Os Lordes de Ferro escrita por valberto


Capítulo 8
Capítulo 8 – O Rei e a bruxa




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As terras do condado da Ponte Alta ficam para trás à medida que o drakkar se afasta da costa. O navio rasga as águas turbulentas do canal do riacho fundo, levando os ocupantes da nau de volta às terras dos Brakens. Dali veio a promessa de trabalho para aquele pequeno grupo mercenário.

Braken é um condado em expansão. Faz fronteira com Barro Branco e com o reino das Águas Claras. Por não ter um líder forte ou legítimo, meia dúzia de senhores da guerra lutam entre si pelo governo local. Em terras assim grupos mercenários costumavam ser mais do que desejados. Costumavam ser necessários. Mas poucos eram queridos como o bando do corvo. Composto por uma elite de guerreiros mortais, mercadores da morte, assassinos e cortadores de gargantas, o grupo era tido como dono de uma reputação impecável. Desde que, claro, o empregador pudesse pagar por seus serviços.

Á frente do barco estava uma figura agigantada, barbas brancas e cabelos negros. Olhos de verde férreo divisavam o horizonte, divagando. Atendia por muitos nomes, mas naquele grupo era chamado apenas de “Rei”. Na cintura portava duas espadas: uma longa e uma arming sword e nas costas trazia um escudo redondo enorme, onde o símbolo do seu bando de mal feitores aparecia orgulhosamente feroz.

— Meu Rei... – a voz atrás dele o fez sair de sua meditação. – Um pombo correio acaba de chegar da região do Recanto. Ao que parece outro desperto foi descoberto. Os homens questionam se vamos até lá. Sabemos do seu interesse por estes “despertos”, mas os homens carecem de dinheiro depois da missão nas terras altas.

O gigante coçou a barba e ponderou por uns segundos. Uma coisa era garantir lealdade quando se lidava com homens de honra, mas com piratas a lealdade era comprada com ouro.

— Fell, como você se sente com essa missão para os nortistas de Bracken?

O rapazote de peito nu ponderou a resposta. Poderia ser um teste. Ele olhou para o homem que aprendera a chamar de Rei, tentando perscrutar alguma coisa na sua aparência serena. Como não achou nada que pudesse indicar alguma coisa, por menor que fosse, deu de ombros e resolveu responder com sinceridade.

— O duque dos nortistas pede 40 de nossos homens. Mas pelas condições que já vimos antes não precisamos nem de vinte para dar conta do recado. Uma missão fácil. Podemos resolver tudo em menos de uma semana, encher os bolsos de ouro e gastar tudo nos bordeis de Samamba antes da próxima fase da lua.

— E você os lideraria na batalha?

— Sim meu Rei. Eu os lideraria como se fosse o senhor.

— Então está decidido. Eu vou para as terras do Recanto das Aves e você vai liderar os homens para a batalha. Eu vou encontrar você e os homens dentro de sete dias em Samamba. Vou seguir a trilha de bêbados  e prostitutas incapacitadas pelas ruas até achar vocês. – disse o homem pondo a mão sobre o ombro de seu comandado. Ele então se virou para os demais homens do drakkar e bradou a boa voz – Ouçam aqui cães do mar! Fell aqui disse que vocês são capazes de cuidar das coisas sem mim, sem precisar de uma babá para limpar seus traseiros no campo de batalha. Ele apostou a vida dele que vocês dão conta do recado... E eu comprei essa aposta. Então vou pegar o nosso escaler e vou rumar para as terras do recanto... Ouvi dizer que existe um bordel com pombinhas novinhas que precisa ser explorado. Devo encontrar com vocês em Samamba em sete dias. E digo mais uma coisa: é bom que tenham vencido e que estejam gastando a recompensa de ouro quando eu chegar lá, porque se não eu vou arrancar as bolas de cara um de vocês!

O navio explodiu em ovações e comemorações. Era a primeira missão que o rei dos Corvos confiava a seus homens. Eles estavam felizes, não apenas pela confiança do rei, mas também pelo dinheiro que já visualizavam gastar nas terras de Samamba. Quando o rei entrou no escaler, acompanhado de sua guarda costas pessoal, ele foi ainda mais ovacionado. Quando estavam a pelo menos uma centena de braças do navio a silenciosa mulher que vivia como sua sombra falou.

