é culpa dela? – falou, apontando para Sofia, que se encolheu, espantada.

— Como é? – falei, erguendo as sobrancelhas. Eu não esperava por essa.

— É! – concordou Pâmela – Foi a esquisita que começou a ler aqueles pergaminhos indígenas naquela língua estranha. Foi ela que causou isso tudo!

Todos começaram a murmurar ao mesmo tempo, alguns concordando, outros tentando discutir. Muitos olhavam acusadoramente pra Sofia, que ficava mais pálida a cada minuto.

— Se não fosse por você, não estaríamos nessa situação! – bradou Pâmela.

— Eu não... – murmurou Sofia, tão baixo que mal era audível.

— Deixem ela em paz – falou Bernardo, de repente – Não é culpa dela!

Isso fez com que Leo e Pâmela se afastassem, assustados, como se Bernardo fosse se transformar em um urso a qualquer momento e devorá-los. Bernardo percebeu o gesto, e seu rosto ficou tão angustiado que meu coração se contorceu de pena.

— É! – gritou Renata, apontando pra Leo – Se alguém tem culpa nessa história, é você! Você é quem nos arrastou praquela sala em primeiro lugar!

— E como é que eu ia saber que isso ia acontecer?! – Leo exclamou com irritação – Além disso, não obriguei ninguém a ir comigo. Todo mundo foi porque quis!

Os murmúrios logo se tornaram gritos, cada um tentando falar mais alto que o outro. Toda aquela barulheira já estava fazendo meus ouvidos doerem, e eu sentia uma irritação crescente se acumulando dentro de mim.

— Silêncio! – falei, tentando sobrepor a voz ao barulho. – Ei! Calem a boca!

Ninguém demonstrou escutar. Suspirando, subi em cima de um dos poucos bancos que não haviam sido derrubados pelo Bernardo/Urso, e tomei fôlego.

Minha intenção era dar um grito alto, mas o que saiu em vez disso foi um ensurdecedor e poderoso rugido, que fez todos se calarem imediatamente, espantados.

Senti minhas bochechas corarem violentamente. Acho que a irritação era maior do que eu pensara afinal.

— Bem, isso funcionou – murmurei, para depois levantar a voz: - Prestem atenção! Não adianta ficar tentando adivinhar de quem é a culpa! Estamos todos envolvidos nisso, e precisamos nos unir pra pensar numa maneira de resolver essa situação!

— Mas como? – perguntou Samir, o semblante preocupado – Nem sabemos direito o que está acontecendo. Precisamos de ajuda, e não tem ninguém que possa nos ajudar. No mínimo, se contássemos pra alguém íamos achar que estamos loucos.

— E, se acreditarem, podem nos trancar num laboratório e fazer experiências com a gente – ressaltou Daniel – O que até que seria meio legal, pensando bem.

Olhei de canto para Gisele. Já tínhamos pensado nisso também.

— Tem uma pessoa que talvez possa nos ajudar – falei – O professor Santiago Rivera.

— Aquele cara que deu a palestra? – perguntou Ricardo, franzindo as sobrancelhas.

— Isso. Ele parece saber tudo sobre aquele artefato indígena e os pergaminhos que foram achados com ele. Talvez a pesquisa dele não se limite só à cultura indígena. Talvez ele saiba o que a pedra faz. Talvez possa nos ajudar.

— Isso é um “talvez” muito grande – ressaltou Eduardo.

— É nossa única pista – dei de ombros – Temos que pelo menos tentar.

— E como vamos achar esse cara? – perguntou Bernardo, ansioso. Imaginei que, de todo mundo, ele estaria ainda mais louco pra acabar com aquilo.

— Eu sei onde ele está – disse Renata, e diante dos olhares surpresos de todo mundo, deu de ombros – Minha tia trabalha na universidade, e disse que ele está dando aulas de história lá.

— Ótimo – falei, me sentindo um pouco mais esperançosa. Parecia que aquilo estava indo a algum lugar, afinal. – Posso ir lá na segunda feira. Se alguém mais quiser ir junto...

— Eu vou – Ricardo e Eric falaram ao mesmo tempo, olhando surpresos um para o outro. Eu, mais surpresa ainda, encarei os dois.

