Os Lordes de Ferro escrita por valberto


Capítulo 7
Capítulo 7 - Pelas estradas da vida




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Alguma coisa gelada tocou o nariz de Sara e ela se encolheu ainda mais nas cobertas de pelo felpudo que estava enrolada. A luminosidade do ambiente começou a despertá-la e assim que ela se mexeu para se ajustar na cama, sentiu o vento gelado acossar as costas.

— Ah droga, quem deixou a janela aberta? – perguntou a menina, levantando a cabeça e sentindo o peso do sono desvanecer aos poucos – mãe?

Como não obteve resposta imediata, voltou a deitar, se enfiando ainda mais na coberta de pelo felpudo. Então, enquanto tentava se aninhar de novo o pensamento veio na sua mente como uma marreta batendo com força num pino de ferro: “Mas não tem janela no meu quarto!”

Sara levantou-se de um pulo, deixando a coberta de pelo felpudo escapar e cair pesadamente no chão. Ela não estava em seu quarto... ela estava em algum lugar que ela nunca tinha visto. Parecia um aposento em ruínas. Ela uma espécie de platô circular como a base de uma torre, com paredes pela metade e faltando teto em um bom pedaço. O chão era ladrilhado com peças velhas e maltratadas de uma pedra que lembrava ardósia, mas de coloração amarronzada e não verde, coberta irregularmente com montículos de neve. Ela olhou em volta, confusa, como se pudesse encontrar uma resposta escrita em algum lugar. Foi quando deu conta: estava nua por baixo do cobertor feito com pelo felpudo de zibelina.

Mas o estupor de estar nua num ambiente diferente de tudo que já tinha visto teve que esperar. Bem ali ao lado ela viu o primeiro corpo. Era um homem adulto, vestindo roupas medievais, típicas de camponês como se via nos livros de história. Mais adiante mais três corpos jaziam no chão gelado. Todos homens, mas bem melhores vestidos que o primeiro: todos usavam algum tipo de armadura. Peças de couro batido, como coletes e protetores de braços e pernas. Um deles tinha até mesmo um elmo de couro, reforçado com tiras de metal escuro. Outro corpo, mais afastado, estava usando um manto com capuz que lembrava os camisolões que os bruxos usavam antigamente. Á direita havia uma lareira pela metade e precariamente pendurada sobre ela um caldeirão fumarava discretamente. Subitamente o estômago de Sara deu sinal de vida. A menina enrolou-se com a capa de zibelina que usara como cobertor até momentos antes e, vencendo o medo e nojo dos mortos, caminhou pelo piso gelado até perto do caldeirão. O cozido estava quente ainda, apesar do fogo da lareira já estava praticamente extinto. Ela jogou duas toras no fogo e encheu uma cumbuca de madeira rústica com o caldo grosso de cheiro agradável.

Como não tinha colheres tomou a sopa diretamente da cumbuca, sentindo o seu sabor rico descer pela goela e esquentar o corpo. A musculatura relaxou e ela começou a raciocinar enquanto tentava discernir os ingredientes daquele sopão. Haviam batatas e cenouras com certeza... alho e cebola também. Mas a carne tinha um gosto forte, pungente. Lembrava gado, mas bem mais encorpada. Tentou se lembrar do que tinha acontecido e como havia chegado ali.  

Sua última lembrança tinha sido na pista de parkour. Tinha perdido as forças das pernas e estava caindo no vazio. Como acordara ali não tinha a menor ideia. O vento soprou mais forte, uivando e soprando neve em todas as direções. Sara olhou e escondida atrás de uma mesa caída havia um baú. Valia apena ver se havia ali alguma roupa que pudesse vestir. Não lhe agradava a ideia de fuçar nos corpos de homens mortos em busca do que vestir. 

Ela abriu o baú e encontrou muitas roupas. Vestidos rústicos, peças masculinas e femininas, calças e muitos pares de sapatos. Achou também uma sacola com algumas moedas dentro. Não reconheceu as moedas, mas pareciam as economias de muito tempo, ou como se alguém tivesse assaltado a caixa de oferendas da sacristia de alguma igreja.