— Tem certeza que é uma boa ideia deixar esse bando de assassinos fora da coleira? – a voz dela estava mesmo preocupada.

— Não se preocupe Rebecca. Eles vão fazer o serviço que foram contratados para fazer. Afinal de contas, se o relato for verdadeiro estamos um passo mais perto de reunir a todos. E você sabe que reunir a todos é o primeiro passo para sairmos dessa imitação de vida.

— Eu sei – disse ela com resignado pesar – mas você não tem medo de ter criado um monstro? Esses locais não tinham qualquer treinamento militar antes de você tê-los treinado. Eram só ladrões comuns e assassinos pé de chinelo. Agora você fez deles um grupo mercenário.

— Uma coisa que eu vou lidar depois que estivermos todos reunidos. Vamos resolver um problema de cada vez. Primeiro reunimos todos e depois resolvemos uma coisa de cada vez. – disse ele num tom apaziguador.

— Eu sei... e eu entendo que sem o recurso dos piratas não teríamos como conseguir. Você não teria me encontrado.  Mas já faz cinco anos... Será que Espartano, Artêmis e Elfo estão bem? Eu procurei tanto por eles naquela floresta... não acredito que os abandonei daquele jeito.

— Cinco anos para você. Estou aqui a quase dez anos. Quem sabe eles apareceram aqui só depois. Bem depois. Podemos voltar à floresta depois. Mas agora temos uma pista quente para seguir.

O barco seguiu viagem até o final do dia. Foi quando os dois parceiros se despediram. Rebecca buscaria no norte do Recanto e o Rei buscaria no sul.

— Então foi aqui que você acordou? – perguntou Yhago, vistoriando a torre em ruínas. – E você tem certeza que não matou nenhum deles...

— Olha pra mim Yhago... – respondeu Sara tentando se esconder por trás da capa de zibelina – Eu lá tenho como matar esse monte de gente?

— Bom, alguma coisa os matou. – disse o jovem – e pelo jeito não sabia do valor que eles tinham...

— Valor? – perguntou Sara, que cutucava o rapaz vestido de túnica longa e escura com um graveto. Tinha horror a manusear cadáveres.

— Sim. Eu lhe apresento o bando da mão de ferro. O regente de Santa Ajora lançou uma recompensa por eles. Aquele ali vale duzentos, esse aqui duzentos e cinquenta, aquele ali cem... mas esse que você está cutucando, Zenão, vale quinhentos. Bem valem isso se estiverem vivos. Mortos fazem a recompensa cair pela metade. Mas mesmo assim eu cuto por alto que lucramos uns mil e duzentos paus.

— Lucramos o que? – perguntou Sara, espantada com a facilidade que o amigo recém-conhecido falava dessas coisas.

— Lucramos sim, afinal foi você que me trouxe até aqui. É justo que dividimos a recompensa em partes iguais.  “Paus” parece ser o nome da moeda local. Se parece muito com o real que conhecemos. É dividida em moedas de 100, 50, 20, 10, 5 e 1 paus. Abaixo disso são chamadas de centavos de pau ou cacetinhos – Yhago não pode deixar de escapar um risinho.

Para o horror de Sara Yhago puxou uma faca enorme do cinto e prostrou-se ao lado de um dos cadáveres. Com a faca ele mediu algumas distâncias no pescoço de um dos homens.

— O que você vai fazer? – perguntou Sara, antevendo a cena que estava para acontecer.

— Bom os agentes do regente não vão acreditar apenas na minha palavra. Se quisermos receber o pagamento temos que levar alguma prova do acontecido. As cabeças são uma boa prova. Agora, seja uma boa menina e arrume um saco para que eu possa guardar todas essas cabeças.

Sara sentiu as tripas enrolarem e quase despejou o almoço no chão. Mas diante do pragmatismo de Yhago não teve duvidas de como proceder.

— Então, é aquela menina ali? – perguntou o homem que os outros chamavam de Rei.

