O Voador escrita por Gabriel Gorski


Capítulo 11
Porto Lendário




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Não demorou muito até que chegassem ao porto. Nuvens se espalhavam abaixo do topo dos portões, mas logo surgia algum navante para desfazê-las, atravessando-as. Havia tantos navantes atracados ou em movimento que não era possível sequer contá-los, passavam de mil, talvez. O navante desacelerou ao se aproximar de uma das bases de pouso.

— Prepara para atracar. – Ordenou o Capitão Vomthire. – Recolher velas e dobrar asas.

Outros repetiram as ordens, cumprindo os papeis de intendentes. A tripulação começou a se mexer, puxando cordas e folgando outras, dobrando as asas à lateral do navante, assemelhando-o a um pássaro. Rezz, Lièspe e muitos outros ajudaram como puderam. Etro, ao sair do cesto da gávea, quase despencou, mas não passou de um susto.

Homens lançaram ganchos no navio. Yilen e um tripulante enrolaram o gancho ao mastro, prendendo-o na própria corda que trazia. Quando todos os ganchos estavam presos, os trabalhadores do cais começaram a puxar o navante para a terra, até que encaixasse sobre uma plataforma de metal com encaixe para a quilha, evitando assim que o navante inclinasse e caísse.

— Abaixar a escada. – Ordenaram.

Dois tripulantes tomaram a iniciativa. Gage reuniu os aprendizes no convés, em frente a própria cabine.

— Meus homens descarregarão parte da mercadoria agora. Quanto a isso, não se preocupem, estão dispensados. – Ouviu-se suspiros de alívio e vivas. – Entretanto, formem uma coluna.

Todos obedeceram aos empurrões.

— Rezz e Alleyx vão à Torre do Edaestro. – Disse Gage, apontando para os dois. – Arphel e Ondaro para a Torre Safírica.

— Arian e Etro para a Torre do Esmeráldico. – Disse Richard, o intendente do capitão.

— Ótimo. – Concordou o capitão. – Lohan e Yilen irão à Torre do Turquesado. Ecco e Nthaír à Torre do Rubicundo.

Zaia, Yearnan e Casiraghe eram os últimos.

— Zaia e Casiraghe vão para a Torre do Diamantista. – Disse, por fim, o capitão Vomthire.

— E quanto a mim? – Perguntou Yearnan.

— Ficará aqui. – Respondeu.

Yearnan pareceu desolado. Não viera tão longe até uma cidade descomunal e de proporções épicas para permanecer no navante.

— Vão. – Disse o capitão. – Terão de retornar antes que toquem os sinos. Não voltem de mãos vazias.

— O que devemos fazer? – Perguntou Alleyx.

— O teste. – Respondeu o capitão, retirando-se sem esclarecer.

O intendente Richard falou no lugar dele.

— As torres serão salvação ou perdição. É o primeiro teste, não há grandes dificuldades nele. Tragam o que as torres têm para oferecer.

Todos concordaram, sem compreender bem o que aquilo queria dizer. Quando o intendente se retirou, levou Yearnan consigo.

— Vamos repassar. – Sugeriu Ecco a Nthaír.

— Devemos encontrar a Torre do Rubicundo e trazer aquilo que a torre tem para oferecer.

— O que vamos dizer? – Perguntou Ecco.

— Não sei. Mencionamos o nome do capitão?

— Ou o do navante. – Sugeriu.

— Qual o nome do navante?

Os dois encararam o navante. Estava escrito “Capitão de Ferro” do lado de fora. Os outros aprendizes já haviam se dispersado pelo cais.

Uma rua serpenteava rente à beira do precipício. Seguiram para o norte, rumo aos Portões do Mar. Do lado direito, caixotes e mais caixotes eram empilhados, movidos ou retirados a todo o momento por estivadores.

— Repare que quase não há somneir aqui. – Lièspe comentou.

Ecco viu que era verdade. A variação de criaturas era surpreendente: Ersni, balutes carrancudos, icanes austeros, entleò e seus govrios das mais variadas formas, douteses, arealeses e golens enchiam o lugar. Até mesmo jeais haviam ali, criaturas quase raras em meio às sociedades. A falta de somneir, porém, os impressionou mais ainda.