Ela escolheu as melhores peças e vestiu-se com uma calça de algodão grossa, mas que estava um pouco folgada. Uma camisa de algodão por cima de tudo e um colete decorado com um lindo bordado em detalhes florais. Para manter a calça no lugar pôs uma faixa grossa de tecido áspero como uma toalha na cintura e por cima dela amarrou um cinto de couro. Para os pés escolheu botas que pareciam boas para caminhada. Num canto achou um arco e uma aljava com uma dúzia de flechas. Equipou-se com duas adagas de ferro no cinto, junto com um cantil de couro que parecia cheio de água e resolveu guardar as moedas num bolso. A capa de zibelina serviria para espantar o frio e em caso de algum pernoite já tinha provado ser um cobertor e tanto. Mas ela sentia que precisava de mais.

Começou, com muito custo a vasculhar os mortos. De um deles tirou protetores para as canelas feitas de couro batido, de outro um anel que chamou sua atenção, de um terceiro as vembrassas que agora protegiam seus antebraços. Quanto aos mortos algo chamou sua atenção. Nenhum deles aparentava ter qualquer ferimento. Já tinha visto muitos seriados de investigação policial para saber que não havia ferimentos capazes de causar morte: não havia cortes ou perfurações, nem sinais de envenenamento. Era como se eles simplesmente tivessem morrido do coração. Do que tinha vestes de mago tomou uma espada curta, feita de um metal gelado e enegrecido. Uma lâmina dupla, de uns quarenta centímetros, guarda em cruz e cabo de madeira, coberta com tiras de couro gasto. O pomo tinha o formato de uma caveira, entalhada diretamente na madeira e coberta com uma tinta fosca escura.

Finalmente estava pronta para partir. Mas para onde? Para que lado? Não tinha ideia alguma da direção a seguir. Tudo parecia estranhamente alienígena para ela, como se de uma hora para outra estivesse num episódio de Game of Thrones. Percebeu que as ruínas que estava ficavam num ponto elevado. Virando para o sul dava para ter uma estradinha que serpenteava pelas árvores e pelo chão coberto de neve. Parecia um ponto de partida tão bom quanto qualquer outro.

Demorou cerca de vinte minutos descendo pela trilha, agarrando nas árvores do caminho para não deslizar em direção ao desconhecido. Finalmente a trilha desaguou numa estrada larga, pavimentada por pedras irregulares, formando um mosaico bonito e agradável. A estrada estava mal cuidada, cheia de rombos e pedras fora do lugar. Muitos trechos não tinha mais qualquer pedra de calçamento, restando apenas a terra nua. E foi nesses trechos que ela viu. Pegadas. Muitas. Ao que parece a estrada mal cuidada era bem usada. Ela olhou para cima, na direção das ruínas onde estava até poucos minutos atrás. Não dava para ver o local onde estava, mas suspeitava de que de alguma lugar lá em cima deveria ter a visão privilegiada de quem ia e de quem vinha pela estrada.

Como um expert ela tentou decifrar as pegadas. Divisou que havia muito mais pegadas indo para a direita do que as que iam para a esquerda. Então um grande número de pessoas estava indo pra a direita. Ou havia ali alguma coisa digna de ser vista ou para a esquerda haveria um bom ponto de partida. Continuava bastante confusa. Resolveu entregar-se à sorte. Pegou uma moeda de bom tamanho de dentro da bolsa. Era uma moeda que parecia feita de prata. De um lado inscrições que parecia em grego ou latim, com um grande “V” e do outro o rosto de uma mulher, vista de perfil, usando uma coroa.

— “V” eu vou pela direita e “rainha sem nome” eu vou pela esquerda. – disse a menina em voz alta no meio da estrada. Ela jogou a moeda para cima, girando no ar e deixou que ela caísse no chão. A neve abrandou a queda. A menina abaixou-se e vislumbrou o rosto da rainha sem nome. – Esquerda, hein? Vamos lá.

A menina começou a andar e percebeu que estava descendo pela estrada. Era como se estivesse no alto de uma colina. A estrada seguiu por um bom tempo sem que visse ninguém. Num primeiro momento a menina sentiu-se desolada por isso, mas depois veio outra preocupação: se encontrasse alguém, o que ela diria? Daria bom dia? Boa tarde? Falariam seu idioma? Ela seguiu por mais algum tempo até que sentiu que a neve escasseava aos poucos, restando em seu lugar uma lama gelada e escorregadia. A estrada serpenteou, abrindo uma ravina do lado direito da pista, por onde se via um enorme vale.