— Sim, meu senhor. Apareceu desnorteada, com fome e frio, ferida das intempéries da floresta. Eu e meus homens a acolhemos e mandamos mensagens ao bando do corvo. Sabíamos que ela era uma das pessoas que vocês procuram. – disse o homem baixo e gordo, dono de terras e com dez ou doze homens armados seguindo os dois à uma distância segura e respeitosa.

— E como tem certeza? – perguntou o homem com uma voz desconfiada.

— Ela tem todos os sintomas “sire”. Desnorteada, não fala coisa com coisa e estava com esse tabardo quando os homens a encontraram. – disse o gorducho mostrando um trapo preto nas mãos, onde o símbolo dos lordes de ferro sobressaía à vista de todos. – Além do mais o bando do corvo não é famoso por ter tolerância com aqueles que tentam enganá-lo. Eu pretendo fazer negócios com o senhor e manter a minha cabeça devidamente colada no meu pescoço.

— Eu vou conversar com ela. Fique aqui, por favor.

— Eu não acredito que vamos ter que andar dois dias com esse monte de cabeças por aí! Esse saco é absolutamente nojento e faz um barulho estranho quando arrastamos ele por aí. – protestou Sara ao saber do destino que tinham de seguir para receber a recompensa,

— “Vamos ter” não... Eu vou carregar essas cabeças por aí. Você só acompanha. Então, pare de fazer reclamações. Além do mais precisamos do dinheiro. Você não acha que as pessoas vão nos dar comida e abrigo apenas porque temos um lindo sorriso no rosto, não é mesmo? – retrucou Yhago, atingindo Sara mais uma vez com o seu pragmatismo. A menina o tinha convencido a pelo menos cremar os corpos restantes dos demais criminosos. E isso os tinha atrasado um dia inteiro de caminhada. Agora tinham mais dois de estrada pela frente. Percebendo o mal estra que tinha causado, Yhago tentou amenizar as coisas – Quer dizer que você estava na feira de Food trucks do Setor Central do Gama quando desmaiou e acordou aqui, certo? E que antes disso você treinava com o seu irmão com os Lordes de Ferro no Gama? E que no dia do seu desaparecimento o seu irmão apareceu em casa com ingressos vips para o festival medieval? É isso mesmo ou estou esquecendo alguma coisa?

— É isso sim – disse Sara, subitamente preocupada com o irmão. Estaria ele perdido em algum lugar daquelas terras estranhas? Estaria bem?

— Bom a minha história é a mesma. Eu recebi pelo correio uma caixa vip do festival, mas sem remetente Eu nem ia ao festival desse ano, porque estava sem grana. Eu achei que foi um grande golpe de sorte e saí para beber com uns amigos, lá em Ceilândia Sul. Acordei vestido basicamente como estou, sem e menor ideia do que aconteceu. Isso já faz quatro anos.

— Calma, está tudo bem, não precisa se preocupar... – as palavras do Rei soavam reconfortantes nos ouvidos da menina. Pela primeira vez, desde que se materializou numa floresta perto da fazenda onde foi acolhida a menina sentiu-se bem vinda. Afinal de contas era uma pessoa que sabia que ela não pertencia àquele mundo fantasioso. A menina ainda aninhou-se nos seus braços mais um pouco e fungou, levantando em seguida.

— Eu me chamo Caska. Do Gama. Eu... eu quero ir para casa.

— Todos queremos querida, todos queremos. Mas é como eu tentei explicar para você antes. Temos que achar os outros primeiro e tentar entender como chegamos aqui. Depois é descobrir uma maneira de voltarmos para casa. Estou aqui faz quase dez anos. Você é a segunda pessoa que eu encontro. E deve ter muitos mais soltos por aí. Rebecca foi primeira que eu achei.

— Você fala da Bekka? – disse Caska abrindo um sorriso. – eu a conheço. Foi ela que me treinou quando eu comecei a treinar no grupo.  Ela me ensinou a usar a espada e o escudo.

— Bom, ela vai ficar feliz de saber que você continuou treinando com essas armas. Aqui elas podem ser a diferença entre sua vida e sua morte. Vamos até a feira da cidade. Vou comprar uma espada e um escudo para você. Você não pode chegar até sua antiga mentora de mãos abanando.