— Estamos deixando de existir. – Falou um tanto triste, mas indiferente, antes de se indignar. – A Assolação foi a pior coisa que já aconteceu... Porque ela não atingiu outras raças?

— Mas atingiu. – Nthaír o contrariou. – Os finghars, os rubicundos, fleus, caligalgos e tantas outras cujo os nomes jamais serão lembrados não existem mais por causa de Agheor. Os somneir são fortes por aguentar até agora.

— Se não fossem os závoras, já seríamos lenda. – Os dois riram.

— Creio que não. A Assolação não atingiu as Ilhas Voadoras ou os reinos para além no sul.

— Enfim. Vamos perguntar a alguém sobre a torre, não devemos demorar. – Sugeriu Ecco.

Os dois continuaram a caminhar em direção aos Portões do Mar, imponentes e vivos, feitos de cobre e ferro. Haviam muitos detalhes minuciosos por toda a estrutura. No alto, pequenos pontinhos se mexiam em estruturas flutuantes e, por várias vezes, nuvens atrapalhavam a visão, além da gigantesca distância.

Perguntaram a muitas pessoas, mas nenhuma delas sabia lhes responder. A maioria os ignorava e prosseguiam seus caminhos, imersos numa monotonia ou rotina sarcasticamente invejável.

Aproximaram-se do portão, onde um guarda cumpria o seu posto acima de um pequeno cadafalso. A armadura prateada que usava era revestida de verde e branco e na cintura trazia uma espada de aço reluzente. Numa das mãos tinha uma lança, assim como os outros guardas dispersos à frente do portão.

— Senhor. – Lièspe dirigiu a palavra ao guarda mais próximo. – Onde podemos encontrar a Torre do Rubicundo?

O guarda se aproximou deles após entregar a lança a outro guarda e retirou o próprio elmo, revelando-se um tigre, na realidade. Nthaír empalideceu e tentou gritar, mas sua voz não saía. Ecco também se afastou e já estava preparado para correr quando o homem-tigre falou.

— Acalmem-se. – Sua voz era grave, firme e um tanto felina, assim como o rugido de um tigre. Ainda assim, era amigável. – Não há o que temer.

Ele estendeu a mão para cumprimentar Lièspe, que tremia, mas que mesmo assim conseguiu retribuir. Sua mão assemelhava-se a uma mão somneir, assim como sua anatomia. Tinha as costas eréteis e a dobra de suas pernas já não era tão evidente.

— Meu nome é Gor’lathos e eu sou um guerreiro juramentado aos Cortbitten, uma grande família e tenho a honra de lhes ser um servo. Como posso ajudar vocês?

Cortbitten, pensou Ecco. Isso pode ser coincidência? Hesitante e quase gaguejando, tomou coragem para perguntar.

— O senhor serve aos Cortbitten? A mesma família de Nix Cortbitten?

— Não, não! – Disse Gor’lathos, esclarecendo. – O nome Cortbitten se tornou um nome grandioso há muitas eras. Há muitas famílias Cortbitten atualmente. Eu sirvo os Cortbitten de Porto Lendário.

Soava verídico.

— Onde podemos encontrar a Torre do Rubicundo? – Perguntou Lièspe, não tão nervoso quanto antes.

— Sigam as placas vermelhas – Ele disse. – Há nelas o desenho de um homem rugindo, impossível confundir.

— Muito obrigado, senhor Gor’lathos. – Disse Ecco, acenando e sorrindo enquanto se afastavam.

— Boa sorte! – Gor’lathos disse enquanto acenava, antes de sussurrar para si. – Talvez precisem mesmo.

Nthaír e Ecco se entreolharam algumas vezes antes de perceberem o que acabara de acontecer.

— A gente conheceu um Jeal! – Lièspe exclamou.

— Sim! – Concordou Ecco. – Ninguém vai acreditar.

Mal proferiu as palavras, tão logo se calou quando observou os portões à frente, soberanamente. Com toda a certeza, era a coisa mais alta construída entre qualquer raça viva. Ecco se perguntou os diriam os ezraellyanos se pudessem ver aquilo.