Apesar de deixar a neve para trás o frio continuava numa constante. Ela seguiu pelo caminho até que viu o que parecia uma casa a beira da estrada. Estava longe ainda, mas foi estranhamente divertido ver a casa aumentar de tamanho a medida que ela se aproximava lentamente. Finalmente ela chegou próximo da estrutura para ver que se tratava de uma estalagem. Igualzinho a que tinha visto nos jogos eletrônicos: dois andares aparentes, uma grande soleira, com uma varanda que ia de um lado a outro da fachada do prédio. Ela subiu pelas escadas que davam acesso a porta principal, tentando decifrar o que dizia a placa.

Ao abrir a porta ela foi acossada pela visão de caos. O lugar estava todo revirado, com meia dúzia de caras desfalecidos no chão, mas ainda respirando. Mesas viradas, cacos de cerâmica jogados no chão e restos de comida espalhados. Num canto mais distante do salão uma menina vestindo um vestido leve e um avental começava a fazer a limpeza. Sara sentiu um pouco de pena dela: afinal de contas parecia que cabia a ela por toda aquela bagunça em ordem. Do outro lado do salão viu o que parecia um balcão com uma pessoa bebendo alguma coisa. Ele era alto e corpulento, usando uma capa preta e grossa, com capuz. Ele e o barman conversavam baixinho, bebendo do conteúdo de canecas de madeira.

— Com licença... – a voz de sara saiu como um farrapo.

— Oh! – disse a menina que estava limpando o chão apressando-se em cumprimentar a viajante. – Seja bem vinda andarilha. Desculpe a bagunça. Mas eu logo terei uma mesa. Sou Katty, e bem vinda ao Recanto da Estrada. Temos comida, bebida e se precisar de pernoite também alugamos quartos.

— Seria ótimo um lugar quentinho para esticar as pernas Katty. Eu sou Sara. – Disse a menina sorrindo e ganhando mais confiança.

— Neste caso a patroa pode sentar ali numa das cadeiras perto da lareira e quando eu tiver alguma mesa pronta eu lhe aviso.

Sara encaminhou-se para o local indicado e tirou as botas e as meias, colocando-as para secar junto ao fogo da lareira. O fogo da lareira logo a esquentou e ela ficou mais confortável. Um dos homens levantou, sacudindo a cabeça. Ele olhou em volta, batendo nos bolsos.

— Minhas moedas! – berrou ele, enquanto Katty se encolhia em silêncio no seu trabalho – quem foi o filho de uma rameira leprosa que roubou o meu dinheiro? – o homem olhou em volta até divisar o gigante encapuzado no balcão. – Você! Ei espadachim! Foi você que roubou minhas moedas?

— Roubar não é o termo correto. Eu as confisquei. As suas e as de seus colegas bêbados para pagar os prejuízos que vocês deram ontem à noite. Tenho certeza que vocês não vão se importar. – a voz do homem era alta e rouca. Sara sentiu um aperto férreo no pescoço enquanto ele falava cada palavra pausadamente e cheio de confiança. Ela sentiu uma pressão em volta dela.

Enquanto falava os outros bêbados levantaram. Todos em igualdade de condições ao primeiro. Confusos e enraivecidos. Uma combinação perigosa.

— Se eu fosse vocês, ia embora agora – disse o homem virando-se para eles. Só agora Sara podia ver o rosto do espadachim. Era longo, com uma barba recém-aparada. Não tinha bigode e os olhos castanhos pareciam brilhar em meio a baixa luminosidade do salão. Havia uma espada longa na sua cintura. Mechas de um cabelo preto e liso escapavam pela lateral do capuz. Na ponta do cabo faiscou o que parecia um rubi incrustrado no pomo.

— Vamos embora – disse o primeiro a se levantar. – Não queremos problemas, não é mesmo, rapazes? Katty, Tom... Desculpem a bagunça... Fiquem com as moedas como... Compensação... – os homens saíram cambaleando e o clima arrefeceu na estalagem.

— Não sei como agradecer mestre espadachim. – disse Tom pegando as moedas que estavam no balcão. – Aqui tem o bastante para pagar pelos prejuízos... Abençoados os doze divinos que o fizeram seguir por esta estrada!

— Já temos uma mesa, patroa – chamou Katty. Sara calçou as botas e foi para a mesa montada perto do balcão. – Temos carnes, caldo, legumes assados, vinho e cerveja. Se me permite, nossa carne assada defumada é uma das melhores da região.