Por fora Caska se sentia animada, mas por dentro, no seu intimo ela se sentia ainda mais feliz. Era quase um sonho realizado. Era muito melhor do que se estivesse na Alemanha, no Rosenvolk. Tudo o que ela queria na vida era se sentir como se estivesse num mundo medieval. Como no seriado Berserk.

Passavam pela praça quando uma comoção chamou a atenção dos dois. Era um grupo de soldados que acossava com lanças uma menina presa por uma corrente atada a uma estaca no chão. Eles a fustigavam covardemente, tentando instalar medo no seu coração, mas era claro que eram os soldados que estavam assustados. Um deles avançou para além do que deveria e foi presenteado pela sua ousadia com uma pedrada bem justa na sua bochecha.

Os dois viajantes pararam e observaram a cena, com curiosidade. O Rei dirigiu-se a um dos soldados e questionou do que se tratava.  

— Uma bruxa – respondeu um dos soldados, temerosamente. – Ela enfeitiçou o estalajadeiro e matou sua filha.

— Ela também enfeitiçou as vacas do vilarejo, fazendo que de suas tetas só jorrassem sangue ao invés de leite. – respondeu outro.

— Dizem que a noite ela voa numa vassoura encantada, devorando a alma inocente das crianças que ainda não aceitaram o crucificado como seu verdadeiro deus...

— Superstição. Pura e simples. – disse o Rei, deixando as compras com Caska e caminhando até a menina. Ela o olhou fundo nos olhos, sem medo. E sem qualquer traço de razão em seus olhos. Estava rota e suja, ferida, mas incapaz de dar-se por vencida. Apenas a loucura a mantinha viva. Mesmo o corpanzil do Rei e a visão de suas espadas de confiança a fizeram recuar.

— Você é uma bruxa? – perguntou na língua dos homens da região.

— Não. Mas se você me atacar eu vou fazer você conhecer o que é o inferno. Chegue mais perto e eu o matarei com minas próprias mãos. – disse ela num desafio. Não era de se espantar que aqueles lanceiros tivessem tanto medo de uma menina daquelas. Mais selvagem que um picto e duas vezes mais mortal que uma viking furiosa.

O Rei deu de costas. Embora o tratamento dispensado à ela parecesse desumano a seus olhos não havia nada que ele pudesse fazer. Deixasse que o povo do lugar desse conta de seus próprios problemas.

— Você não vai fazer nada? – perguntou Caska em protesto.

— Não há nada a ser feito. Ela é louca. Se eu liberta-la apenas trarei morte e destruição em volta.

— Não acredito nisso. – disse Caska largando as compras no chão e levando consigo apenas sua espada nova. Ela olhou a menina louca e ergueu a espada. De um só golpe a lâmina oleada partiu a corrente que prendia a menina. Ela não me agradeceu, entretanto sorriu de forma sádica. Num instante Caska arrependeu-se do que tinha feito. Sentia-se diante do lobo fenrir, das lendas, quando ele sorria antes de devorar suas presas. Ela girou a corrente ainda presa em seu pulso, passando a poucos centímetros da fronte de Caska. O segundo golpe arrancou a espada nova de suas mãos e ela caiu no chão sendo chicoteada pela corrente até que ouviu um clangor e parte da corrente caiu ao seu lado.

Entre ela e a corrente agora estava o Rei. Espada média na mão direita e um escudo redondo protegendo seu flanco esquerdo. A menina bruxa golpeou mais duas vezes contra a defesa do escudo e então ela desistiu. Passou a chicotear os lanceiros. O Rei se afastou, puxando Caska pelo chão de terra batida vermelha da terra dos homens do Recanto.

De longe os dois viram o espetáculo: depois de matar os homens que a torturaram e banhar-se com seu sangue a menina bruxa fugiu berrando imprecações, para dentro da mata que circundava a vila.

— É a nossa deixa. – disse o Rei arrastando a menina de pernas moles pela surra através das ruas em direção das docas. – Vamos embora antes que ponham em nossa conta as mortes causadas por aquela coisa.

Esperaram no escaler, escondidos, até que Bekka aparecesse. Dessa vez o reencontro foi contido. Não havia muito a comemorar e até a terra dos Brakens teriam alguns dias no mar de água doce. Dias para curar as feridas e para juntar informações.


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