O Voador escrita por Gabriel Gorski


Capítulo 19
O Verdadeiro Guardião




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Depois de passarem por três casas torres e suas plantações, mais de uma hora mais tarde, já que Yearnan não podia andar normalmente, viram a vila ao longe. O terreno se mostrara mais frutífero no decorrer do caminho, com pastos e árvores variadas. Os arcos em pedra haviam ficado para trás, antes da Assolação.

Ao se aproximarem, viram que a vila era um aglomerado de casas bem construídas, com canos e tubulações expostas nas quinas, ao redor dos batentes das portas, acompanhando as vigas exteriores do enxaimel, contornando chaminés ou abaixo dos peitoris das janelas. Haviam jarros de flores na frente de quase todas as casas, quando não estavam pendurados nas paredes. Grossas estacas presas ao chão tinham no topo uma vela de cera de dragão queimando, com suas chamas das mais variadas cores. O chão da vila era coberto de pedra e algumas varandas dos estabelecimentos comuns estavam abarrotadas de pessoas, rindo e ouvindo música. Máquinas preenchiam os becos, guardadas até o dia seguinte, quando novamente seriam colocadas em funcionamento.

Era uma vila grande.

Ecco entrou numa estalagem, onde uma moça veio logo atendê-lo. O ambiente tinha o chão de madeira polida, assim como a maior parte das paredes. Não havia ninguém ali e as mesas estavam muito bem arrumadas.

— Bem-vindo, senhor. Gostaria de comer?

— Há quartos? – Ecco foi direto.

— Sim. – Ela respondeu. Para quantos?

— Três. Quanto fica?

— Três alanges.

— Feito.

Ecco foi até a porta chamar os dois amigos, que o seguiram até o quarto que a moça os levou. Era uma moça muito bonita, da idade deles, provavelmente. Tinha o cabelo escuro e longo, um olhar sério e intimidante, que se perde em memórias antigas. A boca dela era muito pequena, mas, quando sorria, se alargava incrivelmente. Suas roupas eram comuns, assim como ela: um vestido de lã de carneiro que ia até o chão de cor marrom e cinza, com um cinto na cintura. O braço direito trazia uma fita azul amarrada.

O quarto era confortável, uma grande cama para quatro ou cinco pessoas, uma lareira e uma bacia para banhar. A má iluminação dava um ar de mistério ao lugar. Ecco deu três das muitas moedas que tinha para a garota, que sorriu maliciosamente e disse.

— Por mais uma moeda, eu posso lhe fazer companhia esta noite.

— Mais tarde, talvez. – Ele respondeu, e esperou que se fosse para fechar a porta.

— Galanteador. – Nthaír o provocou.

— De maneira alguma. – Ecco gostava da sensação, ainda assim.

— Eu vou tomar um banho. – Disse Yearnan.

— Eu irei até o refeitório para estudar esses desenhos.

— Conheço o desenho. – Nthaír caçoou.

* * *

— Ecco? – Ochantgar perguntou. Duas visitas em um único dia era mais do que tivera em toda sua vida na prisão.

— Nós não terminamos o que começamos. – Respondeu o intruso.

— Vá embora, Ian. Não arrancará nada de mim.

— Claro que vou. – Duvidou. – Eu sempre consigo o que quero.

Ochantgar limitou-se a desdenhá-lo mais uma vez.

— As pessoas só conhecerão o teu nome por causa de uma balaena estupidamente grande.

— Não há maneiras de dar cabo a mim mesmo. – Retrucou. – Estive em tantas batalhas que não sou capaz de explicar a origem de muitas cicatrizes minhas.

— Ah, mas eu não vou simplesmente dar meia volta. – Respondeu o rapaz, em seu tom de voz que misturava doçura e maldade. – Ainda tenho muitas ferramentas que me ajudarão a arrancar de ti o coração.

* * *

— O que está lendo, moço?