— Devia aceitar a carne, uma guarnição de legumes e uma cerveja. Vai ajudar a dar forças para a estrada. – disse o espadachim sentando-se à mesa. Dessa vez Sara não sentiu nenhuma pressão nas palavras do homem. – Katty, para mim pode trazer uma porção daquelas suas batatas cozidas, recheadas com carne.

Sara não tinha sentido pressão alguma dessa vez, mas não gostava da ideia de dividir a mesa com um estranho. Ela engoliu um seco e fez um cara de que estava desconfortável, mas seu parceiro involuntário a ignorou completamente.

As carnes foram servidas e Sara comeu em silêncio. A cerveja tinha um gosto amargo e apesar disso sentiu o corpo se encher de energia. Aos poucos foi ficando mais á vontade com a presença do homem.

— Você está indo para onde? – perguntou o homem entre uma mordida e outra.

— Estou andando por aí. Seguindo a estrada... – respondeu Sara, obviamente tentado esquivar de perguntas difíceis. Era melhor do que tentar explicar a um desconhecido que ela era uma aluna do ensino médio e que não tinha a menor ideia de como tinha parado ali.

— Uma andarilha... que bom. Quem sabe me dê o prazer de sua companhia. Estou seguindo para Barro Branco tratar de alguns assuntos. Isso é... se sua língua se soltar mais na estrada.

— Eu não sei. – disse a menina apreensiva.

— Tudo bem. Eu aprendi a identificar o “não” na fala das pessoas. Se não quer a minha companhia, terei prazer de aliviar o seu fardo. – disse o homem puxando o seu prato e fazendo menção de levantar-se da mesa.

— Não precisa levantar – disse Sara de supetão ao perceber que o homem que só estava tentando ser gentil com ela estava prestes a se levantar. – É que eu não sou daqui e estou com muita coisa na cabeça. Muito o que pensar.

— Tudo bem... – disse o homem. – Você tem um sotaque diferenciado. Acho que posso adivinhar de onde você vem. Topa? Três chances?

— Por que não? – divertiu-se Sara. Não tinha como ele saber mesmo.

— Hm... vejamos... Você é das terras da fronteira... o sotaque não deixa muito espaço, já que você fala pouco. A cidade de Goyazia?

Sara balançou a cabeça. Embora o som do nome da cidade lhe fosse familiar de alguma forma ela não tinha nascido lá... com certeza. Diante do silêncio do seu interlocutor ela perguntou:

— Bom, você disse três chances... não vai tentar de novo?

— Preciso ouvir mais a sua voz. – O que me diz de ir comigo até a encruzilhada da estrada de Águas Claras e Barro Branco. Lá eu faço outra tentativa.

— Ok.

— Ok, então – divertiu-se o homem.

Ao terminarem a refeição os dois saíram da estalagem, apenas para dar de cara com os cinco homens de mais cedo. Todos armadas com espadas curtas e escudos pequenos.

— Viemos confiscar a sua espada viajante. Para pagar os custos da nossa bebedeira de ontem à noite. Não vai se importar, vai? – disse um homem careca, obviamente o líder do bando, armado com uma espada curta e mal cuidada e um broquel.

Silenciosamente o homem andou até o meio dos bandidos e sacou a espada. Era ainda mais bonita sob a luz do sol.

— Essa espada é minha. Eu a forjei, com a ajuda de um amigo muito querido. A minha espada é a minha alma. Se a querem, venham buscar. – o homem apontou a espada para o chão e fez um circulo à sua volta.

Sara não viu o que aconteceu. Ela viu apenas um borrão de movimento enquanto os cinco bandidos correram ao mesmo tempo em direção ao homem. Num instante os cinco estavam em volta dele. No outro estavam todos ao chão, gemendo por seus ferimentos. Nenhum deles estava morto e a espada já estava de volta à sua bainha. Foi quando Sara viu o símbolo na bolsa do homem. Um símbolo que ela conhecia bem.

— Olha moço, acho que começamos com o pé esquerdo. Meu nome é Sara. Não sei onde estou e nem como vim parar aqui, mas acho que você é o meu único link com o lugar de onde vim.

— E por que diz isso, pequenina?

— Pelo símbolo na sua bolsa. É o símbolo do meu clã. O reino dos Lordes de Ferro.

Os olhos do involuntário companheiro de viagens se iluminou – Mesmo separados... – comentou o homem, semblante pelo menos dez anos mais jovem.

— Nossos corações serão um só – completou Sara.      


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