Arcano escrita por Júpiter


Capítulo 1
I




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/773332/chapter/1

I

Não saberia mensurar ao certo a sensação de estar morrendo – as palavras me escapam. Mas era frio, intensamente frio. Uma presença gélida que invadia o meu corpo, dissolvendo qualquer resquício de lembrança sobre quem eu era, onde estava ou o que estava perdendo naquele momento. A vida que estava, lentamente, se perdendo de mim. A compreensão do tempo também se desmanchava, na mesma medida em que eu não conseguia mais sentir os músculos nas extremidades dos dedos. Não sabia ao certo há quanto tentava resistir, porém uma estranha calmaria se anunciava diante da intuição desoladora de que – em breve – tudo aquilo acabaria. Os tremores passariam, assim como a dor dos meus ferimentos já não estava comigo. O sangue tinha coagulado, começando a deixar as minhas mãos com o aspecto característico da gangrena. Não me importava – entender, ainda que inconscientemente, que estava abandonando aquele corpo me trazia paz. Uma paz acolhida pela brancura da neve que me envolvia. Como se, com o abraço da morte, neve eu também me tornaria.

Permiti que minha respiração cumprisse seu trajeto pesaroso. Apesar da vã dificuldade em forçar os meus pulmões para buscar mais oxigênio, eu sentia muita sonolência naquele momento. Se não fosse pelo frio, as pálpebras dos meus olhos poderiam se fechar. A resiliência em dormir me soava como uma dádiva depois de toda dor interna causada pelo choque hipotérmico. Queria logo ir embora. Inspirei profundamente, me sentindo pronta. Apenas recebi como resposta a ardência em minhas narinas. O compasso vagaroso da morte era cruel – me fazendo permanecer prostrada no chão, imóvel, congelando a cada novo instante. Uma tortura que não passava. Surgindo com alguma outra onda de dor, algum espasmo, algum tolo e fugaz desespero. Meu corpo, instintivamente, tentava ao máximo sobreviver à revelia.

A brancura, por sua vez, ali continuava. Tudo havia desaparecido por causa da nevasca, fazendo com que os meus olhos não conseguissem distinguir nada à minha frente. Era como se a realidade estivesse suspensa, me fazendo crer que restavam poucos instantes para que eu também me misturasse com o vazio. Contrariando meu corpo, ansiava como nunca por aquilo. Talvez fora essa a minha desmesura – chamar pela morte. Pedir para que ela me levasse rapidamente. Querer conhece-la. Porque, em verdade, nunca estamos preparados quando ela, de fato, chega.

Me dei conta do medo emergindo das profundezas quando pensei ter avistado uma figura fantasmagórica caminhando pela neve. Era enlouquecedor constatar que minha visão houvesse captado algo assim. Mas não estava enganada – alguém realmente se aproximava. Vagando enquanto se misturava com a paisagem de um branco opaco, sem emitir nenhum tipo de som. Num impulso, quis me mover. Meu corpo implorava por socorro, buscando de todas as formas emitir alguma reação. Uma capacidade absurda em tentar se proteger do estranho que havia me avistado e agora caminhava em minha direção. Porém, novamente fui invadida pela onda de dor, fraquejando as míseras forças que restavam em meus membros, congelados pelo frio intenso. Senti o coração bombear o máximo de sangue que conseguia, ainda assim. Apenas para ver o visitante se agachar diante de mim.

Provavelmente eu estava delirando por conta da hipotermia aguda, mas podia jurar que uma túnica branca, de seda macia, resvalava por sob minha pele trêmula. Meus pensamentos desconexos lutavam para decifrar aquela imagem, aquela espécie de enigma. A sua túnica emoldurava uma máscara prateada e, em torno, tudo o mais nele era da mesma brancura imaculada da neve que continuava a cair do céu. Como suas mãos enluvadas que se aproximavam com cuidado para tocar as extremidades dos meus dedos. Eu já não sentia nada. Não havia mais dor, ou medo, até mesmo a calmaria do desalento de outrora parecia se perder diante daquela curiosa presença ao meu lado. A exaustão, contudo, ganhava da teimosia de meu corpo, fazendo com que minha visão se escurecesse pouco a pouco. Tentei ainda virar o rosto de relance, por entre as mechas acastanhadas do meu longo cabelo. E, nesse momento, tive a certeza de que ele não poderia ser a morte. Uma onda diferente de paz, de repente, veio quando os seus olhos encontraram os meus, antes que a escuridão tomasse conta de mim por completo.

Não, definitivamente ele não poderia ser a morte. Meus pensamentos se perdiam, tentando em vão se agarrarem àquela última miragem – dos seus olhos de um azul claro, tão pacífico, que ornava com suas vestes brancas e o prateado de sua máscara.

Eu não poderia – e não queria – morrer sem ver novamente aqueles olhos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Arcano" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.