Ecco ergueu a cabeça para ver que a garota o encontrara com a cara afundada no pergaminho de Ashad e no livro sobre ele. Estava numa parte interessante sobre como ele alcançou pensamentos inimagináveis para a época em que viveu. O livro, escrito por algum exorys, disse que “ele estava milhares de anos à frente do que nós estamos hoje.”.

— Nada de especial. – Respondeu, e decidiu tentar falar difícil, usando uma frase que lera. – Um grande predecessor do fantástico Novo Mundo.

Os olhos da garota brilhavam de curiosidade.

— E gosta desse homem tanto assim?

— Para ser sincero, não o conheço bem. Por isso estou lendo.

— E onde você conseguiu este livro?

— O guardião da Prisão de Ochantgar me deu.

A expressão no rosto da garota passou da alegria à descrença num piscar de olhos.

— A prisão está abandonada há mais de cinquenta anos.

Que?

Ecco entrou num estado de paralisia física enquanto sua mente fervilhava com teorias e possibilidades. Bastou dois ou três segundos para perceber que ele não conhecia a biblioteca quando procurou o livro, ou até mesmo a sala. Ele não gritara por “alto lá” quando se aproximaram, nem soube explicar as perguntas que lhe foram feitas. Como, com tantos livros e tamanha solidão alguém não saberia explicar alguma coisa?

— Preciso voltar lá.

— Espere! – Disse a garota.

— Não há tempo. Por favor, guarde estas coisas para mim. Eu vou voltar.

E saiu. Pegou um archote que estava do lado de fora e pôs-se a correr na direção da prisão, sem olhar para trás.

Vinte minutos depois, Ecco estava cansado como uma cocatrice doméstica quando foge do próprio dono. O archote ameaçara apagar tantas vezes com o vento contra as chamas que por várias ocasiões teve que diminuir a velocidade para evitar que ficasse em escuridão.

Em algum lugar da vila, Ecco imaginou a garota o observando, esperando que ele voltasse logo. Por esse motivo, recusou-se, por incontáveis vezes, a olhar para trás.

— Que droga, Ecco. – Começou a falar sozinho enquanto caminhava. – Você é um demente? De onde saiu a maldita ideia de sair sozinho durante a madrugada? Vai chegar na prisão e bater no gordo com o archote? O mesmo que vai servir de farol pra que ele te veja a quinhentos côvados de distância? Eu sou um palerma, mesmo.

De respiração mais leve, Ecco decidiu, após algum tempo em silêncio, que correria mais um pouco. Não demorou para ver o seu destino se aproximar conforme achegava-se. Desacelerou o ritmo até alcançar o topo das escadas, iluminadas pelo céu através de suas incontáveis estrelas.

Ecco sentiu o coração acelerando, mesmo que estivesse fazendo movimentos suaves ao se aproximar do portão. Estava com medo. Isso não o impediu, porém, de atravessar as grades, uma de cada vez, com extrema cuidado para não derrubar o archote. Quando pisou no pátio quadrangular, sentiu uma forte pancada debaixo de seus pés, como um forte tremor. Estou perdido, morto e condenado setenta e sete vezes.

— Calma, Ecco. – Sussurrou. – Foi sua imaginação.

Deu certo. Estando mais calmo, Ecco tomou coragem para continuar andando e logo contornou o torreão esquerdo. Abriu a porta e entrou, cautelosamente, evitando pisar com pés muito firmes para que a madeira não rangesse. Quando chegou ao terceiro andar, encontrou a porta escancarada e papéis pelo chão, amassados, rasgados, espalhados como se um furacão tivesse passado por ali para preparar o cômodo aos visitantes noturnos.

A destruição não se resumia a livros despedaçados. O telescópio estava quebrado no meio, assim como a mesa principal. A poeira pairava no ar, provocando uma sensação de espirro, mas que Ecco aguentou ao coçar o nariz.