— Certo – falei – Vamos nós três, então. O resto de vocês, bom... Tentem não se transformar em animais no meio de muita gente até lá.

— Lorena e eu achamos que a transformação tem a ver com os batimentos cardíacos – disse Gisele – Ela estava no meio de um jogo de vôlei quando aconteceu, e estava, hum, estressada. Eu estava correndo, e o Bernardo estava com raiva. Tudo isso são coisas que aceleram os batimentos, então vocês talvez queiram evitar isso por esses dias.

— Talvez você não queira chegar muito perto de mim – Paulo falou para Renata, sorrindo – Posso acelerar seu coração.

— Ah, garoto, pelo amor de deus – resmungou ela.

Desci do banco, suspirando, pra ficar ao lado de Gisele, e imediatamente fomos cercados por Sofia, Samir e Renata.

— Não acredito que vocês esconderam isso da gente! – reclamou Renata – Esse é o tipo de informação que você não guarda dos amigos!

— Nós não sabíamos se vocês iam acreditar – justificou Gisele – Não é tão simples chegar dizendo “e aí, sabia que nós podemos nos transformar em animais e vocês podem ser os próximos?”

— Nós íamos acreditar – resmungou Renata – Bem, eu acho.

— Isso tudo é muito louco – falou Samir, os olhos brilhando de excitação – Qual animal vocês acham que eu sou? Espero que seja um bem foda, tipo um dragão-de-komodo ou...

— Você não está seriamente empolgado com isso, está? – exclamou Gisele – Isso não é uma coisa legal! Isso é um problema sério!

— Ah, você tem que admitir que é um pouco legal – retrucou Samir – É como se nós tivéssemos ganhado super poderes!

Eu mal prestava atenção na discussão dos dois. Olhava pra Sofia, que parecia incomumente pálida, os olhos pregados no chão.

— Sofia – murmurei gentilmente – Você está bem?

Ela ergueu a cabeça pra me encarar, e seus olhos estavam brilhando com lágrimas não derramadas.

— O Leo tinha razão – sussurrou ela – A culpa disso tudo é minha.

— O Leo é um idiota – apontou Renata – Você não devia ligar pro que ele diz.

— Você não sabia o que estava fazendo – ressaltou Samir – Nada disso é culpa sua.

Mas ela só balançou a cabeça, como se estivesse escutando.

— Quando eu vi aqueles pergaminhos na sala, eu... Foi como se eu estivesse olhando para alguma coisa muito familiar, algo que eu já conhecia há muito tempo. E quando eu comecei a falar... Parte de mim entendia o que eu estava falando. Eu sabia o que estava acontecendo. Eu tentei dizer a mim mesma pra parar, mas eu simplesmente... Não consegui, como já não controlasse mais o meu corpo. Eu... – nesse momento ela se interrompeu, e um enorme soluço se irrompeu de sua garganta. Ela cobriu o rosto, tentando conter as lágrimas.

Com um rápido olhar entre meus amigos, nós todos tomamos uma decisão ao mesmo tempo. Todos envolvemos Sofia num abraço, e, aos poucos, seus soluços cessaram.

— Nós estamos do seu lado – falei – E vamos resolver isso juntos. Prometo.

Assim que nos desvencilhamos do abraço, suspirei, sentindo um pouco do peso sair dos meus ombros.

— Melhor eu ir – falei – Assim que chegar em casa, vou fazer uma pesquisa sobre esse tal professor Santiago, e tentar descobrir se ele pode mesmo nos ajudar.

— Boa sorte – disse Gisele, enquanto eu me afastava.

Eu estava quase no portão quando uma voz me deteve:

— Lorena, espere!

Me virei e vi Ricardo correndo em minha direção. Como de costume, meu coração começou a retumbar diante da presença dele.

— Ei – disse ele, com um sorriso – Tentei falar com você a semana inteira, mas quase não te encontrava.

— Pois é... – dei de ombros, com um sorriso bobo na cara – Foi uma semana complicada.

— Imagino – riu ele – Então... Tigresa, hein?

— Parece que sim – falei, sentindo meu rosto inteiro corar.