Pessoas de todos os tipos caminhavam por ali. Era uma rua extremamente larga. O chão de terra batida já não tinha mais nem uma grama como deveria haver em épocas passadas, desgastando-se devido ao grande número de pessoas que caminhavam por ali todos os dias. De cada lado da rua, mercadores gritavam de suas vendas, oferecendo os mais variados produtos.

O traço mais marcante de Porto Lendário eram suas casas: Não existia nem uma. Tudo eram torres. Altas e sinistras, desde a fundação da cidade seres construíram suas casas em forma de torre, grossas ou finas, com pedras escuras ou claras, de granito, gabro, mármore ou ardósia. Em muitas delas, mísulas sustentavam ameias salientes. Noutras, varandins em torre se erguiam, altos, com pontudos telhados de várias cores. Algumas das torres maiores eram conectadas entre si por pontes de pedra, madeira e tantas outras formas, de modo que era quase desnecessário descer. Na verdade, a maioria dos nobres não descia às ruas, por nojo, ou mera segurança.

Ecco e Lièspe puderam ver até mesmo grandes praças no alto, redondas e quadradas, sustentadas por torres tão grossas quanto elas, cercadas por balcões interligados às gigantescas torres ao redor através de pontes de arco. Torres pequenas normalmente estavam grudadas em torres maiores, como se servissem de apoio estrutural, ou apenas parasitando-as. Entre elas, becos e mais becos, vazios ou cheios de entulho, de gente, de entulho e gente.

À medida que andavam, viram a rua principal terminar e dividir-se em duas ruas menores que ainda seguiam na mesma direção. Escolheram o caminho da esquerda, pois viram que a rua se alargava mais à frente.

Três cavaleiros, um sástera, um fleu e um balute, conversavam ao redor de um barril, sentados em caixotes, em frente a uma taverna razoavelmente movimentada, ao lado de um beco.

— Achei que não existissem mais fleus. – Disse Ecco, apontando para o homem, facilmente reconhecido por sua pele que tinha um tom claro de azul e seu cabelo eternamente molhado.

— Eu também não. – Concordou, pasmo. – Nunca havia visto um, na verdade.

Muitos que passavam por ali também encaravam o fleu, surpresos por verem um. Estava claro que ele já não deveria existir, mas nenhuma das pessoas ousava interpretar o papel de exterminador de raças.

— Vamos falar com eles. – Disse Ecco, curioso.

— Você é perturbado? – Perguntou Lièspe, puxando o braço de Ecco para impedi-lo. – Eles nos usarão como escudo em batalha por perturbá-los.

Ecco o ignorou completamente.

— Com licença. – Disse, tímido. – Sabem onde fica a Torre do Rubicundo?

O sástera nem se dignou a olhar, virando o rosto para o copo que tinha na mão. O fleu sibilou algum xingamento numa língua estranha. Seus músculos faciais se retesaram de uma forma estranha, desassemelhando-se imensamente de um somneir numa clara irritação. Ele se levantou e entrou na taverna. O balute, mais tolerante, foi o único que deu atenção a Ecco, logo depois de dar um gole no vinho com cimelim que bebia.

— Siga as placas vermelhas, garoto. E suma logo daqui. Não deveria ter nos interrompido.

— Mas... – Ele tentou argumentar.

— SUMA! – Gritou o sástera, com sua voz rouca característica. As escamas que tinha no rosto não suavizaram o susto que Ecco e Lièspe tiveram (mesmo que Lièspe estivesse afastado).

Ecco não esperou que dissessem outra vez, se afastando com calma, sem tirar os olhos deles, com medo de ser atacado.

— Vamos embora, desgraçado. – Nthaír o xingou enquanto se afastavam. Continuaram caminhando.

— Como eu saberia? – Tentou se justificar.

— Como?! Eu lhe avisei! É assim que saberia. Nunca ouviu as histórias? “Jamais interrompa o conluio de um sástera, um balute e um fleu.” – Recitou. – “Anátemas sobre ti virão se por três vezes assim o fizer.”

Havia de reconhecer que aquilo era verdade, todos conheciam. No calor do momento, isto nem passou pela cabeça de Ecco. Entretanto, em sua mente, via as escamas dos sástera saltando de sua pele, transformando-o num dragão. Definitivamente, não gostaria de passar por isso.


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