Ecco pegou alguns livros que julgou serem importantes (quase todos que estavam intactos) e os carregou para fora do lugar, deixando o archote na sala. Ao sair do torreão, viu uma porta aberta, próxima às muralhas da fortaleza e decidiu que seria um bom lugar para deixá-los, escondidos dentro daquela sala. Voltou ao terceiro andar para buscar o archote, com calma, fazendo silêncio. Grande foi sua surpresa ao encontrar Ian lá dentro, de costas para ele, procurando por algo.

Devagar.

Ecco tentou afastar-se, um passo de cada vez. Já estava no segundo andar quando a madeira rangeu sob seus pés. Passos rebentaram na sala acima de si, e aquele foi o estopim para correr e fugir.

— Volte aqui, seu imprestável! – Gritou Ian, ao perceber que o intruso escapava.

Claro que eu vou voltar, pensou Ecco. Permitir que me mate por descobrir que você não é guardião dessa birosca.

Saiu do torreão alarmado. Pensou nos livros dentro da sala, mas ir até eles era má ideia. Foi por isso que Ecco correu para o calabouço, onde Ian não o encontraria. Entrou às pressas, como da última vez. Logo encontrou-se cego, mais cego ainda sem a luz do eda para invadir as frestas. Na porta, Ian erguia um archote na mão esquerda e uma espada de aço em estilo ezraellyano na outra.

Uma espada de aço em estilo ezraellyano era uma coisa cara. E rara. Os vincos eram normalmente largos e compridos, aumentando o tamanho da espada em vários sentidos. Seu peso porém, permanecia o mesmo de uma espada normal. O elemento chave era o modo como forjavam, envolvendo a magia oculta de seus feiticeiros, tornando-a leve como pluma e dura como diamante, quase inquebrável, poderosa como uma explosão.

Ian colocou o primeiro pé dentro do calabouço, e em seguida o outro, se aproximando de Ecco com um sorriso no rosto. A flama na tocha se apagou ao adentrar a escuridão, consumida num piscar de olhos assim como o fogo consome a palha.

— Saia logo daí, ou eu terei que te matar no escuro.

— Pode vir.

— Reconheço esta voz! – Disse. – Ecco?

Ser reconhecido pela voz não estava nos planos de Ecco. Sentiu uma agulhada de raiva dentro de si, optando por continuar quieto. Ian, porém, estava disposto a fazê-lo falar. Estava claramente gostando de brincar.

— Por que voltou?

— Eu sei que não é guardião deste lugar. – Disse.

— Mas que droga. Você descobriu. – Ian retrucou em claro deboche.

— Na verdade, não muito bem. – Admitiu Ecco, consternado.

Ian caiu na gargalhada, se deliciando com o pequeno Ecco.

— Eu te conto, será um prazer. – Começou. – Eu cresci ouvindo histórias de que a criatura que está aqui nesta sala é imortal. Ochantgar, o terrível finghar, é um imortal miserável, imune a qualquer tipo de arma ou poder. Quer dizer, foi assim que me ensinaram. Mas todos concordam que o coração dele dá os poderes dele a quem o comer.

Deve estar possuído por demônios. Não havia outra forma de compreender uma pessoa que queria matar uma criatura imortal. Sem mencionar que todos conheciam o grande poder de um demônio e eles tinham os mais variados motivos para possuir alguém e fazer algo absurdo.

— Repare que ele nem mesmo fala mais. – Disse Ian, se referindo ao finghar. – Está fraco demais, pronto para morrer.

Ochantgar tinha sua deixa para falar, mas tudo que Ecco conseguiu ouvir foi o silêncio da gigantesca criatura.

— O que foi que você fez? – Perguntou Ecco, provocando risadas.

Ian, ou melhor, a silhueta que Ecco via, rodopiou a espada no ar numa frustrada tentativa de acertá-lo. Ecco se afastou, assustado. Se Ian continuasse se aproximando, desvaneceria em meio à escuridão.

— Infelizmente, Ecco, você tem que morrer.


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