— Isso tudo é uma loucura – disse ele, balançando a cabeça – E eu sei que provavelmente é o pior momento pra isso, mas eu queria conversar com você sobre uma coisa.

Ergui as sobrancelhas em expectativa. Ele parecia surpreendentemente sem graça, passando a mão pela nuca, os olhos no chão.

— A verdade é que... Eu gosto de você. Muito. – falou ele, olhando pra mim com um sorriso tímido. – E queria saber se, mesmo com toda essa coisa acontecendo, você não teria tempo de, sei lá, sair comigo. Pra gente se conhecer melhor, sabe.

Minha boca se abriu num pequeno “oh”, e meu coração, que já estava descontrolado, começou a bater num ritmo perfeito pra uma batida eletrônica.

— Você sairia comigo – comecei devagar – Mesmo que eu seja capaz de ocasionalmente me transformar num tigre enorme?

— Eu realmente não ligo pra isso – ele respondeu com um sorriso – Além disso, agora vou poder dizer que estou saindo com uma verdadeira gata.

Uma risada nervosa escapou dos meus lábios.

— Uau, essa foi mesmo péssima.

— Eu não podia deixar passar – riu ele.

Um sorriso contente decorava meus lábios, o primeiro em muitos dias.

— Também gosto muito de você – falei suavemente – E adoro cinema, se você topar.

— Ótimo – sorriu ele – Esse fim de semana vou viajar com a minha irmã, mas o que você acha de sábado que vem?

— Perfeito – sorri – A pipoca é por minha conta.

— Legal – ele falou, um sorriso escancarado no rosto – Te vejo lá.

— Te vejo lá – murmurei, observando ele se afastar.

Aquilo quase apagou o nervosismo de toda a confusão que tinha acabado de acontecer, e eu quase fui saltitando pra parada de ônibus de tão animada. Eu tinha um encontro com o Ricardo. Eu mal podia acreditar.

Cheguei na parada ao mesmo tempo em que o ônibus. Erguendo os olhos, observei surpresa Eric subindo as escadas um pouco antes de mim.

— Eric! – chamei, sentando no assento ao lado dele. – Oi! Tinha esquecido que você também pegava esse ônibus.

Ele levantou os olhos do celular para me encarar, o rosto inexpressivo.

— É, bem – disse – Por acaso, nós moramos um do lado do outro.

Uma onda de constrangimento se abateu sobre mim. Mas eu não ia desistir da conversa tão fácil.

— Então... Uma loucura o que está acontecendo, não acha? – falei – Como você está lidando com isso?

Eric permaneceu alguns segundos em silêncio, e por fim, deu de ombros.

— Não sei – falou – Eu sei que devia estar pirando, mas não sinto nada. Acho que parte de mim ainda não acredita que isso esteja acontecendo. Quer dizer, a qualquer momento eu posso virar um bicho? Isso é loucura.

— Eu sei – mordi o lábio – Mas está acontecendo, e acho que todos nós devíamos tomar cuidado.

De repente, lembrei do ambiente na casa de Eric, cheio de gritos e brigas. Imaginei o que aconteceria se ele se estressasse demais um dia, e se transformasse num animal feroz na frente dos pais. Estremeci.

— Escuta... – comecei, hesitante – Se você alguma hora precisar de ajuda... Ou... Só precisar conversar, não tenha medo de falar comigo, certo? – sorri – Estou tentando empregar a política da boa vizinhança aqui.

Uma sombra de sorriso surgiu no rosto de Eric.

— Vou lembrar disso – falou – Então... Você está, sabe, bem com tudo isso?

Suspirei, sentindo o cansaço acumulado da semana inteira.

— Não diria que estou bem — falei – Mas está acontecendo, e eu tenho que enfrentar, certo?

— Você sempre foi corajosa – disse ele – Lembro que você teve a ideia de invadir a casa mal assombrada da rua de trás, e se recusou a sair até que estivéssemos explorado cada canto.

Virei o rosto pra olhar pra ele, surpresa.

— Achei que você não lembrasse de mim – murmurei.

— E eu achei que você não lembrasse de mim.

— Bem, você nunca veio falar comigo – apontei.

— Nem você – replicou ele – Não achei que fosse lembrar do moleque magricela que morava na casa ao lado.

— Claro que lembraria – falei, ofendida – Você... Era meu melhor amigo. Eu fiquei arrasada quando você foi embora.

Ele pareceu surpreso, e sua expressão ficou mais suave.

— Também fiquei triste por me despedir de você – sussurrou.

Após um segundo de hesitação, estendi a mão pra ele.

— Fomos amigos antes – falei – Podemos voltar a ser. Certo? Pode contar comigo pro que precisar.

Ele encarou minha mão por um segundo, e então a apertou, com um leve sorriso.

— Certo – disse – Amigos.

O ônibus parou na nossa rua nesse exato momento, e descemos a escada em silêncio.

— Até segunda então – gritei, já a porta de casa.

Ele acenou pra mim, um olhar divertido no rosto.

— Até segunda – disse, e entrou na casa.

Entrei, e me deparei com minha irmãzinha esparramada no sofá, assistindo desenho animado. Era uma cena tão normal, comparado ao que eu havia acabado de viver na escola.

— Oi – falei pra ela, largando a mochila no chão – A mamãe já chegou?

— Ela disse que só vem na hora do jantar – Giulia respondeu, mal tirando os olhos da tevê. – Como foi a prova?

— Boa – falei – Quando ela chegar, avisa que eu quero falar com ela?

— Tá – disse, e enquanto eu passava pro meu quarto, Nora se afastou de mim e sibilou com raiva. Agora eu entendia aquela reação. Eu devia estar exalando um cheiro de predador feroz agora.

Fui pra segurança do meu quarto, me jogando aliviada na cama. Peguei meu notebook, e após pensar um pouco, joguei no Google: Professor Santiago Rivera.

Havia menos resultados do que eu esperava. Um professor conceituado como ele devia ter vários trabalhos publicados, mas só encontrei dois ou três sites. Havia um link com uma entrevista dada por ele. Cliquei.

O que mais interessa o senhor na cultura indígena? Perguntava a repórter.

Eu sou fascinado pela maneira como os índios interagiam com a natureza, sorriu ele. Eles têm uma conexão com ela, um entendimento que nós, homens urbanos, só podemos imaginar. Eles se fundem com ela. É quase mágico.

“Mágica”, pensei. Com certeza havia algo de mágico no que havia acontecido.

Quando terminei a entrevista, busquei “artefatos indígenas”. Diversas imagens de cocares, vasos, cuias e estatuetas pipocaram na tela, mas nada parecido com a pedra que vimos no museu.

Exausta, desliguei o computador e me joguei na cama, olhando pro teto. Não sei dizer quanto tempo fiquei assim, até que a porta do quarto se abriu.

Minha mãe entrou, ainda vestindo o uniforme do hospital, os cabelos castanhos presos num coque, a expressão cansada mas sempre, sempre gentil.

— Sua irmã disse que você queria falar comigo – falou sentando na cama ao meu lado.

Apenas assenti, deixando que ela passasse as mãos nos meus cabelos, fechando os olhos com o carinho.

— Aconteceu alguma coisa na escola? – perguntou – Quer conversar?

O que não havia acontecido na escola? Pensei. O olhar angustiado de Bernardo ao perceber que estávamos com medo dele não saía da minha cabeça. Mas eu não podia contar nada daquilo à minha mãe.

— Acho que só preciso de colo – murmurei.

Sem que eu precisasse dizer mais nada, minha mãe me aninhou em seus braços, cantando baixinho a canção que costumava cantar pra mim quando eu era criança, enquanto acariciava meus cabelos.

Já sonhei nossa roda gigante esconde-esconde em você

Já avisei todo ser da noite que eu vou cuidar de você

Vou contar histórias dos dias depois de amanhã

Vou guardar tuas cores, tua primeira blusa de lã

Menina, vou te guardar comigo...

Fechei os olhos, me deixando embalar pela música, me permitindo esquecer os problemas, apenas por algumas horas.

Porque, depois disso, as coisas ficariam ainda mais complicadas.


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Notas finais do capítulo

A música do fim do capítulo se chama Menina, da Banda O Teatro Mágico, caso alguém tenha ficado curioso :)



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